Castro e Sousa: Competência para julgar desvios no SUS

Este texto discute sobre quando a competência para julgar desvios de repasses para o SUS é da Justiça Federal e quando é da Justiça estadual. A discussão tem como ponto de partida o fato de os autores terem advogado em numerosas operações em que houve o reconhecimento da incompetência da Justiça distrital, inclusive com a anulação de provas, como no caso da operação “grabato” [1].

A atenção dos autores se voltou sobre o tema em 2020: eram deflagradas operações por todo o país em razão de possíveis desvios de recursos destinados ao combate da pandemia. Um cenário de tristeza homogênea, mas que tinha uma peculiaridade no Distrito Federal. Enquanto no resto do país as operações eram deflagradas pela Polícia Federal, por decisões da Justiça Federal [2], na capital eram ordenadas pela Justiça distrital.

Tal situação causou assombro, pois era de conhecimento público que tais ações de combate à pandemia eram providenciadas com repasses extraordinários da União, em razão da emergência sanitária. E isso, evidentemente, atrai a competência da Justiça Federal para apurar eventuais desvios, por se tratar de crime praticado em detrimento da União, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição.

No mencionado caso da operação “grabato”, a própria decisão que deferiu a medida menciona que “os Estados receberam vultosas quantias repassadas pela União e é crucial que o Ministério Público apure adequadamente os investimentos recebidos” e que “é público e notório que a Polícia Federal tem deflagrado diversas operações em Estados da Federação com o auxílio da CGU“. Mais: a decisão autorizou que as buscas fossem acompanhadas pela CGU (órgão federal), pois o que fosse apreendido “poderá ser também objeto de investigação na via administrativa“. Ou seja, o interesse da União foi utilizado como argumento para deferir a operação, mas ignorado para a fixação da competência. Tais investigações restaram anuladas, por habeas corpus impetrado pelos autores.

Ocorre que mesmo após a anulação da operação “grabato” houve mais investigações com o mesmo erro de competência, inclusive sobre contratos destinados ao enfrentamento do Covid-19 [3]. Embora a operação “alto escalão” não tratasse de desvios relacionados à pandemia, também dizia respeito a verbas provenientes da União destinadas ao SUS. O MP-DF protestou quando suscitamos a incompetência da Justiça distrital, argumentando que era um caso diferente: as verbas eram repasses ordinários repassados ao DF na modalidade “fundo a fundo”, não recursos excepcionalmente transferidos, portanto, elas teriam sido incorporadas ao patrimônio do DF e a competência era distrital. Evidentemente que não prosperou e houve o reconhecimento da competência da Justiça Federal [4].

Mais recentemente, nos deparamos com novo esforço argumentativo do MP-DF para avocar competência para si. Em investigações de desvios de recursos do Instituto de Gestão Estratégica do Distrito Federal (Iges), argumenta que o órgão recebe repasses federais indiretamente: primeiro, a União faz repasses ao DF, depois, este remete para o instituto valores provenientes da União bem como de outras fontes. Assim, como o recebimento de verbas da União é indireto, não há competência Federal – isso foi escrito explicitamente, com outras palavras, em pedidos de busca e apreensão. Na operação “ethon”, por exemplo, o pedido de buscas contém um tópico inteiro com esse argumento.

Todavia, o TJ-DF já definiu que a competência para apurar irregularidades em contratos do Iges é da Justiça Federal [5], considerando que seus recursos são provenientes do Fundo de Saúde do Distrito Federal, que é composto majoritariamente por repasses do Fundo Nacional de Saúde destinados a custear o SUS. A verdade é que as teses do MP-DF para avocar atribuição para investigar repasses do SUS ignoram uma jurisprudência muito bem estabelecida há um quarto de século pelos tribunais superiores.

Em 1997, o TCU estabeleceu que “os recursos repassados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, constituem recursos federais e que, dessa forma, estão sujeitos à fiscalização desta Corte” [6]. Tal decisão estava de acordo com o que o STF já decidia, a exemplo do RE 196.982, julgado mais cedo naquele ano: desvios de repasses destinados ao SUS atraem a competência da Justiça Federal, por existir interesse da União, seja pela origem dos valores, seja pelo delito ser praticado em detrimento de serviços federais [7]. Em 1998, o STJ sumulou o tema:

“Súmula 208: Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.

Súmula 209: Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.”

Num primeiro momento, pode-se questionar: quando há transferência dos recursos pelo SUS não há transferência e incorporação ao patrimônio do município ou do DF, afastando a competência da Justiça Federal, conforme dispõe a Súmula 209? Não é o caso, pois, nas palavras do próprio STJ, “as verbas (transferidas pelo SUS aos fundos dos Entes Federativos), embora sejam devidamente incorporadas aos respectivos fundos de destino, não perdem a natureza federal, de forma que ainda remanesce interesse e legitimidade do Tribunal de Contas da União – TCU para a devida fiscalização na aplicação da verba (Decisão/TCU n. 506/1997, Plenário, Ata n. 31/97)” [8].

Desde então, a jurisprudência apenas consolidou o entendimento exposto acima [9], afastando os argumentos de que os valores foram incorporados [10], de que a transferência foi realizada na modalidade fundo a fundo [11], de que a verba era administrada pelo estado membro ou município [12], etc.

Todavia, o mesmo equívoco continua a ocorrer no Distrito Federal, o que não sabemos se é comum no resto do país. As Turmas Criminais do TJ-DF vêm, acertadamente, corrigindo os erros cometidos pela primeira instância e pelo MP-DF. Não obstante, tais erros, relativos a matéria pacificada há mais de 25 anos, ainda são cometidos. Apenas nos últimos meses pode-se mencionar a operação “gotemburgo” [13] e a operação “dinheiro sujo” [14], em que o TJ-DF determinou a remessa dos autos à Justiça Federal por investigar a aplicação de verbas do SUS.

Tais erros resultam em imenso prejuízo para a apuração dos desvios, considerando que é possível até mesmo que as investigações sejam anuladas. A esse respeito, conforme escrevemos recentemente no texto “O que é (e o que não é) a teoria do juízo aparentemente competente“, as provas só podem ser aproveitadas quando no decorrer das investigações são encontrados elementos novos que denotam a competência de outro juízo. Entretanto, em casos como os discutidos aqui, desde o começo é evidente que os desvios apuram recursos do Sistema Único de Saúde.

Voltando ao objeto do texto: quando a competência para julgar desvios de recursos destinados ao SUS será da Justiça distrital? A resposta é nunca. Segundo jurisprudência dos últimos 25 anos, repasse ao SUS são verbas federais sujeitas à fiscalização do TCU quanto à sua destinação e aplicação, o que denota o interesse da União e a competência da Justiça Federal para apurar eventuais desvios.

 


[1] RHC 130.197/DF, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, republicado no DJe 12/11/2020, DJe 03/11/2020.

[2] Quando pesquisamos em julho de 2020, encontramos 18 casos de operações sobre desvios de recursos destinados ao combate da pandemia que foram deflagradas na Justiça Federal: 1) Operação “alquimia”; 2) Operação “dúctil”; 3) Operação “exam”; 4) Operação “profilaxia”; 5) Operação “para bellum”; 6) Operação “antídoto”; 7) Operação “panaceia”; 8) Operação “virus infectio”; 9) Operação “cobiça fatal”; 10) Operação “dispneia”; 11) Operação “placebo”; 12) Operação “expurgo”; 13) Operação “casa de papel”; 14) Operação “personale”; 15) Operação “scepticus”; 16) Operação “solercia”; 17) Operação “inópia”; e 18) Operação “apneia”;

[3] A operação “falso negativo” é um bom exemplo: RHC 142.308/DF, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, DJe 15/4/2021.

[4] AgRg no HC 672.224/DF, relator ninistro Jesuíno Rissato (Convocado do TJDFT), 5ª Turma, DJe 27/09/2021.

[5] Acórdão 1606835, HC 0720299-19.2022.8.07.0000, rel. desemb. Sebastião Coelho, 3ª Turma Criminal, DJe 09/09/2022.

[6] TCU, Decisão 506/1997, Plenário, rel. Iram Saraiva, julgado em 13/08/1997, Ata 31/1997.

[7] “3. A competência originária para o processo e julgamento de crime resultante de desvio, em Repartição estadual, de recursos oriundos do Sistema Único de Saúde – SUS, é da Justiça Federal, a teor do art. 109, IV, da Constituição.  4. Além do interesse inequívoco da União Federal, na espécie, em se cogitando de recursos repassados ao Estado, os crimes, no caso, são também em detrimento de serviços federais, pois a estes incumbe não só a distribuição dos recursos, mas ainda a supervisão de sua regular aplicação, inclusive com auditorias no plano dos Estados” (RE 196.982, rel. min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, j. 20/02/1997, DJ 27/06/1997).

[8] AgRg no HC 672.224/DF, rel. min. Jesuíno Rissato (Convocado), 5ª Turma, DJe 27/09/2021.

[9] No que diz respeito à jurisprudência do STJ, pode-se mencionar: (i) CC 8.345/SP, rel. min. José Dantas, Terceira Seção, DJ 19/08/1996; (ii) HC 35.996, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJ 06/12/2004; (iii) CC 122.376, rel. min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 22/08/2012; (iv) AgRg no CC 122.555, rel. min. Og Fernandes, Terceira Seção, DJe 20/08/2013; (v) AgRg no CC 129.386, min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 19/12/2013 (vi) RHC 57.862, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 01/09/2015; (vii) RHC 52.205/RS, rel. min. Ribeiro Danas, Quinta Turma, DJe 14/08/2017; (viii) AgRg no HC 481.220/SP, rel. min. Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 18/11/2019; (ix) HC 510.584/MG, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 19/12/2019; (x) AgRg no CC 170.558/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe 17/08/2020; (xi) AgRg no CC 170.558/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe 17/08/2020; (xii) EDcl no RHC 130.197/DF, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 27/11/2020; (xiii) AgRg no AREsp 1.733.014/MG, rel. min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 18/12/2020; (xiv) AgRg no CC 169.033/MG, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe 18/05/2020; (xv) RHC 142.308/DF, rel. min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 15/04/2021; (xvi) AgRg no RHC 156.413/GO, rel. min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 08/04/2022; (xvii) .

[10] AgRg no CC nº 129.386/RJ, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, DJe 19/12/2013.

[11] AgRg no CC nº 169.033/MG, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, 3ª Seção, DJe 18/05/2020.

[12] RHC nº 56.162/RS, rel. min. Ericson Maranho, 6ª Turma, DJe 29/03/2016. No mesmo sentido: RHC 53.652/RS, rel. min. Felix Fischer, 5ª Turma, DJe 17/03/2015.

[13] Acórdão 1712557, HC 07109600220238070000, rel. desemb. Waldir Leôncio Lopes Junior, 3ª Turma Criminal, DJe 20/06/2023.

[14] Acórdão 1608683, HC 07133143420228070000, rel. desemb. Asiel Henrique de Sousa, 3ª Turma Criminal, DJe 02/09/2022.

Pedro Machado de Almeida Castro é advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).

Vinícius André de Sousa é advogado do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP.

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