Continuação da parte 1
6. Alíquota
Alíquota do imposto, em virtude do tempus regit actum, é a vigente ao tempo da abertura do inventário. No momento da morte a norma adere ao fato, acompanhando-o em ultratividade até o recolhimento do tributo [1]. Consectário elementar, a despeito alterações na alíquota para mais ou para menos, a herança continuará sequelada na exata medida da lei vigente ao tempo da transmissão.
A definição das alíquotas máxima e mínima compete ao Senado por meio de resolução. Trata-se de cometimento da maior gravidade, pois a imoderação do imposto causa mortis afeta diretamente a propriedade privada, que é uma das garantias fundamentais.
A Resolução 09/1992, elevou o teto do ITCM aos atuais 8%. Não há possibilidade de retroação para convalidar as exações anteriores à Resolução 09/1992, e em hipótese alguma pode a lei estadual atrelar a alíquota aos influxos do teto estabelecido pelo Senado.
A progressividade do tributo foi objeto de aceso debate. O Supremo Tribunal Federal já havia rejeitado o ITBI progressivo, tendo até criado enunciado sumular para este fim [2]. Antes disso, a Suprema Corte também houve por desautorizar a progressividade no IPTU [3], que passou a ser viável apenas com o advento da Emenda Constitucional 29. O fundamento reside na natureza real desses tributos, assim como do ITCM. Enquanto nos tributos reais é considerado apenas o objeto da tributação, sem dar importância às condições particulares do contribuinte, nos tributos pessoais certas qualidades juridicamente qualificadas do contribuinte, e não mais dos bens, são preponderantes na exação. Nos tributos pessoais a capacidade contributiva, entendida como a soma das riquezas disponíveis depois de satisfeitas necessidades elementares da existência, é fator primordial para o incremento da tributação. Maior é a colaboração ao erário por quem dispõe de maior disponibilidade econômica, o que evidentemente não se observa nos tributos reais, que não incursionam na efetiva geração de riquezas pelo contribuinte.
Apesar da referida jurisprudência que vinha se formando, o Supremo referendou a progressividade no ITCM no julgamento do Tema 21 de sua repercussão geral [4]. Em que pese o IR, o ITR e o IPTU não prescindam de autorizações específicas para a progressividade [5], o STF entregou aos Estados a faculdade de instituir o imposto causa mortis com o mesmo predicado progressivo, agora ao fundamento da cláusula geral do artigo 145, § 1º da Constituição, assim como de que a grandeza da herança seria indicativo suficiente da capacidade contributiva. É um estado de coisas contraditório, já que a base de cálculo no imposto sucessório não é sinal de capacidade contributiva, pois os bens são recebidos a título gratuito, ao contrário de como acontece com o ITBI, em que a aquisição onerosa evidencia capacidade econômica do contribuinte.
Outros fatores para elevar a alíquota, como o grau de parentesco entre o autor da herança e os herdeiros [6], têm sido rejeitados pelo STF.
7. Lançamento
Quanto ao modo de lançamento, não é possível extraí-lo das normas processuais, sendo ele definido na legislação local instituidora. Isso porque as questões tributárias são acessórias ao processo de inventário.
Em regra, o lançamento do imposto é feito por declaração do contribuinte, que comunica os aspectos materiais dos diversos fatos geradores. A autoridade fiscal atribui aos bens valores fixados em pauta fiscal, por ela unilateralmente atribuído, deitando sobre os herdeiros o ônus impugnativo, motivo pelo qual não surpreende a constatação de que usualmente o valor venal atribuído pela fazenda aos bens do espólio é maior que o preço efetivamente encontrado em uma negociação no mercado.
Na verdade, a declaração prestada pelo contribuinte deveria gozar de presunção de que corresponde ao valor de mercado, tal como decide o Superior Tribunal de Justiça em relação ao ITBI [7]. Para o STJ, não é possível à autoridade arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI, podendo afastar os valores declarados apenas mediante o devido processo administrativo. Dessa forma, o ônus argumentativo e probatório é transferido ao Estado, privilegiando-se a boa-fé do contribuinte. Resta aguardar que a tese definida pelo STJ para o lançamento por declaração no ITBI alcance também o ITCM quando lançado na mesma modalidade.
Pela lei o termo inicial para o lançamento é o trânsito em julgado da decisão homologa os cálculos, com fundamento no art. 638, § 2º, do Código de Processo Civil. É o mesmo entendimento desde o Código de 1939, como veiculado no enunciado 114 o Supremo Tribunal Federal [8].
A redação do artigo 654 do Código Processual é desprovida de dúvidas no tocante à ordem dos atos processuais: primeiro se paga o imposto, e depois vem a sentença da partilha.
No entanto, em oposição à norma processual e sumular, para o Superior Tribunal de Justiça o dies a quo deve ser outro, já que o conhecimento formal do acervo transferido, assim como dos herdeiros e legatários definitivos, se dá apenas por ocasião do julgamento da partilha [9]:
“1. A jurisprudência do STJ entende que a prolação da sentença de homologação da partilha é que possibilita a identificação dos aspectos material, pessoal e quantitativo da hipótese normativa de incidência do ITCMD, não sendo possível a realização de lançamento antes de tal homologação. (…)” (AgInt no REsp n. 1.786.162/DF, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 16/5/2019, DJe de 30/5/2019.)
Com razão a instância superior. As normas processuais evidentemente não têm vocação para abordar questões tributárias como o lançamento. O artigo 638 não foge à essa regra, vez que disciplina apenas o procedimento, e, mesmo neste quesito deixa a desejar. É a autoridade da norma complementar tributária que condiciona o lançamento ao conhecimento pelo Fisco da matéria de fato indispensável à sua realização [10]. Estes aspectos subjetivo e objetivo somente estarão bem delineados com o julgamento da partilha. Basta lembrar a hipótese dos quinhões desiguais na sucessão testamentária para perceber que mesmo depois das últimas declarações pode subsistir dúvida quanto ao valor de cada quinhão, cujo valor é indicado apenas na partilha, conforme artigos 651, IV e 653, I, “c“, do Código de Processo Civil.
Em razão disso é que somente no ano seguinte ao julgamento — e do trânsito em julgado — da partilha é que se inicia o prazo decadencial a que alude o artigo 173, I, do Código Tributário. Este, o entendimento rotineiro do Superior Tribuna de Justiça [11].
“(…) 2. O prazo decadencial, nos casos de ITCMD, tem início a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorreu o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, que seria a data em que o lançamento poderia ter ocorrido
3. Agravo interno a que se nega provimento.” (AgInt no AREsp nº 1.473.610/PR, relator ministro Og Fernandes, 2ª Turma, julgado em 8/6/2020, DJe de 15/6/2020.)
É preferível manter a coerência das normas tributarias do que dar cumprimento inflexível à norma de procedimento. Aliás, tratando-se de prazo decadencial, pouco importa o conhecimento efetivo da autoridade fiscal sobre a transmissão causa mortis. O lançamento deve ser realizado nos cinco anos contados do termo inicial atrás indicado, sob pena de perda do direito [12]. O prazo segue incólume até seu estertor, independentemente do conhecimento do fato gerador pela administração tributária [13], sendo difícil divisar hipóteses em que a Fazenda desconheça a transmissão, pois já nas primeiras declarações ela é citada para acompanhar o feito.
Ainda por conta da natureza decadencial do prazo, mesmo na pendência de questionamento judicial sobre algum aspecto da exação deve a Fazenda lançar o tributo nos cinco anos, assemelhando-se àquela hipótese em que se ajuiza demanda para discutir a existência ou o modo de ser da relação jurídica tributária com o Fisco [14]. Nestas circunstâncias a autoridade fiscal não está impedida nem de lançar nem de reivindicar o tributo, a não ser quando suspensa a exigibilidade na forma legal [15].
Dito tudo isso, a nua realidade dos foros por vezes põe ao chão toda a teoria e o arcabouço legal. Não raro, Fisco e juízos sucessórios abstraem as normas processuais, como se dá quando o juízo abdica do dever de apreciar os cálculos impugnados [16], ou quando a Fazenda exige nos autos o recolhimento, antecipado até mesmo às últimas declarações. Outras vezes se espera dos sucessores e do Fisco que se componham em separado, e que aos autos venha apenas o tributo já lançado e recolhido, sem qualquer pronunciamento judicial. Aos advogados, ora premidos em voluntarismos, é melhor adotar a prudência, impugnando apenas o estritamente necessário aos interesses dos herdeiros. Em não havendo prejuízos, é preferível acatar a inovação no procedimento. Lado outro, havendo risco de ao final consolidarem-se de forma distinta os aspectos objetivo ou subjetivo da exação, é devida a irresignação para que se cumpra a jurisprudência do STJ, sem esquecer das devidas cautelas para viabilizar a condução até a instância superior.
Estas inquietações, felizmente, não se verificam no arrolamento sumário. Nestes casos de partilha amigável, o legislador previu a homologação da partilha e a expedição do formal independentemente do recolhimento do imposto [17]. Assim, são inúteis quaisquer tentativas da autoridade tributária de condicionar a conclusão do arrolamento ao pagamento do tributo.
“(…) III – O art. 659, § 2º, do CPC/2015, com o escopo de resgatar a essência simplificada do arrolamento sumário, remeteu para fora da partilha amigável as questões relativas ao ITCMD, cometendo à esfera administrativa fiscal o lançamento e a cobrança do tributo. (…)” (REsp n. 1.896.526/DF, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Seção, julgado em 26/10/2022, DJe de 28/10/2022.)
Desta vez sem reparos, o artigo 659, § 2º, do Código de Processo Civil, aparta o procedimento de arrolamento do lançamento tributário, determinando a intimação da Fazenda somente depois de lavrado o formal e expedidos os alvarás.
8. Inventário extrajudicial
Finalmente, em se tratando do inventário extrajudicial tem se exigido o recolhimento anterior à lavratura da escritura pública, ao fundamento do artigo 15 da Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça. Sem razão para tanto, já que as resoluções não se sobrepõem às Leis, e o artigo 134, VI, do Código Tributário determina a responsabilidade solidária dos tabeliães apenas nos tributos incidentes sobre o ato documentado cartorialmente, o que à toda evidência não se verifica nos inventários. O fato gerador no ITCM é a transmissão, que se dá a abertura da sucessão, e não com o feitio do ato notarial. Não fosse assim, o ITBI seria devido já na lavratura da escritura, e não no registro desta na matrícula, o que não é endossado pelos tribunais [18].
Por último, apesar das autoridades fiscais conferirem interpretação extensiva ao artigo 611 do Código de Processo Civil para fins de multar os inventários extrajudiciais iniciados depois de findo o prazo de dois meses, este prazo cinge-se apenas aos feitos judiciais. A redação deste artigo é destinada ao processo de inventário, cometendo ao magistrado sua prorrogação, o que, à toda evidência, não pode implicar a gestão judicial dos prazos nos procedimentos notariais. Trata-se de evidente lacuna normativa que não pode ser integrada em prejuízo dos herdeiros.
[1] Enunciado 112 da súmula da jurisprudência dominante do STF: “O imposto de transmissão “causa mortis” é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura da sucessão.”
[2] Enunciado 656 da súmula da jurisprudência dominante do STF: “É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI com base no valor venal do imóvel.