Ao contrário do que vem sendo repercutido, os decretos recentemente publicados pelo governo federal não permitem a exploração do serviço sem licitação pelas companhias estaduais de saneamento.
Envolta em polêmicas jurídicas desde a sua promulgação, a Lei nº 14.026/2020, apelidada de Novo Marco Legal do Saneamento Básico, promoveu alterações consideráveis na prestação de tais serviços no país.
Com quase três anos de vigência, a lei já foi alvo de diversas ações diretas de inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal). A polêmica do momento se dá em torno dos decretos presidenciais editados pelo atual governo para regulamentar aspectos da lei.
Uma das alterações que se buscou promover com a lei é a forma de contratação dos prestadores, estabelecendo o contrato de concessão como forma contratual padrão, precedido de licitação. A obrigação de licitar existirá sempre que o potencial prestador não fizer parte da estrutura administrativa do titular do serviço (artigo 10). Ou seja, a lei permite a prestação direta. Esse ponto é importante para compreensão da atual controvérsia, retornarei a ele adiante.
O governo federal editou os Decretos nº 11.466 e 11.467, ambos em 5/4/2023, que visam, respectivamente, estabelecer novo rito da comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas e regulamentar a prestação regionalizada dos serviços. Para os fins desse artigo, vamos nos restringir à análise do segundo decreto.
A prestação regionalizada é incentivada pelo novo marco legal do saneamento básico (artigo 2º, XIV) como forma de fornecer ganho de escala à prestação dos serviços. É inclusive proibida a alocação de recursos públicos federais em operações de saneamento que não sejam regionalizadas (artigo 50, VII), com exceções.
Dentre as modalidades de prestação regionalizada elencadas no novo marco do saneamento, a mais utilizada tem sido a criação de microrregiões (artigo 3º, VI, a). Nesse formato, os estados criam as microrregiões por lei complementar estadual, e os municípios são obrigados a aderir a tais agrupamentos, conforme entende o STF e conforme já previa a Constituição (artigo 25, §3º).
Além disso, com a criação dessas estruturas regionais, o interesse deixa de ser local e passa a ser comum, atraindo a co-titularidade do Estado em relação à prestação do serviço (artigo 8º, II), não sendo mais exclusiva dos Municípios. As decisões passam a ser tomadas em órgãos colegiados, com participação do Estado e dos municípios integrantes da microrregião.
Antes mesmo da edição da Lei nº 14.026/2020, o STF já havia chegado a essa conclusão ao julgar a ADI nº 1.842/RJ. Na oportunidade, a Corte entendeu que a adesão compulsória não viola a autonomia municipal e que a titularidade do serviço passa a ser compartilhada entre Estado e municípios nas regiões metropolitanas/aglomerações urbanas/microrregiões.
Uma interpretação conjugada do artigo 8º, II, com o artigo 10 da Lei permite concluir que, nas prestações regionalizadas, o colegiado gestor da microrregião não está obrigado a licitar a prestação do serviço se a sua execução for delegada a alguma empresa estatal municipal ou estadual que tenha condições de fazê-lo. Tais empresas, por fazerem parte da estrutura administrativa dos integrantes da microrregião, se enquadram na exceção contida no art. 10 do novo marco do saneamento.
Para esclarecer esse ponto e dar segurança jurídica à operação, o Decreto nº 11.467/2023, em seu artigo 6º, §16, dispõe que a prestação dos serviços em determinado município da estrutura de prestação regionalizada por entidade que integre a administração do respectivo Estado dependerá da autorização da entidade de governança interfederativa e será equiparada à prestação direta.
Esse ponto do decreto tem sido alvo de investidas judiciais e políticas: o Partido Novo e o Partido Liberal ajuizaram as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) nºs 1.055 e 1.057 perante o STF, com pedido de anulação do decreto. A Câmara dos Deputados, por sua vez, aprovou projeto de decreto legislativo para sustar os efeitos dessa disposição do decreto, e a matéria aguarda análise pelo Senado.
Contudo, como visto, a possibilidade de prestação direta em tais casos decorre diretamente da lei, e não do decreto. A eventual anulação/suspensão/revogação do ato não eliminará essa possibilidade, mas apenas os critérios jurídicos para seu exercício, que são fornecidos pelo decreto, como: autorização do colegiado regional, formalização dos termos da prestação, anuência da entidade reguladora, etc.
Portanto, não são os novos decretos presidenciais que permitem a prestação direta pelas companhias estaduais dos serviços de saneamento básico, mas a própria Lei nº 14.026/2020. A eventual retirada dos decretos do ordenamento jurídico não produzirá efeitos sobre esse ponto, apenas eliminará a regulamentação dos requisitos de como a prestação direta deve ocorrer.
Essa opinião é compartilhada por juristas como André Luiz Freire [1] e por Vera Monteiro [2], respectivamente:
“(…) Se o estado é o titular dos serviços (‘em conjunto com os municípios’), uma vez instituída a autarquia regional, seria possível que esta descentralizasse tecnicamente para uma empresa estadual de saneamento?
Não existe um impedimento para que isso ocorra, desde que ela fique restrita à descentralização da prestação. O importante é que, neste caso, haja a previsão legal expressa desta descentralização técnica da prestação e que, como deveria ocorrer nas tomadas de decisão relacionadas à descentralização, exista justificativa técnica mostrando que esta é a melhor opção para o interesse público”.
“(…) Já no caso de interesse comum, em que o Estado é o titular do serviço público de saneamento, não há óbice para uma entidade que integre a Administração estadual prestar serviços via contrato de concessão a município que integre região metropolitana ou afim, sem licitação.
O ente da Administração indireta do Estado está autorizado a prestar serviços aos municípios metropolitanos via contrato de concessão, celebrado diretamente, sem licitação. Corretamente, o artigo 10 da LSB não proibiu esta solução. (…) É equivocada qualquer interpretação do dispositivo que importe em proibição de contratação direta, sem licitação, de empresa estatal estadual por município metropolitano tão somente para dar espaço para empresa privada participar de licitação.”
Aliás, eventual investida legislativa que insira na própria lei a vedação de prestação direta de serviços pelas companhias estaduais de saneamento nas estruturas regionais corre o risco de ter sua constitucionalidade questionada perante o STF, tendo em vista que ferirá o pacto federativo ao proibir um titular de serviço público de prestá-lo diretamente, bem como por extrapolará a competência da União sobre o assunto, que se limita a instituir diretrizes sobre saneamento básico no país (artigo 21, XX).
Caio Freitas é advogado da Saneamento de Goiás S/A (Saneago), com atuação especializada em Direito Regulatório e das Concessões, especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Ambiental e aluno do MBA em Saneamento do IDP.