A popularização da temática ESG nos últimos anos [1] trouxe como efeito colateral (mas previsível) uma certa banalização no uso do termo que, aliada à ausência de regulamentação adequada sobre o assunto, nublou o conceito e abriu o caminho para práticas como o greenwashing (em que empresas fazem divulgações falsas a respeito de suas próprias políticas de sustentabilidade a fim de obter vantagens comerciais).
Ciente desse panorama, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem dando importantes passos para disciplina do questão no mercado de capitais brasileiro: em 22/12/2021, publicou a Resolução CVM nº 59, que estabeleceu regras de divulgação de informações relacionadas ao ESG nos formulários de referência; e, mais recentemente, alterou o marco regulatório dos fundos de investimento por meio da Resolução CVM nº 175, de 23/12/2022 (cuja vigência, originalmente prevista para abril de 2023, foi adiada para outubro de 2023 pela Resolução CVM nº 181), trazendo regras específicas sobre a temática nos artigos 49 e 60:
“Artigo 49. O regulamento do fundo e o anexo descritivo da classe de cotas cuja denominação contenha referência a fatores ambientais, sociais e de governança, tais como ‘ESG’, ‘ASG’, ‘ambiental’, ‘verde’, ‘social’, ‘sustentável’ ou quaisquer outros termos correlatos às finanças sustentáveis, deve estabelecer:
I – quais os benefícios ambientais, sociais ou de governança esperados e como a política de investimento busca originá-los;
II – quais metodologias, princípios ou diretrizes são seguidas para a qualificação do fundo ou da classe, conforme sua denominação;
III – qual a entidade responsável por certificar ou emitir parecer de segunda opinião sobre a qualificação, se houver, bem como informações sobre a sua independência em relação ao fundo; e
IV – especificação sobre a forma, o conteúdo e a periodicidade de divulgação de relatório sobre os resultados ambientais, sociais e de governança alcançados pela política de investimento no período, assim como a identificação do agente responsável pela elaboração do relatório.
Parágrafo único. Caso a política de investimento integre fatores ambientais, sociais e de governança às atividades relacionadas à gestão da carteira, mas não busque originar benefícios socioambientais, fica vedada a utilização dos termos referidos no caput, devendo o regulamento dispor acerca da integração dos referidos fatores à política de investimento (…)
Artigo 60. O material de divulgação que contiver menção a fatores ambientais, sociais ou de governança deve informar, de modo objetivo, se o fundo ou a classe:
I – possui uma política de investimentos que busca originar benefício socioambiental; ou
II – integra os fatores socioambientais à política de investimentos, sem, contudo, buscar a originação de benefício socioambiental.”
O artigo 60 da Resolução CVM nº 175 revela que a autarquia reconheceu a existência de duas visões sobre ESG, que podemos definir como uma concepção estrita (artigo 60, inciso I) e uma concepção ampla (artigo 60, inciso II).
Por “concepção ampla de ESG”, entendemos aquela segundo a qual os fatores sociais, ambientais e de governança corporativa são utilizados para uma avaliação global dos riscos de determinado investimento, em conjunto com fatores tradicionalmente utilizados em análises de risco/retorno:
(…) o conceito de ESG é tão simples quanto não-controverso: ESG é apenas um conjunto de riscos e assuntos que toda companhia deve cuidadosamente considerar e balancear, levando em conta suas peculiaridades, em busca de gerar valor sustentável a longo prazo” [2] (tradução livre).
A visão ampla de ESG, em verdade, não se distancia do clássico “capitalismo de shareholders“, cujas ideias centrais são bem sintetizadas pela famosa afirmação de Milton Friedman segundo a qual a “única responsabilidade social das empresas [é] utilizar seus recursos e desenvolver atividades destinadas a aumentar seus lucros desde que se mantenham dentro das regras do jogo, ou seja, envolvam-se em competição livre e aberta sem cometer fraudes” [3] (tradução livre).
A distinção relevante entre a doutrina Friedman e a visão ampla de ESG, então, reside no fato de que a concepção ampla de ESG acaba, de alguma maneira, a impor a internalização das externalidades ambientais e sociais, exigindo que empresas e fundos de investimento considerem questões dessa natureza por se tratar de fatores de risco que podem gerar prejuízo aos acionistas quando não adequadamente gerenciados.
Por outro lado, a leitura dos dispositivos citados acima demonstra que a CVM adotou o que podemos chamar de uma “concepção estrita de ESG”, uma vez que somente autoriza a utilização dessa denominação por aqueles fundos que busquem originar benefícios socioambientais, ou seja, que aliem a busca de lucratividade a objetivos não-financeiros (artigo 49, parágrafo único, da Resolução CVM nº 175) e que, portanto, gerem impacto social positivo.
Trata-se de um claro acolhimento pelo regulador das premissas que orientam o “capitalismo de stakeholders“, um sistema em que
“os interesses de todos os stakeholders na economia e na sociedade são levados em consideração, companhias são otimizadas para buscar mais do que apenas lucros de curto prazo, e governos atuam como guardiões da igualdade de oportunidades, de uma competição justa, e de contribuição e distribuição adequadas a todos os stakeholders relativamente à sustentabilidade e inclusividade do sistema” [4] (tradução livre).
Segundo esse conceito (adotado pela CVM), caberia aos administradores levar em consideração não apenas os interesses dos acionistas (ou cotistas do fundo de investimento), mas de todas as partes interessadas relevantes, de maneira concomitante, sem que haja uma hierarquia entre esses objetivos [5].
Assim, com a redação do artigo 49, parágrafo único, da Resolução CVM nº 175, há o reconhecimento da possibilidade (e licitude) de o gestor de fundos de investimento direcionar seus esforços para a obtenção de resultados que beneficiem não apenas os cotistas, mas toda a sociedade, rompendo com a concepção clássica segundo a qual os deveres fiduciários dos gestores implicariam unicamente na obrigação de maximização dos lucros (na linha defendida, por exemplo, por legisladores republicanos nos EUA que vêm se posicionando contrariamente à pauta ESG [6]).
E, como forma de prevenir práticas como o greenwashing, a CVM estabeleceu regras mais rigorosas de transparência e prestação de contas a respeito das metas estabelecidas pelos fundos ESG, que deverão indicar quais os objetivos socioambientais esperados, como a política de investimentos busca alcança-los, quais as métricas e parâmetros para a divulgação de informações, além de indicar a entidade externa à empresa responsável pela emissão de parecer de segunda opinião sobre a qualificação adotada.
Em virtude deste último ponto, torna-se ainda mais importante que empresas e fundos adotem padrões já reconhecidos, uma vez que reduzem as assimetrias informacionais e permitem aos investidores tomar decisões mais assertivas com base em referenciais compartilhados por todo o mercado. Dessa forma, normas técnicas como a ISO 14.030-1:2021 (que traz padrões para avaliação de performance ambiental de green bonds), a recém-lançada ABNT PR 2030 (que apresenta conceitos e diretrizes relacionados aos fatores ESG, com orientações para sua aplicação em organizações) ou a certificação como empresa integrante do Sistema B (que se trata, segundo definição constante na página do Sistema B, de um movimento global “com objetivo de redefinir o sucesso na economia para que sejam considerados não apenas o êxito financeiro, como também o bem-estar da sociedade do planeta” [7]) emergem como valiosos referenciais para fundos que pretendem utilizar a denominação ESG.
Com a nova regulamentação, o mercado de capitais brasileiro avança no fortalecimento da pauta ESG, seguindo a proposta da Comissão de Valores Mobiliários de que “incrementos e aperfeiçoamentos ocorram ao longo do tempo, conforme as discussões sobre finanças sustentáveis forem amadurecendo” [8].
Sérgio Luiz Beggiato Junior é advogado no escritório Gomm Advogados Associados (Curitiba/PR), pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, em Compliance e Integridade Corporativa pela PUC-MG e em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, graduando em Segurança da Informação na Universidade Católica de Brasília (UCB).