Antonella Galindo: Direito à identidade de gênero

“Não tem nada horroroso

Em querer ser diferente

No mundo tem muita regra

Que não se faz coerente

Ser homem ou ser mulher

Não é marca com patente.




Travesti também merece

Uma digna existência

Pois os direitos humanos

Não são de ambivalência

Valem para todo mundo

Com muita polivalência”.


Jarid Arraes: Cordel — Travesti não é bagunça

Está para entrar novamente na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal) o julgamento do RE 845.779/SC, que diz respeito aos danos morais que teria sofrido uma mulher trans em um shopping center de Santa Catarina ao adentrar o banheiro feminino, tendo sido abordada por funcionários do estabelecimento para que usasse o masculino, já que supostamente seria homem, e forçada a se retirar da toalete das mulheres. Em razão disso e pelo constrangimento público, esteve em estado nervoso tal que não conseguiu se controlar, fazendo suas necessidades fisiológicas na própria roupa e na frente de inúmeras pessoas que transitavam próximas ao referido banheiro.

Houve dissenso judicial estabelecido entre o Juízo de 1º Grau que julgou procedente a ação contra o estabelecimento e do 2º Grau que reformou a decisão, entendendo não ter havido danos morais, mas meros dissabores. Interposto Recurso Extraordinário perante o STF, este foi admitido, bem como sua repercussão geral reconhecida. Levado ao Plenário da Corte, foi provido pelo relator, ministro Roberto Barroso e pelo ministro Edson Fachin, tendo sido feito pedido de vistas pelo ministro Luiz Fux em 19/11/2015.

Somente em 19/6/2023 os autos foram devolvidos para novamente ir a julgamento, após a alteração no Regimento Interno do Tribunal que estabelece limite temporal para o pedido de vistas por parte dos ministros e ministras da Corte. No momento em que escrevo essas linhas (agosto de 2023), aguarda-se sua colocação em pauta.

Para problematizar adequadamente esse julgamento e a importância da decisão a ser proferida, é necessário abordar duas questões: o que seria esse direito à identidade de gênero como direito fundamental e quais as suas consequências jurídicas e sociais em situações concretas como a do uso de banheiro público a partir da própria identidade de gênero autorreconhecida.

A título de definição, a identidade de gênero diz respeito ao entendimento que a pessoa tem em relação ao gênero do qual faz parte. Como destaca Paulo Iotti Vecchiatti, o termo “gênero” significa tradicionalmente o conjunto de características atribuídas às pessoas a partir de seu sexo biológico com base na presunção de que que determinadas atitudes e posturas seriam inerentes ao homem ou à mulher, criando-se conceitos de masculinidade e feminilidade a partir dessas expectativas sociais sobre tais comportamentos [1].

Pode-se afirmar de um modo mais genérico que uma pessoa transgênero é aquela que não se sente em conformidade com o gênero atribuído no momento do nascimento, quando essa atribuição é baseada na observação da genitália da pessoa nascida. Ou seja, alguém que nasce com pênis e testículos, mas tem identidade de gênero feminina, seria uma mulher trans, ao passo que alguém que nasce com vagina e útero, mas se sente pertencente à identidade de gênero masculina, é um homem trans. A seu turno, pessoas cisgênero são aquelas que se sentem em conformidade com o gênero atribuído ao nascerem, não sentindo a incongruência que a primeira sente [2].

Como a pessoa transgênero não se identifica com as expectativas sociais de comportamentos masculinos ou femininos, tende a rejeitá-las em profundidade e assume a maior parte dos comportamentos normalmente associados ao seu gênero psíquico e não ao atribuído com base na genitália.

O direito à identidade de gênero seria, em essência, o direito do indivíduo a ser socialmente a pessoa que é, cisgênero ou transgênero, e, em consequência disso, ser tratada no gênero com o qual se identifica para todos os efeitos, inclusive de adequação documental, tratamentos de saúde, trajetória escolar, inclusão na educação e no mercado de trabalho, bem como de proceder na vida social de acordo com os padrões desse gênero autoidentificado.

É bem verdade que há certa dificuldade com a discussão dos direitos LGBTI+ de modo geral, e das pessoas transgênero em particular. Muitos tabus em decorrência de fundamentos religiosos e culturais das práticas historicamente discriminatórias com esse segmento de pessoas antes invisibilizadas, e hoje mais politicamente ativas e buscando o exercício de seus direitos em patamar de igualdade com as demais. Mas não é menos verdade que o mundo civilizado contemporâneo tem reconhecido com maior frequência a igualdade e a não discriminação como fundamentos constitucionais dos direitos LGBTI+, embasando consequentemente o exercício concreto desses direitos.

No âmbito internacional, é de se destacar os Princípios de Yogyakarta, princípios acerca da aplicação da legislação internacional dos direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, contemplados em documento encomendado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, publicado em março de 2007. Esses princípios inspiram em grande medida o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Parecer Consultivo OC-24/2017, no qual a Corte reconhece inúmeros direitos referentes à identidade de gênero e orientação sexual, incluindo, é claro, os direitos da personalidade.

Vários países como Alemanha, Portugal, Reino Unido, Canadá, Argentina e muitos Estados nos EUA têm elaborado legislação protetiva e de reconhecimento de direitos LGBTI+. Deste último país, aliás, vêm contribuições relevantes para o debate específico do que ficou conhecido como “direito dos banheiros” (bathroom law), sendo objeto de várias discussões relevantes por lá.

O Parecer da Procuradoria Geral da República no RE 845.779/SC destaca caso bastante emblemático julgado na Suprema Corte do Estado de Maine, nos EUA, que em janeiro de 2014, ao julgar o Caso John Doe et. al. Regional School Unit 26, reconheceu que estudantes trans devem ser autorizados a utilizar em suas escolas os banheiros referentes ao gênero com o qual se identificam, sob pena de violarem à Lei Estadual dos Direitos Humanos que veda discriminação com base na orientação sexual, aqui estendendo a Corte para os casos de autodeterminação da identidade de gênero. Prevalece, portanto, a não discriminação [3].

Em relevante artigo nacional sobre a temática, Raupp Rios e Resadori fazem um levantamento de casos judicializados até 2015 no Brasil, percebendo uma disparidade de julgamentos envolvendo a questão com decisões que ora reconhecem ora negam indenizações por danos morais decorrentes da violação do direito ao uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero autodeterminada [4]. Em função dessas discrepâncias, evidenciou-se com ainda mais clareza a repercussão geral reconhecida pelo STF para admissão do RE 845.779/SC.

Em quase oito anos de distância temporal que nos separa do pedido de vistas do ministro Luiz Fux, aumentou na sociedade brasileira uma resistência considerável a direitos LGBTI+, e mais enfaticamente de pessoas trans. Especialmente no plano político geral, a ascensão de lideranças refratárias a esses direitos é notória, inclusive com o cometimento por uma delas do crime de transfobia em plena tribuna da Câmara dos Deputados, como escrevi em outra oportunidade aqui mesmo nesta ConJur [5], bem como uma espécie de ativismo antitrans mundial com questionamentos que vão desde a existência de uma suposta “ideologia de gênero” a proibições apriorísticas de participação das mulheres trans em competições esportivas, passando por questões básicas como a que norteia o RE a ser julgado do simples uso de um banheiro público sem temor de sofrer constrangimento ou violência em razão de sua transexualidade.

Por outro lado, o STF tem julgado ao longo dos últimos anos em consonância com a igualdade e a não discriminação constitucionalmente prevista, mesmo por vezes lançando mão daquilo que denominei em outra ocasião de legalidade oblíqua e contramajoritária [6]. Para a população LGBTI+, o STF estabeleceu proteção jurídica de modo até mais abrangente do que o uso de toaletes de acordo com a autodeterminação de gênero, sendo de se destacar a criminalização da lgbtfobia através da decisão na ADO 26 (relator ministro Celso de Mello, DJe 6/10/2020), estendendo o entendimento sobre racismo social à injúria lgbtfóbica (MI 4733-ED, relator ministro Edson Fachin, j. 21/08/2023), bem como o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas na ADI 4.277 (relator ministro Ayres Britto, DJe 14/10/2011), o que posteriormente propiciou a regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo gênero através de iniciativa do Conselho Nacional de Justiça que, em sua competência constitucional normativa, editou a Resolução 175/2013 tratando do tema. No que diz respeito especificamente à população trans, o julgamento da ADI 4.275 (Rel. p/ Ac. Ministro Edson Fachin, DJe 7/3/2019) foi de enorme relevância, pois garantiu a mulheres e homens trans o direito à alteração do prenome sem a necessidade de qualquer intervenção cirúrgica de redesignação sexual ou outra, ou de decisão judicial, sendo um procedimento a ser feito diretamente nos Cartórios de Registro Civil ante o exercício direto do direito à autodeterminação da identidade de gênero como direito da personalidade [7].

A questão do uso dos banheiros deveria ser, em tese, bem mais simples. O uso de banheiros destinados a um gênero específico é algo relacionado à autoidentificação do indivíduo, não importando se este é alguém cisgênero ou transgênero. No caso das mulheres trans, esse problema deveria ser ainda menor, pois em banheiros femininos (e digo isso por experiência própria) nenhuma de nós fica sem roupa na frente das demais. Mulheres se dirigem às cabines fechadas e lá fazem as suas necessidades fisiológicas sem que as demais possam ter qualquer ideia acerca de sua genitália. Nem é necessário chegar às discussões mais sofisticadas sobre gênero e sexo da teoria queer (Judith Butler) ou do reconhecimento (Nancy Fraser ou Axel Honneth), basta percebermos essas questões práticas elementares para chegarmos a consensos mínimos em termos de dignidade para esse segmento da população.

Necessário lembrar que a própria tradição de se ter banheiros públicos separados por gênero é algo relativamente recente em termos históricos. Na Antiguidade, gregos, persas, egípcios e principalmente romanos tinham banheiros comunitários sem necessária distinção de gênero. Esses banheiros, aliás, eram vistos por muitos desses e de outros povos como espaços de socialização, mais até do que de limpeza, higiene ou de fazer necessidades fisiológicas. Nas Idades Média e Moderna os banheiros muitas vezes inexistiam nas próprias residências. Somente na Inglaterra do século 19 temos a disseminação de banheiros públicos destinados somente a homens em razão das mulheres estarem adstritas naquela sociedade e em outras da época ao espaço privado do lar. Com o gradativo aumento da presença das mulheres no espaço público, os banheiros a elas especificamente destinados terminaram por ser uma solução alcançada ante essa demanda [8].

Não obstante, outras demandas foram surgindo em relação aos banheiros ao longo do tempo, mostrando que a utilização e reordenação desses espaços também pode ser alterada, não sendo algo apriorístico e imutável. Há demandas das pessoas com deficiência, de famílias com a necessidade de fraldários e espaços de prestação de assistência a crianças e/ou pessoas que necessitem de auxílio para sua higiene pessoal e que podem ter como acompanhantes pessoas de qualquer gênero.

O ministro Luiz Fux, ao justificar o pedido de vista, expôs que há no caso “desacordo moral bastante razoável”, o que exigiria que os ministros da Corte ouvissem atentamente o que a sociedade pensa a respeito. Complementou afirmando que poderíamos ter nesses espaços homens pedófilos ou tendenciosos à violência sexual se vestindo de mulher para seus fins criminosos [9]. Já ouvi alegações semelhantes, mas nem S. Exa. nem essas pessoas que as fizeram mostraram quaisquer evidências de que isso tenha ocorrido. Ainda que pontualmente isso possa ocorrer, não é plausível uma presunção a priori de potencial comportamento do tipo por parte das mulheres trans, quando praticamente na totalidade dos casos vão ali apenas para fazer o que qualquer outra mulher faz.

Na verdade, como destaca Terry S. Kogan, Professor da Universidade de Utah/EUA, a única evidência sólida a respeito de ataques violentos contra pessoas em banheiros públicos tem sido justamente contra indivíduos transgêneros [10]. Do mesmo modo, fazem Raupp Rios e Resadori quando afirmam que

Invoca-se que a utilização de banheiros por transexuais femininas coloca em risco a segurança das demais usuárias. Esse medo, à primeira vista concedível, não encontra substrato na realidade, nem é capaz de justificar tratamento sanitário restritivo. Isso porque não há qualquer dado concreto que ampare o temor de que transexuais sejam ameaças ou cometam violência contra usuárias de banheiros femininos, o que faz juridicamente ilegítima tal restrição, pois fundada em meras suposições preconceituosas desprovidas de qualquer suporte fático concreto. Ao contrário, o que se relata são episódios de violência moral e física contra transexuais femininas em tais ambientes, como referido na primeira parte [11].

Se considerarmos o princípio da proporcionalidade e sua tríade de subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), tal como concebido pela doutrina [12] e pelo próprio STF [13], a proibição do uso do banheiro público de acordo com a autodeterminação de gênero da pessoa trans não resiste ao teste clássico de proporcionalidade, já que se mostra inadequado para a promoção de um direito básico de personalidade desse segmento, desnecessário, pois não há qualquer evidência de violência como prática corrente de mulheres trans contra mulheres cis usuárias dos mesmos banheiros, bem como desproporcionalidade em sentido estrito, já que as hipotéticas vantagens que teriam mulheres cis de não se sentirem “constrangidas” (por razões de puro preconceito e estereótipo desprovidas de demonstração prática  repita-se) com a presença de mulheres trans no mesmo banheiro coletivo não compensam as imensas desvantagens que essas últimas terão com as prováveis violências que sofrerão por parte de homens, seja no aspecto sexual, seja mesmo agressões físicas por parte de transfóbicos, infelizmente frequentes no Brasil que estatisticamente é campeão mundial de homicídios de pessoas trans [14].

Como mulher trans, cidadã e jurista, espero que os demais ministros e Ministras sigam a linha dos votos dos ministros Roberto Barroso e Edson Fachin, garantindo o elementar direito de pessoas trans a usarem os banheiros públicos de acordo com o gênero com o qual se identificam e socialmente se expressam, como corolário de seus direitos de personalidade já reconhecidos como tais por várias decisões anteriores da Corte.

 


[1] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tutela jurídica de travestis e transexuais que não se submeteram à cirurgia de transgenitalização. In: FERRAZ, Carolina Valença & LEITE, Glauber Salomão (coord.). Direito à Diversidade. São Paulo: Atlas, p. 282, 2015. GOMES, Inês Espinhaço. Direitos fundamentais e identidade de género. In: LEÃO, Anabela Costa; GRACIA IBAÑEZ, Jorge & NETO, Luísa (orgs.). Vulnerabilidade e Direitos: Género e Diversidade. Porto: Universidade do Porto/CIJE, p. 62, 2021.

[3] PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. Parecer Nº 116706/2015 – ASJCIV/SAJ/PGR no RE 845779/SC. 21/10/2015, p. 28-30.

[4] RIOS, Roger Raupp & RESADORI, Alice Hertzog. Direitos humanos, transexualidade e “direito dos banheiros”. In: Direito & Práxis, vol. 6, nº 12. Rio de Janeiro: UERJ, p. 196-227, 2015.

[6] GALINDO, Bruno. O Estado laico segundo o Supremo Tribunal Federal: Aspectos da legalidade oblíqua e contramajoritária no Brasil. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife. Edição Comemorativa dos 130 anos da Revista Acadêmica, p. 56-79. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view252585.

[7] Está para ser publicado um ensaio de minha autoria especificamente sobre essa questão da autodeterminação da identidade de gênero. Por ora, a referência completa é Galindo, Antonella. Autodeterminação da identidade de gênero como direito fundamental das pessoas trans: uma leitura a partir do direito antidiscriminatório. In: BAHIA, Alexandre; RAMOS, Emerson & QUINALHA, Renan (orgs.). Novos Rumos dos Direitos LGBTI+ no Brasil. São Paulo: SESC, 2023 (prelo).

[8] CERVI, Thales de Almeida Nogueira; MISKOLCI, Richard; DIAS-DA-SILVA, Magnus R. & PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. O banheiro público como dispositivo de gênero. In: BAGOAS, v. 13, nº 20. Natal: UFRN, p. 344-347, 2019.

[11] RIOS, Roger Raupp & RESADORI, Alice Hertzog. Direitos humanos, transexualidade e “direito dos banheiros”. In: Direito & Práxis, vol. 6, nº 12. Rio de Janeiro: UERJ, p. 214, 2015.

[12] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 160ss.; SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais, nº 798. São Paulo: RT, p. 34-40, 2002.

[13] A título de exemplo, cf. HC 104410/RS, 2ª Turma, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 27/03/2012; ADI 6586, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 07/04/2021.

Antonella Bruna Machado Torres Galindo é professora associada e vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE; doutora em Direito pela UFPE com estágio doutoral na Universidade de Coimbra/Portugal; é mulher trans e seu nome de nascimento foi Bruno Galindo, nome sob o qual está registrada a maioria de seus textos (livros, artigos e ensaios) já publicados.

Consultor Júridico

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