Apreciação constitucional por TCU é positiva, mas controle gera temor

Em mais um julgamento que analisou a extensão da competência dos Tribunais de Contas, o Supremo Tribunal Federal referendou novamente a recepção da Súmula 347 pela Constituição Federal. Em suma, o texto, que foi aprovado em 1963, diz que as cortes de contas podem “apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

Gilmar deu o voto vencedor no caso que envolveu alcance do tribunal de contas

No processo julgado (MS 25.888), a Petrobras alegava que o Tribunal de Contas da União havia extrapolado seus limites ao ordenar que a estatal seguisse a Lei Geral de Licitações para seus certames, e não os decretos de 1997 e 1998 que regulam procedimento licitatório próprio (chamado de “simplificado”) para a petroleira. Por causa dessa divergência no trâmite licitatório, a Petrobras pediu a revogação do enunciado aprovado pelo Supremo 60 anos atrás.

A discussão não é nova, mas continua dividindo os ministros. Ao menos desde 2006 o tema é suscitado na corte como passível de mudanças — e até de revogação da súmula. E isso tendo em vista o contexto distinto daquele em que ela foi aprovada, em 1963, e as implicações que a Constituição de 1988 trouxe em seu texto, em especial sobre o controle de constitucionalidade e sobre a ampliação de entes e instituições que podem acionar o STF para fazer esse controle.

O julgamento, ocorrido no final de agosto, tinha como objeto a modernização do sistema de produção da Refinaria Gabriel Passos, em Minas Gerais. Foi declarado vencedor o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi seguido pelos ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Edson Fachin (este com ressalvas). O ministro André Mendonça abriu divergência, e os ministros Kassio Nunes Marques e Luiz Fux o acompanharam. O ministro Luís Roberto Barroso se declarou suspeito.

Nos autos consta que o TCU argumentou à Petrobras pela inconstitucionalidade dos decretos que estabelecem um regime próprio de licitação para a estatal — fazendo com que a empresa siga normalmente o regime ao qual todas as companhias estatais estão submetidas.

Em seu voto, Gilmar sustentou que houve perda de objeto da impetração, posto que a Lei das Estatais, de 2016, revogou o artigo do decreto que embasava o regime sui generis da Petrobras nas licitações. Ele invocou precedentes da própria corte em sua fundamentação, incluindo um de Alexandre de Moraes (MS 27.796), que também alegou perda de objeto para manter a Súmula 347 vigente e, dessa forma, permitir que o TCU declarasse a inconstitucionalidade de normativas em determinadas circunstâncias.

Para advogados entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a decisão, a despeito de respaldar essa permissão, não libera o TCU para fazer controle abstrato de constitucionalidade e reforça que o tribunal tem de seguir os entendimentos pacificados pelo Supremo. Ou seja, não há competência para esses tribunais inovarem em matéria constitucional.

Gustavo Schiefler, doutor em Direito pela USP e advogado do escritório Schiefler Advocacia, afirma que houve uma “interpretação renovada” do tema. “O entendimento foi de que, caso seja imprescindível para o exercício do controle externo, o TCU pode afastar, em análise de um caso concreto, as normas cuja aplicação expressaria um resultado inconstitucional, seja por violação patente a dispositivo da Constituição ou por contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.”

“Sob outro ângulo, o TCU deve exigir que a administração pública observe a Constituição, especialmente nos casos em que há jurisprudência do STF sobre matérias afetas ao controle externo. O entendimento é extensível a outros órgãos com funções quase jurisdicionais, como o CNJ e o CNMP”, complementou o advogado. 

Para Mozar Carvalho, sócio-fundador do Machado de Carvalho Advocacia, a decisão do Supremo também reforçou que o TCU não possui poder de fazer um controle erga omnes (extensivo a todos).

“Seus efeitos se limitam ao caso concreto em análise, ou juridicamente denominados inter parts. É imperativo que o TCU fundamentadamente declare a inaplicabilidade da norma, ancorando-se rigorosamente na jurisprudência do STF. Ou seja, sua aplicação é vinculada, não autônoma.”

Qualificação, morosidade e controle excessivo

A questão mais delicada que circunda o tema é sobre o alcance do Tribunal de Contas, um órgão, em tese, técnico, e que não tem como principal atividade o controle de constitucionalidade. Há, todavia, temor de que essas cortes extrapolem suas atribuições e se vejam no direito — ou na obrigação — de se posicionar em temas que, por vezes, não tenham sido expostos ao crivo do Supremo. 

“O ponto negativo é que potencialmente, em algumas situações nas quais não haja decisão prévia do STF sobre determinada matéria e a apreciação constitucional seja imprescindível ao controle, o TCU se veja em um impasse para decidir tema afeto à corte. Não há como o TCU apenas reforçar ‘a finalidade de reforçar a normatividade constitucional’, caso um tema não tenha sido apreciado no Judiciário”, disse Eduardo Stênio Silva Sousa, sócio da banca Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

Para Schiefler, há um receio em relação à “inadequação do exercício do controle externo nos casos em que, embora a norma seja inconstitucional, a matéria ainda não foi analisada pelo STF e o caso não é exemplo de inconstitucionalidade flagrante”.

Já Carvalho cita que a recepção da Súmula 347 pode causar mais morosidade nos trâmites que envolvem controle de constitucionalidade — mesmo porque a pauta ainda não se esgotou no Supremo.

“Adicionalmente, pode gerar uma sensação de restritividade na atuação de órgãos fiscalizadores, potencialmente comprometendo a eficácia do controle externo em certos contextos”, comentou o advogado.

A conta é relativamente simples: maior apreciação constitucional por parte dos Tribunais de Contas pode gerar mais questionamentos na Suprema Corte, o que pode atravancar o andamento dos processos. 

Há em disputa também o fator da qualificação para tomar essas decisões, tanto do ponto de vista da jurisdição quanto do ponto de vista técnico. “Do prisma técnico-constitucional, o TCU não detém qualificação jurisdicional, carecendo, assim, de atribuição para proceder com controle abstrato de normas, uma vez que sua função primária é fiscalizatória e consultiva”, afirmou Carvalho. 

Silva Sousa, porém, tem uma perspectiva distinta: “Não se trata de qualificação, no sentido de qualidade de produção de decisões. O TCU conta com um corpo técnico muito qualificado, capaz de produzir decisões com profunda fundamentação. Trata-se de limitação da competência da corte de contas, na acepção dada pelo princípio da separação dos poderes.”

A volta dos que não foram

Os especialistas entrevistados pela ConJur são unânimes ao afirmar que o tema não está decidido, mesmo depois de mais uma decisão do Supremo reafirmando a recepção da Súmula 347 pela Constituição. A corte deve julgar, em breve, o ARE 1.208.460, que mais uma vez pretende estabelecer (ou restringir) competências para os Tribunais de Contas, dessa vez os municipais.

O tema foi afetado para ser julgado em Plenário em junho, após julgamento na 2ª Turma, ficando vencido o voto do relator, ministro Edson Fachin. O processo versa sobre a Prefeitura de Chapadão do Céu (GO), em que o chefe do Executivo enfrenta processo por dívida porque o Tribunal de Contas do município declarou inconstitucionais as leis municipais que aumentaram seu salário. Com essa fundamentação, o TCM acabou rejeitando as contas de sua gestão. 

Dessa forma, caberá ao Plenário do Supremo decidir se os Tribunais de Contas municipais podem fazer esse tipo de análise constitucional. Para os advogados consultados pela ConJur, a mudança da composição da corte pode influenciar no resultado, seja pela recepção ou pela revogação da referida súmula. 

“O entendimento tem força persuasiva, mas não vinculante. Como não há unanimidade no STF sobre o assunto e dada a substituição recente e iminente de alguns seus membros, é possível, embora improvável, que, no futuro próximo, tenhamos alterações sobre esse entendimento”, disse Gustavo Schiefler. 

“O cenário pendente sinaliza que o debate está longe de ser concluído, subsistindo incertezas e expectativas quanto à consolidação do entendimento sobre os poderes e limites do TCU em matérias de controle de constitucionalidade”, disse Mozar Carvalho. “O ARE 1.208.460, ainda pendente de apreciação, pode vir a lançar novas luzes sobre a extensão e os limites da competência dos Tribunais de Contas.”

Clique aqui para ler o voto do ministro Gilmar Mendes

MS 25.888

Consultor Júridico

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