Carlos Loiola: Súmula 444 e o namorado da filha do Ulemá

O caso do namorado gente boa da filha de nosso Grande Ulemá surgiu num singelo problema caseiro, como não poderia ser diferente, mas sua raiz decorre de uma charada bem antiga e conhecida, mas mal resolvida nestas terras: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?

Está escrito na Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 5º, inciso LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É a consagração, em nosso Direito Constitucional, do princípio de que as pessoas são inocentes, até serem condenadas.

Tudo seria muito simples, muito óbvio, acho, se a redação do artigo fosse essa: as pessoas são inocentes até serem condenadas.

Contudo, ao invés de escrever isso, simplesmente, o constituinte preferiu dar uma redação mais arrojada, despojada, pois uma só pena na cabeça não identifica o cacique, que deve ter um cocar inteiro delas; muitas delas.

A redação do princípio, ao que se constata, ficou então a cargo de um exímio charadista trapalhão que cochilou, ou era imaculado, na acepção de estar impregnado de ingenuidade, ou era um inocente, no sentido científico que ele próprio pretendia dar ao vocábulo, ou seja, estava é muito mal intencionado mesmo. Vai ver nem era um charadista, mas um queima-campo.

Para os da urbe que não sabem o que significa esta expressão capialesca, porquanto ela não aparece em qualquer dicionário, Cornélio Pires, jornalista, escritor, folclorista, empresário e genial ativista cultural, consagrado autor de livros e de canções, explica que queima-campo é o caipira que se intromete numa conversa, “assunta o causo” que se discute e aparece logo com outro causo, muito mais espetacular e estrambótico, quase sempre uma patacoada inacreditável, causo que pode ser confirmado também por outra testemunha que o presenciou, testemunha essa conhecida de todos, mas infelizmente já falecida, ou por outra muito famosa e viva, mas totalmente inacessível.

Se o redator do indigitado dispositivo constitucional era um charadista ou um queima-campo à moda de Cornélio Pires, ou quais eram as suas intenções, isso já não vem ao caso nesse momento. O fato é que esta redação criou um verdadeiro imbróglio hermenêutico sobre os quais debruçam muitos operadores do direito, desde 1988.

Aí está a charada constitucional à moda do caipira queima-campo: a expressão “trânsito em julgado” existente no referido artigo 5º, inciso LVII, de nossa Constituição da República é ovo ou é galinha? Quem surge primeiro, o juízo de culpabilidade ou o trânsito em julgado?

Inocentes de todos os gêneros, ou pusilânimes diante da obviedade da constatação do absurdo, ou só despreocupados em resolver a charada segundo princípios científicos, lógicos (a lógica maior), partem muitos operadores do direito de um falso argumento (a lógica menor) em busca da verdade como certeza de um critério racional (a crítica do conhecimento) e acabam por encontrar soluções sem sentido, medíocres. O resultado é o Direito sendo aplicado segundo o que convém para caso concreto, “com a liberdade tão vasta como o vento”, nas palavras de Shakespeare, não das leis; menos da lógica. A própria negação do Direito como Ciência. O Direito pelo avesso.

Sabemos que, para haver uma sentença penal condenatória, preexiste uma sequência dialética estabelecida pela lei penal, pela qual o magistrado deve necessariamente percorrer, para chegar à conclusão, qual seja, a de que o acusado deve ser condenado. Para condenar alguém o magistrado deve necessariamente analisar com antecedência lógica, se o fato praticado pelo agente é típico, antijurídico e culpável. Crime é fato típico, antijurídico e culpável. O agente só pode ser punido criminalmente se cometer um fato previsto na lei como sendo um crime (fato típico), que este fato seja contrário ao ordenamento jurídico (antijurídico), e, finalmente, que o agente seja culpável. Não é possível nenhuma condenação criminal se o magistrado não passou por essa sequência lógica, quase matemática, estabelecida pela lei penal.

Para chegar à sentença penal condenatória, o processo passa por uma natural evolução de atos, com o exame analítico e dialético desses três elementos do crime, que são todos eles pressupostos para aplicação de uma pena, na medida em que não há pena sem crime e não há crime sem esses três elementos. E mesmo depois da sentença penal condenatória o processo continua evoluindo, pois que essa sentença está sujeita a eventual recurso e somente depois de muito evoluir a sentença transita em julgado.

O trânsito em julgado, assim, é uma fase muito posterior ao juízo que se faz acerca da conduta do agente processado, muito posterior ao juízo de culpabilidade, que naturalmente antecede a própria sentença penal condenatória ou com ela é, pelo menos, temporalmente coincidente, incontinenti; jamais subsequente.

Portanto, ao condenar alguém, num processo criminal, o magistrado já afirmou que o fato praticado pelo agente é típico, antijurídico e culpável. O Estado, na pessoa do juiz, já afirmou: o agente não é inocente; está impregnado de culpabilidade.

Com efeito, não existe condenação criminal válida se o fato praticado pelo agente não for culpável, como verbi gratia, se o agente não tinha dezoito anos na data do fato por ele praticado, na medida em que ter 18 anos é um (dentre outros) elemento da culpabilidade criminal. Para condenar alguém, antes disso o magistrado já afirmou que o fato é culpável, com todos os seus elementos constitutivos. O Estado, na pessoa do magistrado, já formou o juízo de culpabilidade do agente.

Então, a resposta da charada do queima-campo só pode ser: o “trânsito em julgado” referido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República é galinha, não ovo. O ovo é a culpabilidade, que naturalmente antecede o juízo de desvalor pessoal da ação, como elemento normativo da reprovabilidade.

Desde Charles Darwin a charada do ovo e da galinha é brincadeira para crianças. A galinha surgiu no planeta muito depois dos dinossauros, que se reproduziam por ovos; portanto, quem surgiu primeiro foi o ovo. Elementar.

Ocorre que a redação do dispositivo constitucional em testilha, como visto, contém uma verdade juridicamente barroca, logicamente inconciliável, coisa do queima-campo: aquilo que deveria suceder, seguir, vir depois (que é o trânsito em julgado), precede o próprio juízo de desvalor pessoal da ação, o juízo da culpabilidade, na medida em que está expresso no dispositivo: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, somente depois do trânsito em julgado pode haver um juízo de culpabilidade.

Dessa forma, um algo indefinido e indecifrável que está contido na sentença condenatória transita em julgado (que na ordem natural darwiniana do dispositivo constitucional jamais pode ser um juízo de culpabilidade), para somente depois disso, desse algo sem conteúdo e misterioso transitar em julgado aparecer a figura do juízo de culpabilidade. Só depois da consequência é que aparece o pressuposto! A galinha antes do ovo.

Sobre essa aberração da ordem natural das coisas foi publicada a súmula 444, do Eg. STJ, que consagrou o entendimento segundo o qual “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

A expressão “ações penais em curso” passou a ser entendida, com base no texto constitucional, como sentenças penais condenatórias ainda não transitadas em julgado, inclusive pelo STF. Moral da história natural brasileira: sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória o sujeito deve ser considerado sem culpa, inocente. Tenho dito: gente boa.

Não bastasse o só fato de ter um número cabalístico, à moda de Malta Tahan, outro grande ativista cultural e genial matador de charadas, essa famigerada súmula se choca com os mais comezinhos princípios de dialética, de sistema e chega mesmo a inviabilizar a solução de jogos de adivinhações geniais. Uma pena na charada de ovos e galinhas. Cria o dessistema, a lógica do “é assim porque o chefe disse que deve ser assim”; a réplica do “foi Deus que quis”, o “considerando que o tema já está sumulado, deixo de raciocinar sobre o assunto” et cetera. Desestimula o uso da inteligência, do dissenso e cria uma unanimidade sem criatividade, preguiçosa, a exemplo do que são, de resto, quase todas as súmulas. Súmulas, na maior parte das vezes, servem mesmo para criar unanimidades preguiçosas, na medida em que praticamente coíbem o dissenso, o contrassenso criativo. As soluções de charadas geniais. Um prêmio à ociosidade aos juízes-ovelhinhas, generosamente enviado pelo grande irmão, bem ao estilo do sempre atual George Orwell.

Para os que pretendiam dar um efeito suspensivo ao juízo de culpabilidade, para outros processos do mesmo agente, se é que isso seria possível, bastaria uma simples reforma do disposto no artigo 59, do Código Penal, retirando-se dele a análise dos antecedentes. Só isso. Embora um tanto estranho, o sistema ainda teria um mínimo de lógica. Contudo, nossas leis também sofrem da famigerada síndrome de cacique. Elas não se contentam em ser apenas índios; querem todas ser caciques, normas constitucionais, ainda que aberrantes, à queima-campo.

Aí começam a surgir os alquimistas da lógica natural das coisas, os que veem no dispositivo constitucional aberrante poderes mirabolantes só vistos por eles. E para nos convencerem desses poderes, citam convenções internacionais, declarações de direitos humanos, começam a nos lançar em distinções as mais barrocas, assistêmicas e inimagináveis, partindo da premissa menor inconciliável com a lógica. Tudo para demonstrarem o que a obviedade da teoria da evolução não conseguiu explicar-lhes.

Ocorre que a norma em questão deve ser aplicada em uma infinita gama de situações fáticas. A dinâmica da vida que a tudo envolve e que é tão bem explicada por Darwin: a relação que existe em tudo. E a gambiarra hermenêutica feita para conciliar um caso concreto aqui, acolá se mostra desastrosa. Aparecem as trava-mentes, como a demonstrada por um ministro, no seu voto proferido no RE 591.054: a Suprema Corte afirma que uma condenação penal não transitada em julgado não pode ser considerada para fins de antecedentes. Contudo, a simples existência de um pressuposto de prisão cautelar justifica o encarceramento do sujeito.

Assim, o juízo cautelar, que é provisório, precário e visa tão somente a garantir a efetividade do provimento jurisdicional ao final, garantia do processo, no sistema que ignora a teoria da evolução passa a ter mais força que o próprio juízo de mérito, o juízo de proteção social, que é o fim do Direito Penal.

Então, chegamos à seguinte conclusão: o sujeito, mesmo sem juízo de culpabilidade formado, mas com o precário juízo cautelar, provisório, meramente de garantia do processo, este pode ser preso, cautelarmente. Autoriza-se a prisão daquele que a Constituição da República afirma ser presumivelmente inocente, para garantia de um bem maior, o juízo de proteção social, que é o fim do Direito Penal. Contudo, após o juízo de culpabilidade, revelado pela condenação, esta não pode ser levada em conta para fins de se dizer que o condenado não possui a circunstância da culpabilidade em seu desfavor. Deve ser considerado em pé de igualdade a um inocente. Aqui não vale mais o juízo de proteção social, o fim do Direito Penal.

Essa famigerada súmula tirou meu sono muitas vezes, quando ainda proferia sentenças condenatórias. Certa vez até tive um pesadelo. Cabalístico, como os números de Malba Tahan, que me encantavam na juventude tanto quanto a doce e amável Yasmim. Sonhei que Fauzi Trevic havia sido convocado pelos Ulemás a se explicar acerca de uma certa frase que havia colocado numa de suas sentenças: jus ars boni et eaqui. Havia causado mal-estar. Lá no grande palácio do Ulemá, viu ele humildemente alguns Cádis em reunião informal e que um deles reclamava para o colega que havia descoberto que seu filho adolescente estava fazendo coisa errada. Assim: — “descobri que meu filho fez mal-feito, mas quando perguntei a ele, o jovem me jurou que não tinha feito nada daquilo”. O segundo Cádi o acalmou, com um tapinha nas costas, à brasilis: — “você é que é feliz: outro dia isso também aconteceu lá em meu modesto palácio; ao mostrar para meu filho o mal feito já descoberto ele me respondeu que não havia provas contra ele”. Nisso interveio o Grande Ulemá, senhor das jurisprudências mais sábias, da paz e da prosperidade dos povos, e foi logo dizendo sua sentença: — “vocês dois estão muito rigorosos com seus filhos! Outro dia descobri que minha filha Yasmim, de 17 anos, da sétima concubina, está namorando um sujeito de vinte e sete anos, sujeito este com uma ficha criminal de 37 pergaminhos recheados, quarenta e sete condenações por cinquenta e sete decapitações; quando mostrei para Yasmim a ficha desse sujeito ela alegou que já sabia disso, mas que não era para eu me preocupar, pois seu namorado havia garantido que nenhuma das condenações criminais daquela ficha ainda havia transitado em julgado; e ela tinha razão”, concluiu o Grande Ulemá: — “nossa súmula 444 não permite que desconfiemos de ninguém, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Uassalã!”. Acordei. Era só mais um pesadelo cabalístico!

Consultor Júridico

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