Bastos e Barroso: As “cancelas” do nexo causal

Em 14 de março de 2023, a 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) [1] julgou demanda de reparação de danos que testou os limites da responsabilidade civil dos prestadores de serviço, em face de crimes violentos praticados por terceiros nas dependências de estabelecimento comercial, ou, mais especificamente, em suas “cercanias”.

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Cuidava do caso de pessoa vitimada por assalto à mão armada quando se

preparava para entrar em garagem privativa de um shopping center localizado em bairro nobre do Rio de Janeiro. Entendeu o STJ que, tanto o centro de compras, como a prestadora do serviço de estacionamento, deveriam reparar os danos sofridos pela vítima, com especial destaque para um “Rolex Submariner Oyster Perpetual Date Stainless Steel”, avaliado em cerca de R$ 30 mil.

O primeiro ponto a se destacar desse julgamento é a fundamentação do acórdão, conduzida pelo voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, buscou enquadrar a decisão em uma narrativa coerente com outros julgamentos daquele tribunal, nos quais se definiu que o nexo de imputação contra o estabelecimento comercial estaria relacionado à legítima expectativa de segurança criada no consumidor que visita o shopping, pela presença de cancelas, aparatos de monitoramento e controle de pessoas, câmeras etc., a qual veio a ser frustrada com a prática criminosa. Por isso, um assalto violento, com uso de arma de fogo, embora caracterize, em princípio, um evento fortuito e alheio ao serviço prestado, ainda assim teria com este uma relação causal, inscrita no risco “inerente” assumido pelo empresário, o que se convencionou chamar de “fortuito interno”.

O caso em questão, contudo, possuía um detalhe: o assalto ocorrera antes de a vítima adentrar o estabelecimento. Curiosamente, para contornar essa dificuldade, apontou-se para um culpado insuspeito: as cancelas de entrada do estacionamento. Essas barreiras artificiais, normalmente associadas à sensação de segurança dos consumidores, tornaram-se facilitadoras do crime, pois obrigam o usuário que está de fora a parar o seu veículo antes de acessar as dependências do shopping, tornando-o alvo fácil de criminosos à espreita. Como estão ali por mero interesse econômico e conveniência do fornecedor, este deve responder pelo agravamento desse risco.

Embora, na superfície, esse julgado seja uma continuidade da construção

jurisprudencial do STJ sobre o dever de segurança de estabelecimentos comerciais “na área de prestação do serviço”, na verdade, a conclusão a que chegou o tribunal revela uma certa incoerência em seus padrões de julgamento. Causa surpresa, por exemplo, que o tribunal não deu muita importância a dois fatos particulares do processo:

a) a vítima, no caso, não era bem um consumidor do shopping, mas estava ali a trabalho, e se dirigia a uma sala comercial existente dentro do complexo empresarial do empreendimento;

b) ela chegava ao estabelecimento, e não saía. Sem ignorar os limites cognitivos de um recurso especial, ou a complacência com que se costuma caracterizar as relações e os acidentes de consumo, esses fatores deveriam, em princípio, informar a construção concreta do nexo causal.

Diz-se isso porque, quanto ao item “a”, o argumento histórico de que o

estacionamento é uma facilidade vendida pelo shopping para atrair clientela, gerando sensação de segurança no consumidor, não se aplica muito bem ao caso. A relação jurídica entre as partes aparentava muito mais com um contrato de guarda de veículo, em que o usuário, neste caso, um profissional liberal, se utiliza do estacionamento por

conveniência própria.

Nesses casos, o STJ possui precedente no sentido de que “o roubo à mão armada exclui a responsabilidade de quem explora o serviço de estacionamento de veículos” [2]. Esta conclusão se originou de um caso que tratava da responsabilidade por assalto ocorrido em estacionamento do prédio onde uma agência bancária

funcionava.

Naquela ocasião, ao verificar que o estacionamento não era exclusivo do banco, o STJ realizou a necessária distinção das atividades para afirmar que não seria o caso de “resguardar os interesses da parte hipossuficiente da relação de consumo, mas de assegurar ao consumidor apenas aquilo que ele legitimamente poderia esperar do serviço contratado, no caso a guarda do veículo”. No julgamento aqui tratado, ainda que se cuidasse do estacionamento do “shopping”, a relação da vítima com esse serviço era diversa daquela do consumidor padrão e merecia uma consideração própria.

Em outra contenda envolvendo assalto à mão armada, dentro de estacionamento, motivado pela atividade bancária, o STJ afastou a responsabilidade do fornecedor, pelo fato de que a ação criminosa se iniciou em via pública, ainda que tenha se consumado após a ultrapassagem das cancelas. No caso, os meliantes seguiam pessoa que levava um malote para depósito no banco e a interceptaram já dentro do estacionamento. Na ocasião, a 3ª Turma entendeu que o evento, ainda que remotamente associado à instituição financeira, seria imprevisível, excluindo o nexo causal [3]. No caso da Barra da

Tijuca, toda a ação criminosa ocorreu antes da entrada da vítima no estacionamento, mas o resultado foi considerado, desta vez, “previsível”.

Em segundo lugar, o fato de que, no julgamento recente, a vítima entrava e não saía do estabelecimento também é relevante, pois ela não foi assaltada por nenhum produto que levava do shopping, mas pelo que trazia consigo. Em particular, um relógio importado, que ostentava por razões pessoais. Existe um pressuposto desse “risco empresarial” assumido pelos centros de compras, no sentido de que as atividades de consumo em massa atraem o interesse de criminosos. Essa premissa subjacente não se verifica no assalto em questão, pois o interesse do assaltante estava na joia pessoal que a vítima trazia de casa, não se podendo desconsiderar o risco de portar um relógio desse padrão nas ruas do Rio de Janeiro.

O STJ, historicamente, reconhece que o cidadão é responsável pelo agravamento da própria segurança, ainda mais em um país assolado pela criminalidade, como é o Brasil. Em julgado que tratava de assalto a pessoa que transitava em via pública, após sacar elevada quantia de dinheiro em agência bancária, a mesma 3ª Turma fez ponderação que merece ser reproduzida:

Diante disso, sob a ótica do consumidor-médio, não há se falar em razoável expectativa de segurança, fornecida pela instituição financeira, fora dos limites espaciais de suas dependências. A bem da verdade, considerando o alto índice de assaltos a pedestres e passageiros de veículos nas vias públicas, aliado à ineficiência do Estado no combate a este tipo de criminalidade, é do senso comum que não se deve transportar grandes quantias de dinheiro em espécie ou outros objetos pessoais nos logradouros públicos, havendo, na sociedade brasileira, generalizada sensação de insegurança nos locais sob a [insuficiente] vigilância do Estado [4].

Tendo em conta esse histórico de decisões, percebe-se que o STJ foi

excessivamente rigoroso, ao não considerar, nem mesmo como hipótese de concausalidade, as excludentes de responsabilidade pelo fato da vítima ou de terceiro, previstas no artigo 14 §3º, II do Código de Defesa do Consumidor. Tratando-se de crime violento, ocorrido fora do estacionamento, para a subtração de um rolex ostentado por pessoa que ali se encontrava por razões profissionais, pouca coisa sobraria do nexo de causalidade, a não ser o argumento de que as cancelas, por provocarem a redução da velocidade do veículo, teriam facilitado a ação criminosa. Parece muito pouco. Vale lembrar, nesse ponto, que em outro caso, inclusive citado no julgamento de 14 de março [5] , rejeitou-se a hipótese de que a mera existência de aparato de segurança (câmeras de monitoramento) seria suficiente para atrair a responsabilidade de um hotel, por roubo ocorrido nas suas imediações. Destacou-se, naquela oportunidade, que:

“a câmera disponibilizada pelo estabelecimento hoteleiro em sua entrada principal não é obrigatória, tratando-se, na verdade, apenas de mais um mecanismo de segurança fornecido aos hóspedes, que serve para inibir a prática de crimes (não de forma absoluta, obviamente), a identificação de eventuais criminosos e até mesmo o controle de entrada e saída dos hóspedes, dentre outras finalidades.”

A circunstância parece se aplicar ao caso do shopping carioca, pois as cancelas do estacionamento também são aparatos de segurança, destinados a facilitar o controle de pessoas e desestimular a criminalidade. Soa incoerente, portanto, utilizar esses mesmos atributos como fator de incremento da insegurança, unicamente para viabilizar

a responsabilização do fornecedor, quando a ação criminosa ocorre fora da área que a cancela visa proteger. Por fim, é preciso dimensionar o tipo de mensagem que julgamentos desse jaez passam à sociedade. É conhecida a jurisprudência do STJ de que a responsabilidade civil por crimes ocorridos em estacionamento deve ser analisada de forma casuística e não “sistemática”, afastando-se o dever de indenizar quando a garagem, embora exclusiva, tenha “acesso absolutamente livre, sem controle de entrada e saída por meio de cancelas, ou a entrega de tickets, nem tampouco aparatos físicos de segurança na área de parqueamento” [6]. Tem-se a impressão de que essa casuística tem favorecido fornecedores menos interessados em investir na segurança dos usuários, penalizando aqueles que de fato fornecem estruturas capazes de dissuadir a ação criminosa, gerando uma distorção na forma com que se distribui o ônus social da insegurança pública.

A casuística precisa de métodos mais claros. Não é de hoje que se aponta a inconsistência com o que STJ concebe e aplica as teorias do nexo causal [7], criando um cenário excessivamente especulativo sobre quais são, de fato, as condicionantes jurídicas necessárias para se caracterizar a responsabilidade de alguém por um fato ilícito, notadamente quando o critério de imputação é objetivo, como no caso dos fornecedores de serviço. Dá-se a impressão de que a causalidade, em Direito, seria meramente intuitiva, submetida à subjetividade do juiz.

No caso aqui comentado, as bases teóricas do nexo causal nem sequer foram discutidas durante o julgamento. Não sabemos se a responsabilidade do shopping foi construída a partir da teoria da equivalência de condições, da causalidade adequada, do dano direto e imediato (adotada no artigo 403 do CC), da causalidade específica, ou de

qualquer outra corrente teórica disponível em doutrina nacional ou estrangeira. Tudo que recebemos, em termos de fundamentação, foi uma reconstrução histórica e, como demonstrado, pouco consistente, de julgamentos anteriores do Tribunal. É preciso mais. Em um contexto de agravamento da responsabilidade civil por crimes violentos, contra

os quais o fornecedor possui pouca ou nenhuma capacidade de intervenção, seria interessante que os tribunais tivessem mais cuidado na elaboração técnica de seus juízos condenatórios, o que certamente contribuiria para a estabilidade, integralidade e coerência de sua jurisprudência, conforme estabelece o artigo 926 do CPC.

A estabilidade e coerência na jurisprudência do tribunal que tem por escopo uniformizar a interpretação do direito federal deve ser a verdadeira “cancela” contra a subjetividade, o casuísmo e a insegurança jurídica, um objetivo compartilhado pela sociedade brasileira.

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[1] Resp 2.031.816 — RJ — REsp nº 2.031.816/RJ, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 16/3/2023.

[2] REsp 1232795/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02/04/2013, DJe 10/04/2013.

[3] AgInt no AREsp n. 1.492.983/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/6/2022, DJe de 30/6/2022.

[4] REsp nº 1.621.868/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/12/2017, DJe de 18/12/2017.

[5] REsp n. 1.763.156/RS, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 5/2/2019, DJe de 15/2/2019.

[6] AgInt no AREsp n. 1.578.708/PR, relator ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 14/12/2022.

[7] FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 88-95; CASTRO, Henrique Porto de. O jogo do direito e o jogo dos juízes no

caso do enunciado nº 620 da súmula do Superior Tribunal de Justiça. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, defendida em 10/1/2023, p. 127-142.

Ramiro Freitas de Alencar Barroso é mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e advogado do Caputo, Bastos e Serra
Advogados.

Consultor Júridico

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