No último dia 20 de junho, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), por sua 3ª Turma, reconheceu à unanimidade a obrigação de a Vale S.A. pagar indenização por dano-morte em favor de cada um dos 131 trabalhadores mortos na tragédia de Brumadinho (MG), mantendo o arbitramento feito pela instância inferior em R$ 1 milhão por vítima.
Para o julgamento, partiu a Turma das seguintes premissas principais: (a) o dano-morte (pretium mortis) difere dos danos reflexos sofridos pelos familiares das vítimas fatais, estes objeto de acordo firmado anteriormente em ação civil pública; (b) o direito à vida, a dignidade humana e o princípio da reparação integral possibilitam a indenização por dano-morte; (c) o artigo 948 do Código Civil contém cláusula de abertura que autoriza a concessão de outras reparações advindas do evento morte além daquela decorrente dos danos reflexos causados aos familiares; (d) a aquisição do direito oriundo do dano-morte é automática, simultânea à ocorrência do fato danoso e independente do estado anímico da vítima; e (e) a proporcionalidade do valor arbitrado à extensão do dano.
Ao longo do acórdão, a Turma, como também fez o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT–3) ao negar provimento ao recurso ordinário da Vale S.A., utilizou como fonte o direito comparado ao basear-se na disposição do artigo 496º, item 2, do Código Civil português, a autorizar a indenização por dano-morte, sobre o qual já se tratou em artigo publicado na coluna Direito Civil Atual em 17 de abril de 2023.
No que mais interessa a este artigo, analisa-se o teor dos artigos 948, 949 e 950 do Código Civil brasileiro, os quais disciplinam a indenização decorrente do evento morte e de lesão ou ofensa causada à saúde da vítima. Segundo o primeiro dispositivo, no caso de homicídio, “a indenização consiste, sem excluir outras reparações”, no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família e na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.
Já os artigos 949 e 950 tratam das rubricas que compõem a indenização em caso de lesão ou ofensa à saúde da vítima, quais sejam: despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, além de outro prejuízo comprovadamente sofrido, e pensão correspondente à importância do trabalho para o qual a vítima se inabilitou ou a depreciação que sofreu se da ofensa resultar defeito pelo qual não possa o ofendido exercer seu ofício ou profissão ou que lhe diminua a capacidade laboral.
No acórdão em referência, o TST reafirmou trechos do anterior julgado do TRT-3, mantendo-os como razões de decidir. Entre eles, destaca-se aquele alusivo à interpretação de que os artigos 949 e 950 do Código Civil reforçariam a cláusula aberta verificada no artigo 948 ao estabelecer a possibilidade de “outras reparações”, considerando a “incongruência” de considerar que a lesão à integridade corporal acarreta indenização sem que nenhuma referência se faça à compensação dos casos extremos em que a lesão tenha levado à morte.
Parece ter andado bem o TST ao firmar a indenização pelo dano-morte em favor das vítimas da tragédia de Brumadinho, considerando as especificidades do caso. Ao adotar as premissas expostas no início deste artigo como ratio decidendi, verifica-se a correção na fundamentação do acórdão, tendo em vista, ainda, que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) determina a observância aos costumes e aos princípios gerais de direito quando omissa a lei (artigo 4º) e o atendimento aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum quando de sua aplicação (artigo 5º).
Não se pode deixar de pontuar, todavia, não parecer ser a posição mais acertada a conclusão lançada no acórdão de que a aquisição do direito à indenização oriundo do dano-morte é automática, simultânea à ocorrência do fato danoso e independente do estado anímico da vítima. O artigo 186 do Código Civil pressupõe a causação efetiva de dano para configuração do ato ilícito ensejador da reparação e, nessa medida, se a morte da vítima foi imediata, a priori não há que se falar sofrimento ou dor sentidos que signifiquem a experimentação de um dano efetivo e apto a gerar o dever de indenizar.
Geneviève Viney e Patrice Jourdain defendem a impossibilidade de reconhecimento de indenização em casos de morte imediata, uma vez que a personalidade jurídica, que é o suporte necessário para os direitos subjetivos, não sobrevive à morte e, nessa condição, não podem os herdeiros demandar a reparação. É nesse sentido, aliás, a orientação jurisprudencial italiana, segundo a qual, nas palavras de Amaury Rodrigues Pinto Junior, apenas nos casos em que a vítima sobreviveu por tempo razoável à lesão, suficiente para vivenciar o sofrimento decorrente da perda de esperança de vida, se justifica a compensação moral.
Permitir que os herdeiros recebam a indenização quando não houve experimentação, pela vítima, do dano significa, também, abrir margem ao reconhecimento do enriquecimento sem causa em favor desses familiares, vedado pelo Código Civil (artigo 884) — o que não se confunde, é preciso salientar, com o direito à percepção da indenização decorrente dos danos reflexos causados aos parentes da vítima. Sem configuração clara de dano e de ato ilícito não pode subsistir o direito à compensação pecuniária, sob pena de se admitir a descaracterização do nomos ocupado pela teoria da responsabilidade civil.
Como destacado em artigos anteriores publicados na coluna Direito Civil Atual, é de se evitar a “fuga para a responsabilidade civil”. Reconhecer autônomo e independente do estado anímico da vítima o direito à indenização moral decorrente de um dano não efetivamente experimentado parece distorcer a função da responsabilidade civil, assumindo o instituto o descabido papel de agente involuntário de distribuição de renda ou mesmo de enriquecimento — o que não é sua função jurídica e histórica.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
Júlia d’Alge Mont’Alverne Barreto é doutoranda em Direito Civil (Universidade de São Paulo), mestre em Direito Constitucional (Universidade de Fortaleza) e advogada no escritório Braga, Lincoln e Seixas Advogados.