Carlos Loiola: Da bacamartiana exegese contida na Lei 14.199

Diz uma antiga lenda dos povos que outrora habitavam nosso Planalto Central que uma capivara estava em desabalada carreira pela vereda que levava ao rio quando um macaco velho, do alto de seu galho de ipê caraíba lhe indagou as razões de tanta correria, no que a tresloucada capivara teria respondido que do outro lado da margem do rio os jacarés-de-boca-grande estavam prendendo todas as antas. Ainda atônito com a resposta da amiga capivara o macaco velho a interpelou novamente: – mas você não é uma anta e sim uma capivara! A capivara então teria respondido ao seu amigo: – É verdade, velho macaco; mas, da forma como anda nossa justiça, atualmente, levarei pelo menos 17 anos para provar que não sou uma anta e sim uma capivara! E os dois amigos se postaram a correr juntos pela mata sombria.

Lembrei-me dessa arrebatadora fábula tupiniquim, há alguns meses atrás (e qualquer semelhança com fatos da vida real não terá sido mera coincidência), quando recebi uma inusitada intimação do tribunal para o qual prestei serviços com vivaz eficiência, pontualidade e assiduidade, por mais de 20 anos, para que eu, nos termos da Lei 14.199/21, comparecesse “pessoal e incontinenti” ao departamento pessoal daquela instituição para provar que ainda estou vivo, sob pena de suspensão dos meus parcos proventos de aposentadoria.

Lembrei-me, também, de que num passado próximo, em processos sob minha vara, cotidianamente aplicava o princípio constitucional estampado no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que uma velha raposa vivente no planalto resolveu apelidá-la de “constituição cidadã” (sic), de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Ora, como nunca fui indiciado e nem mesmo respondi a qualquer processo administrativo, muito menos a processo criminal, logo matutei: nosso revolucionário estado de coisas — que a cada dia que passa mais se distancia do Estado de Direito —, presume que eu sou inocente; mas também, jamais podia imaginar, que depois que me aposentei eu agora estou morto, até que eu “pessoal e incontinenti” (sic) prove o contrário.

Quando cheguei em Caxambu, em 2005, para lá exercer a judicatura, deparei-me naquela trabalhosa comarca com um princípio da praxis local também bastante curioso, vindo de antiga e circunspecta estatística da escrivania forense, de que em 98,5% dos processos de interdição, “todo aquele que, durante a entrevista com o juiz, diz gostar do programa do Chaves, presume-se será interditado”.

Mas, sem querer querendo, pois fui obrigado a me inteirar de quem era esse tal de Chaves, os operadores do Direito do Planalto Central que agora tomam conta de tudo estabeleceram com base na tal “constituição cidadã” e nessa aberrante Lei 14.199/21, que eu me tornei um inocente zumbi, ao me aposentar. Sou inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, mas estou literalmente morto, até que eu mesmo prove o contrário.

A despeito desse meu velório antecipado que o tribunal para o qual eu dediquei muitos anos de meus serviços agora me impinge, em flagrante ato totalmente reprovável e que não pode ficar sem sanção, ainda que só midiática, na medida em que me provoca morte antecipada, fere a minha dignidade de pessoa humana e causa dano à minha imagem, à minha honra objetiva e subjetiva, dano em face de discriminação odiosa e injusta em relação aos vivos da ativa, dano moral em face do abalo de crédito que disso resulta, além de tantos outros, hei de proclamar aos ventos e todos os cantos essa verdadeira aberração jurídica, que fere os mais comezinhos princípios de Direito.

Ora, o primeiro artigo da Constituição da República estabelece como fundamento deste Estado Democrático de Direito em que vivemos: “III – a dignidade da pessoa humana”. Então pergunto: como pode o próprio Estado presumir que uma pessoa esteja morta, até que ela própria prove “pessoal e incontinenti” o contrário, sem ferir a dignidade dessa pessoa? Ainda mais nesses tempos tenebrosos em que a experiência recomenda e o CNJ decretou, vejam só, que eu nem posso mais presumir ser do gênero feminino aquele ser humano que veste saia e usa batom.

É de todo evidente que indigitada disposição legal é natimorta, incompatível com os princípios basilares de nosso Estado Democrático. O Estado não pode simplesmente inverter a lógica de tudo, em face de sua total ineficiência (artigo 37, caput, da CF/88) até em apurar os que já morreram e que continuam a receber algum benefício previdenciário, presumir a morte de seu beneficiário. Tal presunção fere a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do artigo 5°, inciso X, da CR/88.

Para os operadores do Direito do Planalto Central que já não leem mais bons livros, trago as letras de Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado, tomo I, § 51, 5:

“Nascimento com vida. O nascimento com vida encontra a eficácia do fato jurídico da concepção. Note-se bem: a concepção é que compõe o fato jurídico (…) O parto sem vida pré-exclui qualquer efeito por diante; o parto com vida completa o suporte fático para surgir a pessoa, no preciso sentido jurídico. O infans conceptus é suporte fático à parte; o suporte fático entra no mundo jurídico e, como fato jurídico, irradia eficácia. Com os elementos desse suporte fático, mais o nascimento com vida, compõe-se o suporte fático de que exsurge a pessoa. As noções de ficção, de substituição, ou de retroatividade, são, aquelas, supérfluas, e essa, errada”.

Afinal de contas, o estar vivo nada mais é que um direito adquirido, cuja garantia está estampada no artigo 5°, inciso XXXVI, da CR/88 e cuja violação é inclusive um grave crime previsto no artigo 121, do CP.

De notar que mesmo nos processos de ausência, em que surge uma presunção não absoluta de morte para fins de estabelecer a sucessão de bens, ainda nas letras de Pontes de Miranda:

“O herdeiro põe-se no lugar do morto sem precisar de qualquer ato seu, ou de outrem: a lei coloca-o como senhor e possuidor do que herdou, automaticamente.

Na presunção de morte, tudo se passa à semelhança, mas são de mister dois atos judiciais que estabelecem a abertura da sucessão provisória e a sucessão definitiva” (Tratado de Direito Privado, tomo 14, § 1.652).

Portanto, jamais pode haver o reconhecimento de uma morte presumida tal como estabelecida nessa esdrúxula e bacamartiana precitada lei.

O Brasil sempre viveu dessa fúria legislativa de querer regular tudo, em minúcias e de transferir para o cidadão toda a responsabilidade pela constante e imutável ineficiência do Estado, e a cada dia que passa mais topamos com essas aberrações de fazer tremer no sagrado túmulo de nossa melhor literatura machadiana o inesquecível Simão Bacamarte, que em tudo isso vislumbrava fortes sintomas de demência de quem produz essas extravagâncias. Simão Bacamarte que, depois de autorizado pela Câmara de Vereadores, a tantos interditou e prendeu na Casa Verde de Itaguaí, tal como outros discípulos seus estão fazendo hoje de roldão, fundados igualmente em longos teoremas e agora também em cataplasmas jurídicos.

Mas, infelizmente, não posso me esquecer da lenda da capivara e do sábio proceder de seu amigo macaco velho. Ao constatar, apenas a título ilustrativo (pois que os exemplos são aos milhares), que as ADIs 3.854 e 4.014, propostas em única instância perante o Supremo Tribunal Federal levaram nada menos que 17 anos para serem julgadas, mesmo tratando de relevante tema que envolve toda a magistratura nacional, a capivara é que está muito certa.

Enquanto o povo brasileiro for tratado como anta, é melhor mesmo proceder como o macaco velho da lenda e correr para não virar manjar dos jacarés-de-boca-grande.

Consultor Júridico

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