Passados alguns meses desde a declaração de encerramento da pandemia do coronavírus pela OMS (Organização Mundial de Saúde), ainda vemos e lidamos com suas consequências, principalmente na forma como passamos a encarar a vida, pessoal e profissionalmente, transformando, assim, a maneira como nossa civilização tem se relacionado.
Daí, muitos efeitos já são conhecidos. Além das lamentáveis mortes por conta da doença, as relações interpessoais efetivamente, não há como negar, mudaram, causando, por exemplo, incompatibilidade de gênios, que culminaram no divórcio de inúmeros casais.
No direito societário e empresarial não foi diferente. A relação entre os sócios também foi atingida pela pandemia, seja pelos impactos que esta causou às atividades empresariais desenvolvidas (levando negócios antes lucrativos à falência ou dando oportunidade, por outro lado, para o crescimento de outros negócios antes não desenvolvidos), seja pela própria mudança de valores pessoais de cada sócio, dando origem a inúmeros conflitos.
Neste aspecto, sendo o tipo societário mais utilizado pelos empresários no Brasil, a sociedade empresária limitada enfrenta importante momento de discussão sobre sua natureza, desenvolvimento e existência. Mais especificamente com relação à sua dissolução parcial.
Dentre as hipóteses de dissolução parcial, o Código Civil, que rege as sociedades empresárias limitadas, prevê em seus artigos 1.085 e 1.086 a possibilidade de exclusão extrajudicial de sócio que esteja “pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade”, desde que o contrato social da sociedade expressamente preveja tal hipótese. Pelo texto da lei, a referida exclusão extrajudicial deve ser aprovada pela maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, em reunião/assembleia de sócios especialmente convocada para esse fim, devendo ser efetivamente formalizada mediante alteração do contrato social da sociedade.
A interpretação dos referidos dispositivos legais por nossos tribunais passou, e vem passando, por modificações e evoluções ao longo dos anos, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da quebra da affectio societatis como justo motivo para a exclusão extrajudicial de sócios de uma sociedade limitada.
Originalmente, sociedades empresárias limitadas são conhecidas como sociedades de pessoas, o que significa que as características individuais de cada sócio e o relacionamento entre eles, ou seja, essa affectio societatis, são relevantes para a composição e a evolução da sociedade. Em outras palavras, a convergência de interesses entre os sócios e suas qualidades pessoais e profissionais são consideradas importantes pilares na constituição da sociedade do tipo limitada.
A affectio societatis, durante muitos anos, era entendida como elemento fundamental para a continuidade da relação mantida entre os sócios da sociedade limitada, de modo que a sua perda, por si só, poderia ser interpretada como causa suficiente para a exclusão extrajudicial de sócios da sociedade. As controvérsias entre os sócios então, quando submetidas à análise do Poder Judiciário, acabavam, na prática, em dissolução parcial da sociedade, mediante a saída de determinados sócios da sociedade e apuração de seus haveres.
No entanto, esse entendimento jurisprudencial vem sendo reformulado, consolidando a interpretação de que o mero rompimento da affectio societatis entre os sócios não representa, individualmente, justo motivo para a exclusão extrajudicial de sócios, devendo ser provados o risco à continuidade da sociedade e os atos de inegável gravidade praticados pelo sócio que se pretende excluir para que se possa validamente operar sua exclusão.
Verificada a inexistência de ato de inegável gravidade praticado pelo sócio excluído, os tribunais têm decidido pela invalidade da reunião/assembleia de sócios que ensejou a sua exclusão. Em decorrência disso, o que ocorre é o retorno à situação imediatamente anterior à deliberação de exclusão, ou seja, a “reintegração” do sócio no quadro societário da sociedade da forma como constava previamente à deliberação de sua exclusão, como se não tivesse havido a exclusão.
Mas como fica este “reintegração” do sócio na sociedade limitada? Em termos de direitos e obrigações dos sócios já sabemos por onde nortear a resposta. Mas e as desavenças que motivaram a exclusão? Certamente aumentarão com a decisão judicial que decretar a invalidação da deliberação de exclusão, destruindo ainda mais a boa relação entre os sócios que motivou originalmente a constituição da sociedade. São tais sócios obrigados a permanecerem sócios para o resto da vida? E a vedação constitucional de que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”?
Sabemos também que essas desavenças entre os sócios acabam por destruir, muitas vezes, o valor da sociedade, que verá dificuldades em continuar desenvolvendo suas atividades e atingir o seu fim. Não sendo reconhecida a dissolução parcial da sociedade, que alternativa resta aos sócios e à sociedade? Como lidarão entre si após a quebra da affectio societatis e a “reintegração” do sócio excluído na sociedade? Dissolução total da sociedade e encerramento das atividades? E o princípio da preservação da empresa?
Essas e muitas outras reflexões continuarão alimentando as discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema que, desde a pandemia, se intensificou nos escritórios de advocacia, nos distribuidores cíveis e nas câmaras de arbitragem, permanecendo fundamental a necessidade da defesa dos direitos e interesses dos sócios e da sociedade durante toda sua existência e relacionamento, desde, inclusive, a redação do contrato social da sociedade, dentre outras medidas e atos societários, que ainda não podem ser desenvolvidas pela famigerada inteligência artificial.
Tomás Bussamra Real Amadeo é advogado responsável pelas áreas de Direito Societário, Contratual e M&A do Chamon, Serrano e Amorim Advogados (CSA Advogados).
Luísa Darin é advogada da área de Direito Societário, Contratual e M&A do Chamon, Serrano e Amorim Advogados (CSA Advogados).