Augusto Bercht: Indeterminação constitucional institucionalizada

Em 8 de março deste ano, o ministro Ricardo Lewandowski proferiu decisão liminar na ADC 84/DF, por meio da qual suspendeu a eficácia “das decisões judiciais que, de forma expressa ou tácita, tenham afastado a aplicação do Decreto 11.374/2023 e, assim, possibilitar o recolhimento da contribuição para o PIS/Cofins pelas alíquotas reduzidas de 0,33% e 2% respectivamente(…)”.

Ao analisar a suposta presença de probabilidade do direito no pedido formulado pela União na referida ADC, o voto traz dois principais fundamentos aos seus argumentos. O primeiro é relativo à vigência do Decreto nº 11.322/2022 e o segundo é relativo à aplicação do “princípio” da anterioridade nonagesimal.

O primeiro argumento da decisão do ministro pode ser reconstruído da seguinte forma: o Decreto nº 11.322/2022 vigeu por um único dia [1] e tal dia era um feriado, sem expediente bancário, de modo que, efetivamente, as alíquotas do Decreto nº 11.322/2022 jamais foram aplicadas a um fato gerador concreto, de forma que não se poderia dizer que houve aumento de tributo. Para reforçar seu argumento, o ministro cita as decisões do Supremo Tribunal Federal no RE 584.100/SP e 566.032/SP, nas quais se entendeu que a anterioridade nonagesimal não deveria ser aplicada.

Ocorre que as duas decisões citadas são substancialmente distintas e explicitam uma deficiência importante da argumentação da decisão proferida na ADC 84/DF. Tanto no RE 584.100/SP (que tratava de ICMS do estado de São Paulo), quanto no RE 566.032/SP (que tratava de CPMF), a situação analisada pelo Supremo Tribunal Federal era de uma norma que programava a redução da alíquota aplicada e  antes que o termo da norma tenha ocorrido  houve uma alteração legislativa prorrogando a redução.

Ainda que se possa criticar as decisões do STF em ambos julgados e, de fato, ambas as decisões citadas tiveram substanciais votos divergentes, a razão de decidir que se extraí de ambos os casos é que a anterioridade nonagesimal não deve ser aplicada em situações em que há apenas a expectativa de redução da alíquota.

Reforça essa interpretação o fato de na ADI 2.031/DF o Supremo ter considerado que o artigo 75 da ACDT instituía um tributo (no caso, a CPMF), pois o congresso havia deixado transcorrer o prazo de vigência da contribuição.

No caso da decisão liminar na ADC 84/DF, no entanto, esse elemento fundamental  a vigência da norma, que separa a ADC dos precedentes citados  é abstraído. Não importa mais que o Decreto nº 11.322/2022 tenha vigido e, consequentemente, as alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras que ele previa.

Para a configuração de aumento de carga tributária, a decisão impõe uma nova categoria de vigência, a “vigência efetiva”, que determina que para se configurar aumento de tributo não só a norma deve viger, mas deve ser aplicada a fatos geradores. O argumento inova, pois o único requisito imposto à vigência de uma norma é o artigo 1º do Decreto-Lei nº 4.657/1942, que é um critério temporal: ou a norma determina a data em que passará a viger ou a vigência será 45 dias após sua publicação.

Mais do que isso, esse novo critério de vigência proposto é patologicamente indeterminado. Não há definição de quantos ou quais fatos geradores são necessários para que haja “vigência efetiva”. Isso torna a noção de “vigência efetiva” fatalmente suscetível à falácia do argumento sorites [2]  isso é: ela admite “pequenos acréscimos” ao ponto de não se poder determinar com segurança o que é a “vigência efetiva”. É a ocorrência de um fato gerador aplicando as alíquotas? De cem fatos geradores? Da declaração do tributo pelo contribuinte? Do pagamento?

O primeiro argumento da decisão não só padece de equívocos, mas leva à substancial indeterminação a respeito da vigência de uma norma e do que seria necessário para caracterizar um aumento de tributo.

E não é diferente o segundo argumento. Embora não explicitamente enunciado, o segundo argumento consiste em tratar a anterioridade nonagesimal como um princípio e não como uma regra. A diferença é fundamental, pois regras são aplicadas de forma finalística, isso é, elas preveem consequências jurídicas a serem aplicadas em determinada situação fática: “se x, então y”. Já princípios preveem estados de coisas a serem promovidos e sua aplicação se dá avaliando se determinada conduta promove tal estado de coisas [3].

A tradição da doutrina tributária de nomear a anterioridade nonagesimal como princípio  quiçá para engrandecer sua importância no sistema tributário  não ajuda no presente caso, porém a norma tem efetivo caráter de regra: se há aumento de tributo, então tal aumento só pode ocorrer passados 90 dias da publicação da norma.

O caráter de regra da anterioridade nonagesimal não deveria ser desconhecido ao ministro Lewandowski, pois foi ressaltado pelo ministro Marco Aurélio no seu voto justamente no citado RE 584.100/SP e é reconhecido pela doutrina [4].

Ao tratar a anterioridade nonagesimal como princípio, não como regra, a decisão pode ponderá-la com as circunstâncias fáticas (tal como a norma ter vigido por um dia apenas) para argumentar que a não aplicação da anterioridade nonagesimal, no caso, não violaria o estado de coisas que a norma visa a proteger, a segurança jurídica. Tudo isso sem incorrer no substancial ônus argumentativo necessário para a superação de regras.

No entanto, não cabe ao intérprete “escolher” se uma norma é uma regra ou princípio. Essa determinação decorre justamente das características da norma reconstruída do texto normativo. A noção de que o intérprete pode escolher se a norma é uma regra ou um princípio não só é um erro metodológico, mas também causa substancial de indeterminação normativa [5].

A decisão liminar na ADC 84/DF é um exemplo da vocação que o Supremo tem demonstrado possuir de expandir a indeterminação do direito constitucional.

Parafraseando a frase que dá título ao livro de Berman, Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar“regras explícitas tornam-se princípios a serem sopesados, conceitos que foram definidos por anos pela legislação, jurisprudência e doutrina têm seus limites propositalmente embaçados, para que se amoldem mais facilmente à decisões e o direito que deveria ser um instrumento social para guiar condutas” [6], ao poucos, perde sua capacidade cumprir tal função elementar.

Muito se fala  com e, às vezes, sem razão  a respeito da insegurança jurídica promovida pelo STF. Nessa linha, um campo fértil para futuras críticas é analisar a insegurança promovida por decisões que, tal como a liminar proferida na ADC 84/DF, casuisticamente, contorcem conceitos e cometem erros metodológicos que incrementam a indeterminação do direito constitucional.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor