Bruna Mattos: Privacidade como garantia constitucional

No último dia 17, a Procuradoria Geral da República (PGR) enviou ao Supremo Tribunal Federal um requerimento contendo uma lista das providências judiciais necessárias para levantamento das evidências consideradas relevantes à investigação dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, ocorridos em Brasília, no bojo do Inquérito nº 4.921, que tramita no STF.

Dentre as providências judiciais requisitadas, destacou-se o pedido consistente no “envio, em arquivo eletrônico em formato .pdf, da lista completa com os nomes e dados de identificação dos seguidores de Jair Messias Bolsonaro” pelas empresas provedoras das redes sociais mantidas e/ou utilizadas pelo ex-presidente (Instagram, LinkedIn, Tik Tok, Facebook, Twitter, YouTube etc.)

Joedson Alves/Agência Brasil

Também foi requerido “que, relativamente a cada publicação, as empresas informem as quantidades de: a) visualizações; b) curtidas; c) compartilhamentos; d) repostagens/retweets; e) comentários; f) demais métricas aferíveis”.

Além desses pedidos, foi requerida a apresentação da “integralidade das postagens referentes a eleições, urnas eletrônicas, Tribunal Superior Eleitoral, Supremo Tribunal Federal, Forças Armadas e fotos e/ou vídeos com essas temáticas”, assim como a juntada aos autos de um vídeo publicado nas redes sociais do ex-presidente, que havia sido removido de sua página, mas mantido pela empresa Meta, por determinação judicial, nos termos do Marco Civil da Internet.

Em nota sobre o tema, a PGR afirmou que “o objetivo do pedido é obter informações que permitam avaliar o conteúdo e a dimensão alcançada pelas publicações do ex-presidente em relação aos fatos ocorridos em 8 de janeiro nas redes sociais”.

O leitor apressado poderia argumentar que há uma violação do princípio da necessidade, previsto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em seu artigo 6º, III “necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados”.

Não é o caso, contudo, de aplicação da LGPD. É que em seu artigo 4º, III, o diploma prevê as hipóteses em que o tratamento de dados pessoais não está sujeito a suas disposições legais, a saber, os tratamentos de dados pessoais para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou em caso de atividades de investigação e repressão de infrações penais.

O pedido formulado pela PGR, de listagem dos seguidores do ex-presidente, trata justamente de uma das hipóteses de exceção na aplicabilidade da LGPD, a saber, a investigação e repressão de infrações penais, o que pode levar a uma falsa sensação de inexistência de proteção jurídica da privacidade dos indivíduos.

Muito embora não haja aplicação da LGPD, desde o ano passado a proteção dos dados pessoais foi alçada à condição de direito fundamental, conforme previsto no artigo 5º, LXXIX da Constituição Federal (CF): “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.

Não há dúvidas de que o requerimento da PGR deflagra uma colisão entre direitos fundamentais e, portanto, da estrutura ponderativa por meio da qual se expressam. No caso em análise, diversos poderiam ser os princípios constitucionais conflitados, mas, na opinião da autora, estão em xeque a garantia da proteção dos dados pessoais e a defesa da ordem constitucional e do Estado Democrático (artigo 5º, XLIV).

Segundo a teoria de Robert Alexy [1], amplamente adotada pelos tribunais brasileiros, com destaque para o STF, diante de uma colisão de direitos fundamentais, é necessário encontrar uma solução que permita a coexistência dos direitos em conflito. Trata-se da fórmula da ponderação que envolve, em apartada síntese, três etapas principais.

Primeiro, é preciso avaliar o peso dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais em conflito são ponderados para determinar sua importância relativa em um caso concreto. O próximo passo é determinar qual direito fundamental tem maior peso no caso em questão. O direito que tiver um peso maior prevalecerá sobre o outro. Por fim, a restrição proporcional. Em outras palavras, o direito que prevaleceu terá sua aplicação restrita na medida do possível para acomodar o outro direito afetado. Essa restrição deve ser proporcional ao peso do direito preterido.

A fórmula da ponderação ajuda a equilibrar os direitos em conflito e a garantir a harmonização dos direitos fundamentais em um sistema jurídico. No caso em questão, conforme nota publicada pela própria PGR, o objetivo das evidências requeridas é apenas o de delimitar o alcance das fake news nas plataformas digitais utilizadas pelo ex-presidente. Segundo a Procuradoria, os seguidores do ex-presidente não estão sendo investigados: “Só há um investigado neste caso: o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro”.

Não restam dúvidas de que o motivo que ensejou o pedido é legítimo, a saber, constituir provas num procedimento penal a fim de averiguar o cometimento de uma infração criminal que gerou prejuízos sem precedentes às instituições democráticas brasileiras. Esse não é o ponto.

A questão é saber se a medida é proporcional ao fim que almeja atingir. E a resposta é não. Para atingir a finalidade de se medir o alcance das ditas fake news e quanto ditas desinformações contribuíram para os atos terroristas de 8 de janeiro, bastaria o pedido do relatório de alcance e compartilhamento das postagens desinformativas, pedido este que também foi feito por ocasião do requerimento em análise.

Não se refuta a importância da persecução penal daqueles envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, tampouco a utilização de meios tecnológicos para produção de provas no bojo dos procedimentos penais. Muito longe disso. Porém, quando o assunto é a relativização de garantias fundamentais, é preciso cuidado e, sobretudo, sangue frio, sob pena de se conferir um remédio muito mais danoso do que a própria doença que se pretende combater.

Bruna Leite Mattos é sócia e advogada da área de Direito Empresarial e especialista em LGPD de Martorelli Advogados.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor