Ayoub e Braga Filho: Qual o caminho da RJ que o julgador deve acolher

No dia 9 de junho de 2005, foi inaugurado, no país, o novo sistema de insolvência empresarial brasileiro, inspirado no Capítulo 11 da Lei de Falências norte-americana e cuja tramitação começou a ser discutida no Congresso no ano de 1993. A intervenção do Estado, com a edição do relevante marco legislativo, tornou-se necessária, em razão da complexidade e amplitude das implicações que giram em torno da empresa e do mercado em que ela opera — fiscais, trabalhistas, consumeristas, sociais, concorrenciais, creditícias, públicas ou privadas. 

A antiga legislação falimentar brasileira, promulgada em 1945, demonstrou ser falha em reabilitar empresas economicamente viáveis que estariam passando por dificuldades financeiras, como mostram os exemplos, dentre outros, das varejistas Mappin, Casa José Silva e Mesbla e do conglomerado de supermercados Casas da Banha, com falências decretadas em 1999, Ultralar e Rede Manchete de Televisão, falidas em 2000 e das Lojas Arapuã, com quebra em julho de 2002

As mudanças, em relação à realidade judiciária anterior, não foram pontuais, havendo alterações verdadeiramente substanciais que exortam, de toda a comunidade jurídica, empresarial e comercial, ou seja, de todos os atores que desenvolvem atividades econômicas, um olhar bastante atento àquele diploma que, por certo, em algum momento muito poderá auxiliá-los. 

É possível afirmar que, no Brasil, um boato ou um solavanco já é suficiente para trazer uma indesejável instabilidade para os empreendedores, responsáveis por gerar riquezas e postos de trabalho para o país que deles tanto depende. A evolução da tecnologia, aliada à dinâmica social, exigem que todos sejam mais presentes nas interpretações dos diplomas normativos, tal como e, em especial, a Lei nº 11.101/2005, que, como dito antes, é de vital importância para os agentes econômicos, a ponto de afirmar que eles garantem a sobrevivência de uma nação. E assim se participa, porque sem empresas, não há nação.

Sem empresas, não há empregos. Sem empregos, não há salários. E sem salários, não há dignidade humana. Tantas são as alterações havidas ao longo do tempo moderno, que se ousa dizer que ajustar os textos normativos à essas mudanças, representa um desalinho com o desenvolvimento e segurança jurídica daqueles que são os responsáveis por fazer a roda da economia girar. Num mundo complexo, onde os agentes econômicos se multiplicam e os direitos da liberdade econômica são estimulados, a estabilidade no tocante ao desenvolvimento, é incompatível com a leitura fria da lei.

É necessário, portanto, um olhar para a hermenêutica que tanto auxilia na aplicação do direito em conformidade com a realidade dos fatos da vida. É o direito em movimento! Pensar-se em editar novos atos normativos para cada mudança havida na sociedade, significa tornar o direito insustentável, de pouca utilidade e de alto número de equívocos em razão dos emaranhados de normas. A solução será a entrega da prestação jurisdicional obsoleta. 

Ao analisar, de frente, a Lei nº 11.101/2005, é fácil perceber que, mesmo diante de uma recente modificação e atualização havida em dezembro de 2020 por meio da Lei nº 14.112, já se reclama por alterações e que, por certo, não demandam novos textos legislativos, mas a utilização, renove-se à exaustão, da hermenêutica, responsável por dar a direção correta para o caso concreto. Só assim, a entrega do direito respeitará o tempo razoável do processo, como será útil, porque contemporânea ao conflito que bate à porta do Poder Judiciário. A lei referida anteriormente, desafia uma necessária modificação do ensino tradicional onde o direito, somente, já se mostrava suficiente para resolver casos pontuais. 

Busca-se, a partir do método interpretativo, o alcance dos fins sociais da norma jurídica. A interpretação a partir do elemento teleológico pode e deve levar em consideração o bem comum, a justiça, a segurança, a liberdade e a igualdade, por exemplo. Afinal, estes são os objetivos fundamentais da República.

No ordenamento jurídico brasileiro, o método teleológico também se encontra presente na Lei de Introdução às Normas Brasileiras (Lindb), em seu artigo 5º, e no Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 8º , segundo os quais o juiz deve atentar aos fins sociais e às exigências do bem comum, interpretando as normas com razoabilidade.

Na lição doutrinária do eminente ministro Luiz Fux, “a hermenêutica processual não difere das demais, posto indicar ao juiz o tempero necessário entre a aplicação da lei e sua justiça no caso concreto. Aliás, é o caso concreto que há de indicar qual o método exegético recomendável, vale dizer: se o literal, o histórico etc. Em todos eles, o juiz há de vislumbrar o fim social a que se destina a norma (artigo 8º do CPC e 5º da Lindb)”.

Destaque-se que o artigo 20 da Lindb, acrescentado pela Lei nº 13.655/2018, imputa ao órgão julgador (seja ele jurisdicional, administrativo ou de controle) o dever de observar “as consequências práticas” da sua decisão. Assim, “o magistrado tem o dever de examinar as consequências imediatas e sistêmicas que o seu pronunciamento irá produzir na realidade social, porquanto, ao exercer seu poder de decisão nos casos concretos com os quais se depara, os juízes alocam recursos escassos”. (Pet 8002 AgR, relator(a): Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12-03-2019, Processo Eletrônico DJe-167  DIVULG 31-07-2019  PUBLIC 01-08-2019).

Após os primeiros anos de maturação da novel Lei nº 11.101/2005, em conjunto com o professor Cássio Cavalli, meu então colega de direito comercial na Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), tive a satisfação de elaborar uma pesquisa que envolveu a coleta de milhares de decisões e acórdãos de 19 Tribunais de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. O resultado do levantamento foi publicado na obra A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas, lançada pela primeira vez em 2013 e com a quarta e última edição publicada no formato e-book em 2020. No livro há um retrato detalhado da forma como a jurisprudência brasileira, diante de hipóteses concretas onde a legislação de regência não é conclusiva, tem construído o instituto da recuperação judicial de empresas.

Citem-se exemplos. No que diz respeito ao acesso dos produtores rurais, bem como dos clubes de futebol à recuperação judicial, debates jurídicos em casos concretos conduziram à criação de jurisprudência autorizativa a partir da finalidade social, que se antecipou às modificações legislativas que somente viriam a ser disciplinadas no arcabouço normativo tempos depois, respectivamente pela Lei nº 14.112/2020 e pela Lei nº 13.193/2021 (Lei da Sociedade Anônima do Futebol). 

Registre que o caso do Grupo José Pupin, incluídos neste os produtores rurais que não possuíam inscrição no órgão competente pelo prazo exigido por lei, foi iniciado em agosto de 2015 no âmbito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, impactando na admissão do agronegócio, segmento econômico que contribuirá com cerca de 24,5% do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2023, aos favores legais da Lei nº 11.101/2005.

Já o Figueirense Futebol Clube, em março de 2021, em decisão monocrática do desembargador Torres Marques, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, desconstituiu a sentença e reconheceu a legitimidade ativa do Furacão do Estreito para postular recuperação, ao passo que a Lei nº 14.193 somente foi promulgada meses depois, em agosto daquele ano.

O momento histórico vivenciado encarrega-se de demonstrar a tempestividade do estímulo da preservação da empresa e de constatar o quão salutar é a manutenção de um ambiente favorável à atração de novos investimentos, o fortalecimento das empresas que dinamizam a economia, geram riquezas, crescimento econômico, empregos e estabilidade social, materializando o preceito de finalidade social insculpido no artigo 170 da Constituição.

Nesse sentido, começam a chegar às cortes judiciárias planos de recuperação judicial aprovados pelos credores que dispõem acerca da suspensão da exigibilidade da garantia prestada por terceiro. O devedor, corroborado pelo princípio majoritário, não se está buscando “suprimir” garantias, todavia apenas “suspender” temporariamente execuções contra os terceiros garantidores. A Lei nº 11.101/2005 não é expressa quanto à matéria. Qual das duas opções o órgão julgador acolherá?

De um lado, argumenta-se que a impossibilidade de execução imediata repercutirá no aumento das taxas de juros do mercado de crédito. De outro, poderá arrastar uma empresa do conglomerado que está financeiramente saudável para a recuperação judicial, considerando a essencialidade do bem passado em garantia. Como harmonizar os interesses envolvidos, tendo a finalidade social como norte?

O eminente ministro Luis Felipe Salomão, na edição do Anuário da Justiça — Direito Empresarial (2023) ensina que “vale destacar que a atuação do Judiciário é uma das mais complexas dentro do processo judicial de recuperação ou falência, porque são múltiplos os interesses em conflito. “Quando ocorre uma demanda individual, uma execução individual, trata-se de um credor contra um devedor. Por outro lado, compor interesses multifacetados, do ponto de vista legislativo, é muito difícil, assim como ocorre em relação à atuação do juiz e de todos os operadores do Direito. O juiz tem de olhar para a floresta, e não somente para uma árvore.”

O interesse desse único credor detentor da garantia deve prevalecer sobre os demais que anuíram com a cláusula contida no plano? A felicidade da maioria, como no utilitarismo clássico, deve predominar? E enquanto não há uma reforma legislativa que aborde cabalmente o tema, como deverá ser decidido? Diferir o pagamento de um, solidarizando-se ao sacrifício em nome de garantir um bem maior, deve ser comum a todos. Garantir a manutenção de um agente gerador de riquezas, não pode ceder em nome de um único agente que, ao final, receberá o que lhe é devido, sem machucar aquele que é quem garante o desenvolvimento da nação.

Esse singelo artigo é escrito para justificar um desabafo de quem, como nós, subscritores, ficamos bastante atentos aos desdobramentos que da lei resultará, sendo certo, porém, que sem elas, alguém que não se solidarizou, como anteriormente dito, em algum momento, por certo, entenderá que aquele momento recomendava uma conduta mais consentânea com os propósitos de normas protetivas ao desenvolvimento do país. A chance não pode passar!

Luiz Roberto Ayoub é sócio do Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados. Advogado especializado em insolvência empresarial. Desembargador aposentado do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Professor aposentado de Direito Comercial e de Direito Processual Civil da FGV Direito Rio.

Vanderson Maçullo Braga Filho é sócio do Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados. Advogado especializado em insolvência empresarial.

Consultor Júridico

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