Os meios de comunicação têm divulgado que estão avançando de modo célere os atos investigativos perpetrados pelos órgãos da Justiça relativos aos prejuízos materiais e à tipificação de possíveis culpas incidentes em civis golpistas. Observam, no entanto, que em relação aos militares insurgentes, os processos se encontram caminhando de maneira lenta, haja vista que só em data recente o Ministério Público Militar encaminhou à Justiça Comum as ações que abarcam os servidores de uniforme. Uma delas diz respeito a declarações golpistas. Outra é pertinente ao ataque a integrantes do Alto Comando do Exército. E uma terceira recai na Guarda Presidencial. Há ainda uma quarta enviada à PGR (Procuradoria Geral da República) relativa à chefia do Comando Militar do Planalto.
Tais meios também publicaram uma controvérsia alusiva ao órgão responsável pelos julgamentos, ou seja, Justiça Civil ou Justiça Militar. Muitos fardados defenderam a instância castrense porque a consideram apropriada e competente. Alegaram que se encontram submetidos a rigorosos códigos e suas atividades possuem particularidades diferenciadas. Por sua vez, os paisanos apontaram a jurisdição comum, pois acreditam que a Justiça Militar é corporativa, benevolente, um foro privilegiado. Coube ao ministro Alexandre de Moraes estabelecer que os inquéritos vão ocorrer no Supremo Tribunal Federal, haja vista que os crimes contra o Estado democrático de Direito, os atos terroristas e a tentativa de golpe de Estado não distinguem servidores públicos civis ou militares. Por sua vez, os integrantes da corte bélica consideraram aceitável a decisão do ministro.
A assunção inicial de tais processos pela Justiça Militar não causa estranheza, porquanto o julgamento dos fardados através dela tem sido contínuo desde há muito tempo. Veja-se que sua história começou nos primórdios do século 19 junto com a chegada da família real e o desenrolar da história a transformou em um dos ramos do Poder Judiciário ao lado das Justiças Eleitoral e do Trabalho. Ela se situa na confluência entre as instâncias militar e jurídica, se mostra como uma esfera heterogênea de atuação, é plasmada pelos cerimoniais forenses e atravessada pelas concepções e valores castrenses.
Verifica-se que, no decorrer de algumas décadas do período imperial, os processos contra os militares foram realizados de modo sumário, observando que a apuração de possíveis crimes e a instrução dos respectivos processos se deram através do Conselho de Investigação, enquanto que os crimes primários e as infrações disciplinares ficaram a cargo do Conselho de Disciplina. Destaque-se que logo após a proclamação da República, foi instituída uma comissão militar destinada a julgar fardados e civis saudosistas da monarquia. Na aurora do século 20, foram criadas circunscrições e auditorias militares ao lado dos Conselhos de Justiça Militar que se encarregaram de fazer cumprir a lei entre os fardados. Por meio da edição de um decreto, na década de 30, tanto militares quanto civis, subversores da ordem pública, foram submetidos ao julgamento da Justiça Militar. A Constituição de 1946 manteve a competência da Justiça Militar para processar paisanos e servidores de uniforme. Os golpistas de 1964 julgaram tanto militares quanto civis que cometeram crimes contra as Forças Armadas e a Segurança Nacional. A Carta Magna atual estabelece que os crimes militares definidos em lei devem ser julgados pelo foro castrense, bem como possibilita também o julgamento de civis que cometem crimes militares. Observe-se que que uma lei editada em 2017 ampliou a competência da Justiça Militar nos crimes contra civis em determinadas situações.
Quanto às transgressões que não se revelam como crimes militares, estas são ajuizadas pela Justiça Civil. Merece citação a presença do longevo Superior Tribunal Militar, instância mais elevada da justiça castrense, composto majoritariamente por juízes fardados.
Por meio desse breve resumo é possível identificar três peculiaridades marcantes da Justiça Militar. Primeira: ela sempre teve a pretensão da exclusividade, ou seja, de manter sob sua égide o julgamento de todos os delitos que possam ser praticados pelos integrantes da caserna. Segunda: a mesma insistiu no decorrer do tempo em conservar a prerrogativa de ajuizar ações de civis transgressores. Terceira: embora de modo reticente, ela admite que a Justiça Civil, em alguns casos, instaure processos contra os fardados.
Tais características possibilitam apresentar uma inferência que salta aos olhos, ou seja, a elevada autonomia dos militares, a qual, seguramente, é inadmissível em uma autêntica democracia. Segundo a história, ela é herança da liberdade profissional concedida aos fardados após o início da Idade Moderna, quando começou o processo de constituição dos Estados nacionais, geradores de Forças Armadas permanentes, cujos exemplos notórios incluem Portugal, Espanha e França, até o momento de seu auge com as unificações italiana e alemã no século 19. Entretanto, com o passar do tempo, a independência a eles concedida foi diminuindo de forma paulatina através da institucionalização de vários mecanismos de controle como tentativa de evitar que as armas possam vir a ser utilizadas contra a nação e procurar garantir a submissão dos mesmos às autoridades civis integrantes dos regimes democráticos, os quais, infelizmente, não vingaram em nosso país.
Note-se que o ímpeto de julgar paisanos, além de evidenciar o exacerbamento da autonomia, indica também que o sentimento de superioridade em relação aos civis, o desejo de tutelar a sociedade e o romântico devaneio pertinente ao soldado salvador, infelizmente, continuam presentes na subjetividade de muitos fardados.
Outrossim, cabe ressaltar que o ajuizamento de processos envolvendo militares delituosos, além de mirar a concretização da justiça, tende a se revelar como um eficiente recurso de controle democrático, caso regularmente seja feito por civis ou por eles inspecionados. Não é à toa que muitos países dotados de democracia enraizada retiraram da alçada militar, ou reduziram a poder militar nas ações judiciais incidentes em servidores de uniforme. Tais países se encontram devidamente sintonizados ao irrefreável movimento de civilinização, que de maneira célere se encontra reconfigurando as organizações castrenses e os militares que dela fazem parte.
Na Suécia, a estrutura da Justiça é composta por tribunais distritais, administrativos e de recursos, além de juizados especiais e do Supremo Tribunal. Não existem tribunais geridos por fardados. Qualquer julgamento de militares tem por base o Código Penal Sueco e a Lei de Responsabilidade Disciplinar na Defesa. Os casos corriqueiros de menor monta são apreciados pelos comandantes das unidades que podem aplicar somente as penalidades de advertência e dedução salarial. Eles contam com um assessor jurídico e um juiz para fornecer apoio em relação às questões disciplinares e atos investigativos.
Quando ocorre uma denúncia mais séria ela é enviada ao Ministério Público que decide a maneira pela qual o inquérito será realizado, se pela polícia militar ou se pela polícia civil. Após sua conclusão tal ministério também decide se instaura ou não um processo, e o procurador que pretende instituir uma ação penal deve apresentar à comarca local um pedido de citação referente ao fardado a ser acusado.
Na Alemanha, desde 1949 inexistem tribunais militares especiais e todas ações réprobas praticadas por cidadãos de uniforme são julgadas em varas criminais ordinárias por juízes civis. As infrações menores são examinadas pelos tribunais disciplinares ligados ao sistema de tribunais administrativos, os quais podem, no máximo aplicar a pena de 21 dias de detenção em um local denominado sala de vigilância.
Note-se, entretanto, que a Constituição germânica autoriza o governo criar tribunais militares especializados, desde que fundamentada em uma lei reguladora criada e aprovada pelo parlamento, para tratar de delitos cometidos por soldados enviados em missões ao exterior e de infrações praticadas por eles em situações de guerra. Apesar dessa anuência, pelo que se sabe, tal lei ainda não emergiu.
Na Áustria também não há tribunais militares e nem código de justiça militar. Os crimes militares graves são julgados com base no código penal nacional na Justiça Civil. Um acusado de homicídio, por exemplo, em uma base do Exército, obriga as autoridades castrenses fazerem uma notificação à polícia civil que vai buscá-lo e mantê-lo sob custódia até a data do julgamento. As infrações corriqueiras relativas à disciplina militar tais como ofensas pessoais e ausência sem licença são ajuizadas pelos comandantes de unidades, os quais podem aplicar as penalidades de repreensão e confinamento nos quartéis. Em tempos de guerra tribunais específicos podem ser designados para exame de denúncias. O militar condenado por tribunal civil perde a patente militar, é desonrosamente dispensado do serviço e deixa de contar com o soldo até então mensalmente recebido.
Nos Estados Unidos há um documento intitulado Código Uniforme da Justiça Militar promulgado pelo Congresso que contém todas as diretrizes regentes da Justiça Militar. As transgressões secundárias são examinadas pelo chefe imediato do transgressor. Delitos mais sérios demandam a atuação do comandante da base que pode tomar uma decisão após audiência onde devem estar presentes advogados e testemunhas do acusado. Se não concordar com a decisão final ele pode recorrer a outro comandante superior. Caso o comandante considere que o crime cometido é muito grave ele pode encaminhá-lo à Corte Marcial.
Vale ressaltar que a órgão de justiça mais elevado é o Tribunal de Apelação das Forças Armadas, o qual é totalmente constituído por juízes civis nomeados pelo presidente da República e tem o poder de rever o que foi decidido nas instâncias anteriores. Acima dele se encontra o último e o mais elevado recurso, ou seja, a Suprema Corte, também integrada por juízes paisanos indicados pelo primeiro mandatário do país.
Em Israel, a justiça castrense é composta pela Advocacia Geral da Justiça Militar, Divisão de Investigação Criminal da Polícia Militar e Juízos Militares, cujo órgão mais elevado é o Tribunal de Apelações. Nesse conjunto existe a figura do Advogado Militar Para Assuntos Operacionais, o qual é o encarregado de supervisionar todas as investigações e conduzir todos os processos relativos a diversos tipos de infrações tais como maus tratos, saques, abusos de autoridade e uso desproporcional da força.
Há também advogados pertencentes ao setor de defesa militar que prestam assessoria e representação jurídica a qualquer servidor de uniforme. Porém, todas essas atividades são diretamente supervisionadas pelo procurador-geral do país, um civil. Ele detém o poder de revisar todas as decisões tomadas pelos militares e pode acatar denúncias de organizações da sociedade contra processos que correm na área militar. Em última instância se encontra o Supremo Tribunal, integrado por juízes civis, que tem autoridade para mandar abrir inquéritos e apresentar acusações criminais contra fardados, bem como reverter decisões emanadas de qualquer um dos juízos militares, inclusive do Tribunal de Apelações e do próprio procurador-geral.
Em relação a um dos nossos países vizinhos, a Argentina, ocorreu a extinção da justiça militar em 2008 através da promulgação de uma lei aprovada no Congresso. Em decorrência, os tribunais dos estabelecimentos bélicos entraram em processo de extinção assim como o Código de Justiça Militar que se encontrava em vigência desde 1951. A partir de então os fardados estão sendo julgados por juízes civis em tribunais federais. Tal lei também outorgou aos servidores de uniforme a liberdade de expressão e o direito de contar com um advogado particular em ações na justiça. Apenas para ilustrar, a Justiça Civil condenou no ano passado 19 ex-fardados do país por crimes de lesa humanidade cometidos contra centenas de pessoas no Campo de Mayo, pertencente ao Exército. Outrossim decidiu encaminhar mais quatro ex-militares à prisão perpétua devido terem realizado os alcunhados voos da morte.
Frente a estas colocações é possível perceber que o sistema judiciário militar brasileiro não possui equivalente em outros países do mundo regidos pela democracia, haja vista que ele é extemporâneo e, essencialmente, expressa os interesses organizacionais assumidos pelos integrantes das Forças Armadas. Por sua vez o atual debate em torno dos limites e da competência da Justiça Militar, que já chegou ao exame da corte mais alta do país, se mostra como um ato pueril pois não está em sintonia com a urgente e necessária alteração que nela precisa ser feita para torná-la uma instância legítima e benemérita do regime democrático. Seria muito mais proveitoso se os ministros do STF se unissem a intelectuais e parlamentares que se dedicam ao estudo de tal justiça para imprimir as mudanças destinadas a convertê-la num instrumento de controle democrático dos paisanos sobre os fardados. Em breve teremos a rara e preciosa oportunidade de acompanhar o julgamento dos militares insurgentes pela Justiça Civil, o qual vai se revelar como um oportuno exercício de submissão incondicional dos servidores de uniforme aos ditames de nossa inabalável e enraizada democracia.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)