Armelin e Ferraz: Caso dos precatórios para pagamento de outorga

A aplicabilidade de normas constitucionais é tema tormentoso no Direito, com importantes implicações em quase todos os seus ramos. Não à toa diversos autores se dedicam à matéria, construindo variadas classificações. No momento, o tema voltou à tona no setor de infraestrutura. A razão disso é a controvérsia que evoca a mais antiga das classificações das normas constitucionais à luz da aplicabilidade elaborada por Ruy Barbosa.

Tudo por força da Emenda Constitucional nº 113/2021, que, ao alterar o artigo 100, § 11, inciso III, da Constituição, previu, “com auto aplicabilidade para a União”, a faculdade de o credor ofertar precatórios para “pagamento de outorga de delegações de serviços públicos”.

Sob influência do direito norte-americano, Ruy Barbosa distinguia as normas constitucionais em duas espécies, cujos nomes são autoexplicativos: autoaplicáveis e não autoaplicáveis. Como visto, o dispositivo constitucional estabeleceu que a regra por ele veiculada tem autoaplicabilidade para a União, ou seja, trata-se de um exemplo daquelas normas “aplicáveis desde logo, vale dizer, revestidas de plena e imediata eficácia jurídica, por regularem, plena e imediatamente as matérias, situações ou comportamento de que cogitam”.[1]

Não é comum que o texto constitucional facilite tanto ao intérprete, indicando o grau de aplicabilidade da norma, mas foi exatamente o que fez no caso do uso de precatórios para pagamento de outorga. O surpreendente é que, mesmo assim, há polêmica. O caráter autoaplicável da regra foi questionado desde a sua inclusão no texto constitucional, tanto sob a justificativa de necessidade de regulamentação prévia, quanto pela alegação de que seria necessária previsão específica no respectivo edital de licitação.

Foi nesse contexto que foi editada a Portaria Normativa nº 73/2022 da Advocacia-Geral da União (AGU), tratando dos procedimentos a serem observados por órgãos e entidades públicas federais. Contudo, em março, a AGU revogou a portaria e constituiu um grupo de trabalho com vistas à edição de novo instrumento normativo, que conferisse “mais segurança jurídica ao procedimento”.[2] Na oportunidade, recomendou que se aguardasse a nova regulamentação, deixando que cada órgão ou entidade federal conduzisse o tema diretamente no âmbito de suas outorgas de delegações de serviços públicos.

Ocorre que, recentemente,[3] o assunto ganhou novos contornos com dois movimentos realizados pela Advocacia-Geral da União: (i.) o Despacho nº 116 do Advogado-Geral da União e (ii.) a consulta pública sobre a proposta de norma para regulamentação do uso de precatórios.[4] Ambas as movimentações geram preocupações quanto ao sentido para o qual caminham: o amesquinhamento do direito, garantido pela Constituição, de utilização dos precatórios como forma de pagamento.

Por meio do Despacho nº 116, a AGU determinou aos seus órgãos vinculados que: (i) sobrestem todos os processos de análise de precatórios para os fins do § 11º do art. 100 da CF até a elaboração do novo ato normativo e (ii) orientem, além de outros órgãos e entidades, os respectivos ministérios e agências reguladoras a igualmente sobrestarem seus processos e se absterem de dar quitação ao pagamento de outorgas mediante utilização de precatórios.[5]

Para agravar a situação, a determinação do AGU veio desacompanhada de orientação no sentido de suspender as obrigações de pagamento durante o período, brecando, através de norma infralegal, a aplicação de norma constitucional autoaplicável. Assim, os interessados precisam batalhar, administrativa ou judicialmente, para que seus prazos para pagamento de outorgas também sejam suspensos.

Contudo, mesmo diante da iminente regulamentação, que, ao menos em tese, colocaria fim a esse imbróglio que impede o exercício do direito constitucional, o cenário que se avizinha não é animador. A minuta do ato normativo posta em consulta pública desrespeita, igualmente, a natureza da norma porque, para além de procedimentalizar a utilização do precatório, restringe o exercício do direito.

Para ilustrar a crítica feita, este texto destaca três obstáculos ao pagamento de outorga com precatórios inseridos na proposta de norma: (i.) a necessidade de previsão em edital, que fixará condições e limites para sua aceitação (artigo 2º, § 4º), (ii.) a possibilidade de fixação de limite global anual de valor para cada hipótese constitucional de utilização de precatórios como pagamento (artigo 32) e (iii.) o dever de o órgão ou a entidade exigir garantia do requerente (artigos 20 e 21) — mesmo tratando-se o precatório judicial de crédito líquido e certo expedido por um dos Poderes da República.

A proposta da AGU e as suas implicações não estão afinadas com o texto constitucional e são incompatíveis com a natureza autoaplicável da norma. Isso porque é preciso distinguir os dois tipos de regulamentação infralegal:[6] (i) aquela imprescindível para o exercício de determinado direito, necessária apenas para as normas não autoexecutáveis — não se aplicando, portanto, à questão dos precatórios, e (ii.) a que serve apenas para garantir o tratamento isonômico entre os particulares perante a Administração, isto é, regulamento prescindível, de norma autoexecutável, mas que “uniformiza, processual e materialmente os comportamentos a serem adotados em face dos critérios que elege e das pautas que estabelece para os órgãos e agentes administrativos”. [7]

A natureza do ato normativo que pode ser editado para disciplinar o art. 100, § 11, inciso III, da Constituição é da segunda espécie, servindo apenas à padronização do comportamento da Administração. Afirma-se isso especialmente porque a regra constitucional analisada, além de autoaplicável, é dotada de eficácia plena,[8] já que cria direito subjetivo suficientemente concreto e definido ao administrado, desfrutável desde logo, sem nenhuma previsão de edição de futuras disposições legislativas restritivas.[9] Isso é, não deixa espaço para que uma futura atuação legislativa, muito menos, administrativa, reduza direito tão bem delineado em sua hipótese de incidência, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Evidentemente, não se nega a utilidade de a Administração regulamentar os dispositivos constitucionais, a fim de garantir a melhor execução possível das normas. Mas é preciso clareza: a norma constitucional, naquilo que já estabeleceu, vincula a regulamentação, o que, no caso dos precatórios, não abre margem para suspender o exercício de um direito veiculado por norma autoaplicável, que produz efeitos independentemente de regulamentação,[10] tampouco para criar obstáculos ou esvaziar o exercício do direito.

A Constituição é explícita: o precatório foi equiparado a moeda para as hipóteses do seu § 11º do artigo 100 e, por essa razão, constitui modo de pagamento plenamente aplicável às outorgas de concessões federais, sendo obrigação da União aceitá-lo e direito do credor oferecê-lo. Qualquer previsão contrária a isso torna a regulamentação inconstitucional.

Portanto, o caminho para a Administração Pública é claro: (i.) reconhecer que o direito constitucional à utilização do precatório como forma de pagamento é autoaplicável, aceitando, desde já — enquanto é gestada a norma infralegal —, pagamentos com essa “moeda”, seja para novas outorgas, seja para aquelas já delegadas, e (ii.) alterar a proposta do ato normativo para que não descumpra a regra constitucional, limitando-se a garantir segurança jurídica quanto ao procedimento.

 

Heloísa Armelin é advogada no escritório Tojal Renault Advogados, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e pós-graduanda em Direito Administrativo pela FGV.

Consultor Júridico

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