No final de 2019 foi publicada no Estado do Rio de Janeiro a Lei Complementar Estadual 187, de 23 de dezembro de 2019, a qual acrescentou, por seu artigo 2º, um parágrafo único ao artigo 11 da Lomperj, que, após a alteração, passou a ter a seguinte redação: “Art. 11 – Compete ao Procurador-Geral de Justiça: (…) Parágrafo único – As diretrizes de atuação estabelecidas no planejamento estratégico do ministério público, antecedido de consulta à classe e aprovado pelo procurador-geral de justiça, terão caráter vinculante para os órgãos administrativos e de execução“.
Em que pese a aparente boa intenção legislativa, a previsão de que as diretrizes de atuação terão caráter vinculante para os órgãos de execução do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, padece de claro e frontal vício de inconstitucionalidade material, em razão de conflito com o princípio institucional da independência funcional.
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro prevê, em seu artigo 170, §1º, o princípio da independência funcional como um dos princípios institucionais do Ministério Público: “Art. 170. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. §1º. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
Neste igual sentido é o texto da Constituição da República: “Art. 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
Ressalte-se que a regra envolve norma de reprodução obrigatória de efeito cogente para todos os estados da Federação. Vale dizer, a norma prevista no artigo 170, §1º da Cerj constitui comando cogente. As normas de reprodução obrigatória são normas cogentes, de modo que, ainda que a Carta Estadual fosse silente, tal norma estaria presente de forma implícita como norma central. Tanto é que nestes casos o próprio STF admite recurso extraordinário em face de acórdão do Tribunal de Justiça quando a norma envolver reprodução obrigatória: “Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos estados” (STF. RE 650.898-RS, Plenário. Rel. originário ministro Marco Aurélio, rel. para acórdão min. Roberto Barroso, julgado em 1/2/2017) (repercussão geral).
Além disso, admite-se o cabimento de recurso extraordinário contra acórdão do Tribunal de Justiça em representação de inconstitucionalidade, quando a norma questionada for norma de reprodução obrigatória: “Tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade da competência do Tribunal de Justiça local – lei estadual ou municipal em face da Constituição estadual –, somente é admissível o recurso extraordinário diante de questão que envolva norma da Constituição Federal de reprodução obrigatória na Constituição estadual. (…)” (STF, 2ª Turma. RE 246.903 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgado em 26/11/2013).
O ponto é pertinente. Explico. Analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em artigo publicado na Universidade de Lisboa, em especial o precedente da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.076/AC, relator ministro Carlos Velloso, Pleno (j. 15/8/2002, verificamos que a Corte Suprema exemplifica exatamente as garantias do Ministério Público como hipótese de norma de reprodução obrigatória (In: MALUF, André Luiz. MEDIDA PROVISÓRIA MUNICIPAL E NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA: STANDARDS E POSSIBILIDADES. Revista Jurídica da Universidade de Lisboa – RJLB, Ano 7 (2021), nº 2) [1].
A LC 187/2019 ao dar caráter vinculante a estas diretrizes para órgãos de execução do Ministério Público, o que engloba os procuradores de Justiça e os promotores de Justiça, nos termos do artigo 7º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados (Lei 8.625/93) acaba por atentar contra o princípio da independência funcional, norma de reprodução obrigatória na Constituição do Estado.
A prerrogativa de independência funcional é a principal conquista do Ministério Público no atual modelo constitucional. Ele não vinha previsto em nenhuma das constituições ab-rogadas, desde que o Brasil se tornou um Estado Constitucional, com a Constituição Imperial de 1824.
Para além de ser a principal conquista do Ministério Público, o princípio da independência funcional é, principalmente, uma garantia da sociedade. Com efeito, é graças a independência funcional que os membros do Ministério Público podem atuar com liberdade, adstringindo-se apenas à ordem jurídica, sem a interferência de chefias e de políticos, com suas agendas e ideologias.
A experiência histórica acumulada pelos Constituintes era de resistência a estados totalitários, seja na época Era Vargas, seja na época do regime militar. Havia forte vigilância interna e a instituição era, de fato, hierarquizada. Era comum que procuradores-gerais interviessem, junto a promotores de Justiça em comarcas no interior, para direcionar a atuação num ou noutro sentido, especialmente quando se tratasse de denúncias e representações contra vereadores, prefeitos, secretários, políticos ou outras autoridades. Esse é um dos aspectos da independência funcional: o de que o membro é livre para interpretar e aplicar o Direito conforme sua convicção jurídica motivada.
Hugo Nigro Mazzilli, um dos “pais fundadores” do MP atual, ressalta exatamente isso: que o princípio da independência funcional implica em plena liberdade de convicção e atuação do membro (In: Funções institucionais do Ministério Público. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 86. n. 310. p. 5- 18. abr./jun. 1990).
O membro do Ministério Público, no exercício de suas funções, tem inteira autonomia. Não fica sujeito a ordens de quem quer que seja, nem a superiores hierárquicos. Se vários membros do Ministério Público atuam em um mesmo processo, cada um pode emitir seu parecer conforme sua convicção pessoal acerca do caso; não estão obrigados a adotar o mesmo entendimento do colega que antes oficiara, ou mesmo do que oficia concomitantemente.
Isto não significa que não há hierarquia ou chefia institucional dentro do Parquet. No entanto, em decorrência da independência funcional, a hierarquia no Ministério Público existe apenas em relação a atos administrativos e de gestão. Jamais poder-se-ia vincular a atuação fim, funcional, a ordens vinculantes superiores, ainda que sob a forma de diretriz.
Em recente decisão (22/2/2022), o ministro Dias Toffoli do STF proferiu liminar em sede de medida cautelar ADPF 881-DF movida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), contra o artigo 319 do Código Penal, no intuito de afastar a possibilidade de incidência do crime de prevaricação à atividade de livre convencimento motivado dos membros do Ministério Público (ou “crime de hermenêutica”, como foi popularmente conhecido) e do Poder Judiciário, bem como em face dos artigos 3º-B, incs. V, VI, VII, VIII, IX e XI, 127, 156, inciso I, 242, 282, §§ 2º, 4º e 5º, e 311 do Código de Processo Penal, para que seja excluída a possibilidade de deferimento de medidas na fase de investigação sem pedido ou manifestação prévia do Ministério Público.
Conforme a decisão do ministro: “Feito esse registro, anoto que a Constituição Federal assegura a autonomia e a independência funcional ao Poder Judiciário e do Ministério Público no exercício do seu mister, sendo, portanto, UMA PRERROGATIVA INDECLINÁVEL, que garante aos seus membros A HIPÓTESE DE MANIFESTAREM POSIÇÕES JURÍDICO-PROCESSUAIS E PROFERIREM DECISÕES SEM RISCO DE SOFREREM INGERÊNCIA OU PRESSÕES POLÍTICO-EXTERNAS.” (…)como assentiu a Procuradoria-Geral da República em sua manifestação, “também em relação ao Ministério Público, cuidou o texto constitucional de assegurar-lhe importantes garantias de autonomia e de independência funcional, as quais expressam A LIBERDADE DO PARQUET NO EXERCÍCIO DE SEU MISTER CONSTITUCIONAL, COMO INSTITUIÇÃO LIVRE DE INTERVENÇÕES E INGERÊNCIAS INDEVIDAS por parte do Judiciário, do Legislativo e do Executivo, subordinada apenas aos ditames da lei e da Carta Maior”. Tanto é assim que, tal como previsto no artigo 41 da Loman, o artigo 41, inciso V, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8.625/93) estabeleceu como prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, “gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional” (…) “Logo, é imperativo que se afaste qualquer interpretação do art. 319 do CP que venha a enquadrar as posições jurídicas dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público — ainda que “defendam orientação minoritária, em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos” — em mera “satisfação de interesse ou sentimento pessoal” (STF, MC na ADPF 881-DF, rel. min. Dias Toffoli, 22/02/2022).
Neste sentido, também é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da instituição. O postulado do promotor natural limita, por isso mesmo, o poder do procurador-geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos ministros Celso de Mello (relator), Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso. Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do promotor natural: necessidade da interpositio legislatoris para efeito de atuação do princípio (min. Celso de Mello); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (min. Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso). (HC 67.759, rel. min. Celso de Mello, j. 6-8-1992, P, DJ de 1º-7-1993.) = HC 103.038, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 11-10-2011, 2ª T, DJE de 27-10-2011.
A manutenção daquela lei no ordenamento jurídico é perigosa: em eventual descumprimento daquela norma “vinculante”, o membro do parquet poderá sofrer sanção disciplinar, o que coloca em xeque à liberdade de atuação e a independência funcional e técnica dos (re)presentantes do Ministério Público Estadual. Ademais, manter ato normativo patentemente inconstitucional em vigor prejudica o Estado de Direito, enfraquecendo a supremacia da Constituição Federal e da Constituição Estadual.
A independência do Parquet como órgão de controle é essencial para a própria sociedade como uma garantia cívica. Sobretudo, esse ponto se aplica aos Promotores que atuam diretamente na linha de frente em contato com os cidadãos e a população local, em especial em comarcas menores: a liberdade para que o membro do Ministério Público possa avaliar a realidade específica da localidade, à luz da sua independência e do ordenamento jurídico, é fundamental para a proteção social e promoção da justiça.
Prova de que a independência funcional, aliada ao livre convencimento motivado, é essencial para o Estado Democrático de Direito foram as recentes decisões tomadas pelo excelentíssimo ministro Cristiano Zanin com imensa independência em casos polêmicos envolvendo decriminalização do porte de drogas e equiparação de ofensas a pessoas LGBT à injúria racial, cujo teor foi criticado por setores da sociedade civil que esperavam um alinhamento ideológico do indicado pelo atual presidente.
Os ataques de per se, além de infundados, eis que os votos de Sua Excelência foram devidamente motivados, nos termos da Constituição, demonstram que a independência funcional é fundamental para o exercício da jurisdição livre de amarras; o que igualmente se aplica à atuação funcional do Parquet.
A independência judicial é uma garantia do cidadão para assegurar julgamentos livres de pressões, mas de acordo com a lei e o direito (MS 29.465/MC-AgR – rel. min. Celso de Mello, Dj. 24/8/2015).
Neste sentido, também entende o ministro Barroso: “Os magistrados gozam de plena liberdade de convicção e autonomia funcional no exercício do mister jurisdicional, sendo certo, ademais, que a própria Loman, em seu art. 41, lhes garante o direito de não serem punidos ou prejudicados pelas opiniões que manifestarem ou pelo teor das decisões que proferirem, excetuadas as hipóteses de impropriedade ou excesso de linguagem, o que não é o caso. O Supremo Tribunal já assentou que ‘o ordenamento jurídico brasileiro, ao estabelecer os princípios da independência e da livre convicção motivada, o que faz em benefício dos jurisdicionados, não admite a glosa ou a impugnação às decisões judiciais que não seja pela via judicial, sob pena da nefasta criminalização da hermenêutica‘” (Inq nº 4.744-AgR/DF, 1ª Turma, relator o ministro Roberto Barroso, DJe de 11/10/2019).
Um Estado Democrático de Direito “para valer” depende do respeito às regras do jogo democrático para todos, com os bônus e ônus inerentes à democracia. Além disso, é fundamental o respeito aos pensamentos diversos, ainda que minoritários, e é imperioso a observância intransigente das garantias institucionais e funcionais da magistratura e das carreiras que compõem as funções essenciais à Justiça: advocacia pública e privada, Defensoria Pública e Ministério Público.
[1] Conforme o voto do relator baseado nas lições de Raul Machado Horta, normas de reprodução obrigatória, seriam aquelas normas centrais que constituem o setor da Constituição total do Estado Federal que são projetadas nos Estados. Ele ressalta como normas centrais que formam o setor da Constituição total: as normas dos direitos e garantias fundamentais, as normas de repartição de competências, as normas de Direitos Políticos, as normas de pré-ordenação dos Poderes dos Estados, as normas de princípios constitucionais enumerados – forma republicana, sistema representativo, regime democrático e autonomia municipal – as normas da administração pública, AS NORMAS DE garantia do poder judiciário e do ministério público, as normas-princípios gerais do Sistema Tributário, as normas de limitação e de instituição do poder tributário, as normas- princípios gerais da atividade econômica. (grifo nosso). In: MALUF, André Luiz. MEDIDA PROVISÓRIA MUNICIPAL E NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA: STANDARDS E POSSIBILIDADES. Revista Jurídica da Universidade de Lisboa – RJLB, Ano 7 (2021), nº 2, p. 139/140
André Luiz Maluf é procurador do município de Juiz de Fora, advogado, mestre em Direito Constitucional pela UFF, ex-professor substituto de Direito Administrativo da UFF, ex-subprocurador geral municipal, especialista em Diritto Público Comparato pela Università di Siena, pós-graduado em Direito Público e editor do Academia.Edu.