Caio Ferraris: Futebol, reclamações e direitos humanos

Reclamação e justiça andam lado a lado. Reclamar é sinônimo de exigir, reivindicar, mostrar descontentamento para fazer valer seus direitos.

No âmbito trabalhista, por exemplo, temos de um lado o reclamante, que exige o cumprimento de direitos, e de outro o reclamado, quem em tese negou vigência a tais direitos. No âmbito constitucional, a Carta Magna prevê a figura da reclamação constitucional, na qual o reclamante pleiteia que se garanta a autoridade das decisões e competência dos tribunais superiores.

Aos injustiçados, não só a reclamação é direito, como também conduta socialmente esperada. Não reclamar de determinada situação implica na dedução de conformidade com o que foi decidido. Quem nunca, ao assistir uma partida de futebol, ouviu do comentarista de arbitragem a seguinte frase: “O pênalti foi bem marcado, o time nem reclamou”.

Ninguém gosta de perder e desconfiar de um único juízo de valor é inato ao ser humano.

Entre as diversas conquistas das sociedades modernas, encontra-se justamente o “direito de reclamar”. Não se concebe um sistema de justiça democrático sem a possibilidade do indivíduo levar seus pleitos a um juiz imparcial e, inclusive, de requerer uma segunda avaliação do acerto/desacerto da decisão.

No campo dos direitos humanos, é justamente o que prevê, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 14.5), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, bem como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 8.2H), adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos.

Se de um lado reclamar é uma quase necessidade psicológica humana, frequentemente exigida socialmente, inclusive no campo desportivo, observa-se um movimento cada vez maior das entidades que gerem o futebol por inibir cobranças consideradas agressivas contra a arbitragem.

É o caso da Premier League, primeira divisão do campeonato inglês de futebol, que implementou na atual temporada diversas medidas que incentivam os árbitros a tomarem atitudes mais robustas contra reclamações. Na terra do Rei Charles 3º, pedir cartão amarelo para o adversário após uma entrada dura é motivo do reclamante ser penalizado com o cartão.

Na 22ª rodada do Campeonato Brasileiro de futebol, o árbitro Anderson Daronco expulsou o zagueiro Murilo, na partida entre Corinthians e Palmeiras, por reclamar de forma persistente, dizendo “você está de sacanagem, você está de sacanagem”.

Exagero? Qual o limite entre a reclamação, justa e legítima, e o desrespeito ao árbitro, ao espetáculo e ao espírito esportivo?

Ao que parece, ao invés de regulamentar e/ou orientar sobre o que seria uma reclamação aceitável, enquanto exercício de direito humano e inapto aos indivíduos, ainda mais dentro de um cenário competitivo no qual ninguém quer perder, opta-se pela repressão.

É evidente que o esporte não pode tolerar xingamentos, desrespeitos e reclamações que extrapolem o legítimo exercício do descontentamento com determinada decisão. Por outro lado, entendo que existem mecanismos mais proporcionais para compatibilizar o legítimo, e incontrolável, ato de reclamar com a integridade do evento esportivo.

Ao possibilitar, por exemplo, o desafio de determinadas decisões dos árbitros, as ligas americanas, como a NBA e NFL, abrem caminho para que jogadores e comissão técnica reclamem, de maneira justa e legítima.

Aqui mesmo, em solo nacional, o Guia de Arbitragem da Confederação Brasileira de Vôlei estabelece algumas prerrogativas ao capitão da equipe: “Os capitães da equipe têm o direito de protestar formalmente sobre a aplicação ou interpretação dos árbitros das regras antes, durante ou depois de uma partida” (artigo 5.2).

O caminho da repressão pode ser mais fácil para controlar as reclamações dentro de um campo de futebol. O que se verá na prática, contudo, é um aumento de punições com cartões vermelho e amarelo, a interferência cada vez maior dos árbitros e dos tribunais no evento esportivo e o soterramento de reclamações justas e legítimas durante a partida.

A história mostra que quando o direito se descola da realidade, o destino é o fracasso das leis. Se o objetivo é manter o respeito e a integridade do evento esportivo, adotar medidas para simplesmente calar uma reclamação justa e legítima, por exemplo diante de um lance não revistável pelo VAR, parece fadado ao insucesso.

Perde o espetáculo.

Consultor Júridico

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