César Novais: Protagonismo da vida no Tribunal do Júri

No Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma, pregado em 1669 em Lisboa, o maior orador sacro da língua portuguesa, Padre Antônio Vieira, ensinou que “não basta ver para ver, é necessário olhar para o que se vê” [1]. Então, é preciso ver e também olhar para o juiz natural dos “crimes de sangue” com o escopo de compreender a instituição do Tribunal do Júri.

Por óbvio, o direito à vida é a pedra angular do procedimento dos crimes dolosos contra a vida (artigos 406/497 do CPP), sobretudo em seu ponto culminante, o julgamento popular. Quando isso é esquecido, tudo é esquecido.

A vida é a fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos. É o centro da organização política, social, econômica e jurídica do Estado. Toda pessoa tem o direito à vida, de gozá-la e desfrutá-la, incumbindo ao Estado o dever de protegê-la de forma eficiente, pois há um direito humano e fundamental que precede todos os demais: o direito de não ser morto.

O princípio axiológico fundamental do ordenamento jurídico e do sistema de justiça deve ser o da plenitude da tutela da vida [2], que impõe a sua proteção integral multinível, envolvendo todo o aparato estatal legislativo, administrativo e judiciário, bem como todas as pessoas e a sociedade civil. Na linha do pensamento de Rudolf Von Ihering, a luta pela defesa e proteção do direito à vida é um dever de todos, de cada pessoa, para consigo própria e para com a sociedade, e de todos os componentes do Estado [3].

Nesse contexto, a tutela estatal objetiva a preservação do ser humano, haja vista que a vida, além de ser bem jurídico individual, carrega inestimável valor social. Ao Estado incumbe a precípua função de garantir a coexistência pacífica e segura entre as pessoas. Por força de imposição constitucional e convencional de proteção do direito à vida, há um imperativo de tutela jurídica e jurisdicional como sua garantia.

De nada adianta discutir e afirmar o direito à vida sem garantir a sua efetiva defesa e proteção. Sem isso, tal direito está fadado a não ser levado a sério [4]. Logo, incumbe ao Direito Penal proteger a vida humana, emprestando-lhe tutela jurídica, e ao Tribunal do Júri, no exercício do Processo Penal, compete a proteção jurisdicional através de tutela repressiva (retributiva em uma dimensão individual) e inibitória (preventiva  em uma dimensão individual e social), visando conferir maior segurança pública, manter a indispensável paz social e preservar a existência das pessoas.

TJ-RJ

Conforme o disposto no artigo 5º, XXXVIII, “d”, da Constituição, a tutela jurisdicional penal da vida humana pertence ao Tribunal do Júri. Por consequência, é imprescindível analisar o processo que alberga o crime doloso contra a vida sob a perspectiva vidacêntrica. É dizer: o alcance e o sentido do Tribunal do Júri devem ser interpretados conforme o bem jurídico jurisdicionalmente tutelado, qual seja, o direito à vida (artigo 5º, caput c.c. XXXVIII, “d”, da CF). Ou seja, o Tribunal do Júri, que julga os “crimes de morte”, é instrumento de defesa, proteção e reafirmação da vida humana. Isso jamais pode ser esquecido.

O atentado contra a vida de uma pessoa, o extermínio de um ser humano, o dano aos projetos de vidas [5] e o sofrimento dos entes queridos e amigos da vítima exigem punição idônea, séria e grave para reafirmar a importância do direito à vida (prevenção geral positiva) e, simultaneamente, prevenir novos ataques a outras vidas, seja pela intimidação (prevenção geral negativa), seja pela retribuição (prevenção especial negativa). A interpretação dos fatos, das provas e das leis deve ser orientada pelo princípio da plenitude da tutela da vida.

Vale dizer, o Estado deve atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir violação à fonte de todos os direitos humanos: a vida. O processo penal não é mero escudo do acusado, porque é instrumento para a concretização da justiça. Isso inclui punição séria e idônea ao violador.

Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com decisões vinculantes, tem exigido o cumprimento de obrigações estatais de proteção dos direitos humanos violados, com o fito de obstar a impunidade [6] e proteger judicialmente vítimas e seus familiares. Não à toa que o Brasil fora condenado várias vezes pela corte especificamente por impunidade em homicídios.

Aliás, a impunidade é a mão invisível da descrença na justiça e do incremento da criminalidade. A impunidade de ontem são as injustiças de hoje. A impunidade de hoje são as injustiças de amanhã. Afinal, o grau de civilização de um povo é mensurável pelo grau de proteção do direito à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição ao assassino, pelo Estado. A falta de punição ou a punição insuficiente ao assassino viola os direitos humanos, gera o descrédito no sistema de Justiça, abre espaço para a vingança privada e pavimenta o caminho do regresso à guerra de todos contra todos.

Isso significa dizer que a violação à norma estabelecida pelo artigo 121 do CP, qual seja, “não matarás”, invoca a lembrança reluzente de que a vida é direito inviolável, que reclama proteção jurídica e jurisdicional integral. A sanção deve ser idônea e séria, para fins de efeitos repressivo e preventivo. É preciso reafirmar o compromisso e o dever de que todas as pessoas que cruzarmos na vida cumprirão com o dever de não matar.

Bem por isso, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, a interpretação deve ser guiada pela bússola pro vita [7], em busca da efetiva e adequada tutela jurídica e jurisdicional da vida humana. Logo, é vital que os olhos estejam fixados no princípio da plenitude da tutela da vida humana, que permeia todo o ordenamento jurídico e que consiste em um vetor de interpretação legislativa na proteção do bem indisponível e inviolável, que é a vida. Esse princípio deve informar e orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas, inclusive, as que incidem direta ou indiretamente no procedimento dos crimes dolosos contra a vida (direito material e processual).

Tudo bem-visto, a conclusão a que se chega é tão somente uma: segundo a interpretação literal-teleológica e sua localização topográfica no texto constitucional, verifica-se que o Tribunal do Júri consiste em mandado constitucional expresso de jurisdição popular nos casos em que o direito à vida é deliberadamente violado (artigo 5º, XXXVIII, da CF). É a expressão da legitimação democrática da função jurisdicional, com o selo da soberania popular (artigo 1º da CF). E isso tem uma razão de ser: trata-se de instituição democrática e instrumento de tutela jurisdicional adequada e efetiva da inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput, da CF). Se bem visto e olhado o Tribunal do Júri, é possível constatar que essa instituição, ao contrário do que muitos pregam, não é escudo de quem se levantou contra a existência de outrem, mas sim instrumento de tutela jurisdicional penal do alfa e o ômega de todos os direitos humanos e fundamentais, a vida. Quando isso é esquecido, tudo é esquecido [8].

 


[2] Cf. LOUREIRO, Caio Márcio. Princípio da plenitude da tutela da vida no tribunal do júri. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017. p. 23-24.

[7] Do contrário, estar-se-á desprotegendo, ou protegendo de forma deficiente, o direito à vida. (Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989. p. 161).

César Danilo Ribeiro de Novais é promotor de Justiça do Tribunal do Júri (MP-MT), mestre em Direitos Humanos e Fundamentais pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e autor do livro A Defesa da Vida no Tribunal do Júri.

Consultor Júridico

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