André Campos: Advogados são aprovados em concursos públicos?

Embora possa despertar algum estranhamento, o título deste artigo é apenas uma provocação. Advogados são aprovados em concursos públicos quase todos os dias, nas mais diversas regiões do país, para os mais distintos cargos e empregos, nas mais diferentes instituições [1].

Mas, então, qual a razão do título? A razão é que, devido a fatores relacionados à sua peculiar situação laboral, os advogados enfrentam obstáculos específicos em seleções públicas, que não são enfrentados por outros concorrentes.

O objetivo aqui é formular hipóteses explicativas para as dificuldades que os advogados encontram em concursos. Dificuldades que não são partilhadas por outros profissionais  como, por exemplo, os analistas que já trabalham no sistema de Justiça.

Essas hipóteses são construídas a partir da utilização de evidências empíricas, provenientes de fontes de informações já sistematizadas e disponíveis em outros artigos publicados (Campos e Benedetto, 2020; Campos e Cunha, 2020; Cunha e Campos, 2019) [2].

As técnicas de análise desse conjunto de evidências envolvem a jurimetria, de natureza descritiva e inferencial. Com destaque para a análise de indicadores de posição, dispersão e distribuição, que estão detalhados nos artigos citados acima.

Com tais fontes e técnicas, o objetivo é averiguar o número e o perfil dos advogados em atuação hoje no país. E, na sequência, investigar o seu desempenho em concursos públicos relevantes na área jurídica (como, por exemplo, o concurso da magistratura do trabalho). Por fim, o objetivo é formular hipóteses que ajudem a explicar o desempenho dos advogados nesses certames.

Este artigo é um exercício de pesquisa empírica em Direito, que é um campo de conhecimento científico que vem ganhando espaço na academia jurídica brasileira [3]. Com diversas evidências empíricas, tratadas com variadas técnicas de análise, procura-se desenvolver hipóteses para explicar fenômenos que impactam os advogados hoje no Brasil.

Advogados em atuação hoje no Brasil

De quais advogados está se falando neste artigo? Está se falando dos advogados que, tipicamente, são profissionais autônomos (ou não assalariados) [4]. De acordo com as informações mais recentes do IBGE, há 607,3 mil advogados desse tipo em atuação no país [5].

Esses advogados se concentram nas regiões sudeste (53,1% dos 607,3 mil), sul (18,8%) e nordeste (13,0%). Em termos médios, eles estão há 10,8 anos nos mesmos escritórios, trabalhando 38 horas por semana, com uma remuneração bruta mensal de R$ 6.288,83.

Apesar desses valores médios, há uma diferenciação (ou desigualdade) bastante acentuada em meio a esses advogados. Como exemplo, muitos profissionais trabalham há pouco tempo em seus escritórios, ao passo que outros permanecem por mais de 50 anos nos mesmos locais. Além disso, muitos advogados são remunerados com valores próximos ao salário mínimo, ao passo que outros recebem R$ 200 mil ao mês.

Ou seja, é possível definir um perfil dos profissionais da advocacia: estão localizados no Sudeste, há mais de uma década no mesmo escritório, trabalhando 38 horas por semana e recebendo cerca de R$ 6,3 mil brutos por mês. Mas, ao mesmo tempo, é preciso mencionar que esse perfil é heterogêneo, com uma diferenciação interna acentuada.

Advogados no concurso da magistratura do trabalho

Qual é o desempenho dos advogados em concursos públicos relevantes da área jurídica? Para responder essa pergunta, utilizam-se evidências empíricas colhidas em um certame recente, grande e importante da magistratura brasileira [6].

O 1º Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho (doravante CPNU) foi organizado pelo TST, no período 2017-18, com o intuito de selecionar candidatos ao cargo de Juiz Substituto do Trabalho.

Esse concurso foi o primeiro da história da Justiça do Trabalho com um perfil realmente nacional. Ademais, foi o maior concurso da história desse ramo especializado. Nada menos que 13.604 candidatos tiveram suas inscrições preliminares deferidas, estando aptos a participar da primeira etapa do CPNU (prova objetiva).

Desses candidatos, 1.340 foram aprovados para a etapa seguinte, que demandava a realização da prova discursiva. E, em meio a esses, 540 foram aprovados para a próxima etapa, que consistia na realização da prova de sentença.

Desses candidatos, 279 foram aprovados e seguiram para a etapa de inscrição definitiva no CPNU (que exigia uma série de documentos, a comprovação de um conjunto de experiências, a conformidade com a opção por vagas reservadas, bem como exames de sanidade).

Os candidatos que obtiveram a inscrição definitiva se limitaram a 269, que seguiram para a etapa seguinte (prova oral). Nesta última, 229 conseguiram a pontuação para seguir para a etapa de avaliação de títulos, sendo aprovados no concurso.

Ao longo de todas essas etapas, qual foi o desempenho dos advogados? A expectativa era que, com o conhecimento teórico acumulado, bem como com a experiência prática angariada [7], esses profissionais teriam um desempenho destacado no certame. Mas não foi isso o que ocorreu.

Segundo as informações do CPNU, os candidatos que possuíam experiência como advogados autônomos perderam espaço no concurso, conforme as etapas se sucederam. Em meio ao total inicial de inscritos, eles correspondiam a 19,7%. Por sua vez, junto ao total de habilitados na prova oral (ou seja, aprovados no certame), eles equivaliam a apenas 10,9%  cerca de metade do percentual anterior.

Quais candidatos ganharam espaço no concurso? Ao longo das diversas etapas, um perfil específico se destacou: o dos que já tinham experiência profissional como assalariados no setor público  e, de forma específica, no Poder Judiciário (em algum de seus órgãos, federais ou estaduais, nos mais diversos ramos).

Esse perfil de candidatos é composto por profissionais como os analistas judiciários (ou seus similares em órgãos do sistema de Justiça  Ministério Público, Defensoria Pública etc.). Em meio aos inicialmente inscritos no concurso, esses profissionais correspondiam a 32,5% do total. Mas, junto aos habilitados na prova oral (aprovados no certame), eles equivaliam a 62,1% do total  quase o dobro da porcentagem anterior.

Porque advogados não são aprovados

Que hipóteses podem ser suscitadas para explicar esse fenômeno? De maneira específica, é um exercício de pesquisa empírica “sociolaboral”. Nesse sentido, aventam-se hipóteses que se referem às condições de trabalho dos profissionais — e, em particular, aos seus tempos de trabalho.

Provavelmente, não se trata da duração dos tempos de trabalho, refletida na jornada semanal, por exemplo. Como examinado acima, os advogados laboram, em média, 38 horas por semana. Esse número é bastante similar ao da jornada de outros profissionais, como os analistas judiciários (que, de acordo com editais recentes de seleção do TST, trabalham 40 horas semanais) [8].

Se trata, ao invés, da distribuição dos tempos de trabalho. Ou seja, no desenvolvimento de suas atividades cotidianas, os advogados enfrentam variabilidades e, também, imprevisibilidades acentuadas em seus tempos de trabalho. E isso afeta sua capacidade de preparação e participação em concursos públicos relevantes na área jurídica  que, não raro, levam meses ou mesmo anos para serem concluídos, demandando esforços e investimentos contínuos nesse intervalo [9].

É bastante comum que as demandas da clientela sejam irregulares e, também, que surjam de modo inesperado. E, dada a importância de um fluxo adequado de remuneração, elas não podem ser simplesmente recusadas pelos advogados [10].

Ademais, essas demandas impõem prazos imperativos e exíguos, seja para iniciativa ou para resposta. Isso pode ser verificado nos atos judiciais mais corriqueiros, como apresentação de liminares, realização de contestações etc.

Situação distinta é experimentada pelos profissionais que são assalariados, como os analistas judiciários (ou similares em outros órgãos de Justiça). Em suas atividades cotidianas, esses profissionais contam com constância e previsibilidade. Sua jornada é pré-definida, tanto em termos diários quanto semanais. Além de que contam com períodos pré-estabelecidos de férias e recessos anuais, sem mencionar os períodos eventuais de licença do trabalho (mesmo que se trate de licença não remunerada).

E, a este propósito, por mais que a remuneração desses profissionais assalariados possua componentes variáveis (como gratificações por atividade, por desempenho etc.), ela quase sempre independe do montante da demanda judicial existente.

Dessa maneira, comparativamente aos advogados, os profissionais que são assalariados (como os analistas judiciários e similares) contam com melhores possibilidades para se preparar e participar de concursos públicos. Ainda mais quando se tratam de certames que têm maior destaque na área jurídica, que demandam muito tempo e dinheiro para efetiva aprovação, como é o caso já analisado do CPNU.

Enfim, este artigo é somente um exercício de pesquisa empírica em Direito. Com diversas evidências empíricas e variadas técnicas de análise, ele apresenta hipóteses para explicar porque os advogados autônomos têm mais dificuldades para conseguir aprovação em concursos públicos.

Apesar de todo o conhecimento teórico e toda a experiência prática, esses advogados enfrentam condições adversas, quando comparados com “concorrentes” como os analistas judiciários e profissionais similares. Condições particularmente adversas em termos de tempos de trabalho, que são irregulares, variáveis, imprevisíveis e assim por diante.

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Referências

ARAÚJO, F. M. (Org.). O I Concurso Público Nacional Unificado da magistratura do trabalho. Brasília: Enamat/TST, Ipea, 2022.

CAMPOS, A. G.; BENEDETTO, R. D. Mercado de Trabalho Jurídico no Brasil: Qual é a Situação Atual? Brasília: Ipea, 2021.

CAMPOS, A. G.; CUNHA, A. S. Seletividades no 1º Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho. Brasília: Ipea, 2020.

CUNHA, A. S.; SILVA, P. E. Pesquisa Empírica em Direito. Rio de Janeiro: Ipea, 2013.

CUNHA, A. S.; CAMPOS, A. G. Seleção e recrutamento de magistrados e acesso à Justiça do Trabalho. Brasília: Ipea, 2019.

FEITOSA, G. R.; PASSOS, D. V. O Concurso Público e as Novas Competências para o Exercício da Magistratura: uma análise do atual modelo de seleção. Seqüência (Florianópolis), nº 76, p. 131–154, ago. 2017.

FONTAINHA, F. Interação Estratégica e Concursos Públicos: Uma Etnografia do Concurso da Magistratura Francesa. Dados, v. 58, nº 2, p. 1057–1098, 2015.

FREITAS, G. M. B. Seleção de magistrados no Brasil e o papel das escolas de magistratura: algumas reflexões para a magistratura do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, v. 47, nº 77, p. 193–210, jun. 2008.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Microdados disponíveis em: <https://tinyurl.com/2p8nt69v>. Acesso em: 12 fev. 2023.

MOSZKOWICZ, M. G. O papel das escolas de magistratura na seleção e formação do magistrado contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV-RJ, 2010.

SILVA, F. S. Vetores, desafios e apostas possíveis na pesquisa empírica em direito no Brasil. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 3, nº 1, p. 24–53, jan. 2016.

XAVIER, J. Algumas Notas Teóricas Sobre a Pesquisa Empírica em Direito. FGV Direito  Research Paper Series, p. 35, 2015.

André Gambier Campos é docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP), pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Governo Federal (Ipea), mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

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