A longa e difícil trajetória do reconhecimento dos direitos humanos das pessoas com deficiência encontrou o seu marco definitivo com a edição, pela Organização das Nações Unidas, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
É o primeiro tratado de direitos humanos do século 21 e foi ratificado pelo Brasil — juntamente com o seu Protocolo Facultativo — mediante a observância do procedimento previsto no artigo 5º, § 3º, da Constituição, o que significa encontrar-se situada no patamar de emenda constitucional e acarretar a derrogação de todas as normas que com ela lhe sejam incompatíveis, além de provocar profundas mudanças no sistema jurídico e no tratamento dessa temática, em virtude das inúmeras obrigações que são estabelecidas para as empresas, para a sociedade em geral e para o Estado brasileiro.
A transformação resulta do reconhecimento do respeito à dignidade inerente, como define o seu artigo 1, ou seja, “garantir o reconhecimento, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência em igualdade de oportunidades e não-discriminação com as demais” [1].
Inserido na alínea “a” do artigo 3º da Convenção, representa o direito ao respeito à sua condição de igual em todos os aspectos da vida que são reservados às demais pessoas, com ou sem deficiência, para cujo exercício se faz necessário reconhecer as suas particularidades e implementar as medidas necessárias para que possam exercer os direitos e liberdades e cumprir os seus deveres.
Não se trata, pois, de dignidade diferente. A referência direta se explica pela história de menosprezo à condição de igual da pessoa com deficiência. A rigor, nem se faria necessária a menção expressa na Convenção, pois decorrência direta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, mas serve para demonstrar a necessidade da diferença para ser igual. A dignidade é igual, mas, para tanto, a pessoa com deficiência é merecedora de tratamento diferente, sem que, com isso, se esteja a violar a dignidade inerente a todos os seres humanos.
O direito à inclusão e efetiva participação na sociedade em tudo o que lhes disser respeito também é assegurado na Convenção. Por isso, cabe alertar, como faz Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, quanto ao que significa incluir [2].
Diferentemente da integração, que pressupõe incorporação de pessoas que consigam adaptar-se à sociedade, por méritos exclusivamente seus [3], a inclusão pressupõe que todos compõem e fazem parte da mesma comunidade, e não de grupos distintos. Exige do poder público e da sociedade em geral atitudes diferentes, pois deverão oferecer condições necessárias para todos [4]. “Portanto, diferentemente da integração, não se espera a inserção daquele que consegue adaptar-se’, mas garante a adoção de ações para evitar a exclusão” [5].
É “[…] processo pelo qual a sociedade busca elementos que permitam incluir em seus sistemas sociais pessoas com necessidades especiais e concomitantemente essas pessoas estariam se preparando para assumir papeis sociais” [6].
A pessoa com deficiência tem o direito de usufruir do mesmo espaço social e lhe são assegurados diversos direitos na Convenção, a exemplo do direito à mobilidade pessoal (artigo 20), direito à liberdade de expressão e opinião e acesso à informação (artigo 21), direito à educação inclusiva e à participação efetiva em uma sociedade livre (artigo 24, 1, alínea “c”), direito ao trabalho e ao emprego (artigo 27), direito à participação na vida política e pública (artigo 29) e na vida cultural e em recreação, lazer e esporte (artigo 30).
Abrange a escolha do local de residência e de onde e com quem se vive (artigo 19º, alínea “a”) — com direitos a prestações públicas —, e o acesso a uma variedade de serviços domiciliares, residenciais e outros de apoio à comunidade e assistência pessoal (alínea “b”).
Inúmeras foram as obrigações fixadas para o Estado brasileiro no artigo 4 da Convenção, entre outros dispositivos, que podem ser sintetizadas no compromisso de assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência.
Abrangem todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, o que alcança os direitos econômicos, sociais e culturais, medidas de ordem legislativa e administrativa, programas e políticas públicas, edição ou alteração de leis, consultas e envolvimento ativo dos organismos sociais representativos dos interesses das pessoas com deficiência, em especial das crianças com deficiência.
Apesar de se encontrar em vigor no Brasil desde 26 de agosto de 2009 (Decreto nº 6.949), e haver sido editada, posteriormente, a importantíssima Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) — Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 —, os efeitos esperados pela nova realidade normativa ainda se encontram longe de serem atingidos.
Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua — PNAD Contínua 2022 do módulo Pessoas com Deficiência, coletados no terceiro trimestre de 2022 e disponibilizados pelo IBGE no dia 7 de julho último [7], revelam o longo caminho que ainda resta a ser percorrido em direção à efetiva igualdade.
Segundo a Pesquisa, no Brasil, 18,6 milhões de pessoas de 2 anos ou mais de idade possuem algum tipo de deficiência (8,9% da população) e vale ressaltar que esses números seguem as recomendações internacionais do Grupo de Washington para Estatísticas sobre as Pessoas com Deficiência, a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, e se encontram de acordo com a mencionada Convenção e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, o que significa considerar apenas aquelas que responderam ter muita dificuldade ou não conseguir de modo algum realizar diversos tipos de atividades funcionais.
São mais mulheres (10,0%) do que homens (7,7%), mais pessoas pretas (9,5%) do que pardas (8,9%) e brancas (8,7%). Desse universo, a maioria se encontra no Nordeste (10,3%), seguido pelo Sul (8,8%), Centro-Oeste (8,6%), Norte (8,4%) e Sudeste (8,2%).
Desse contingente, 47,2% possuem 60 anos ou mais de idade, enquanto 12,5% nessa mesma faixa etária não possuem deficiência.
Os dados revelados pela pesquisa (quadro abaixo) e adotados exemplificativamente, demonstram que as pessoas com deficiência se encontram em posição de inferioridade em todos os quesitos, quando comparadas com as pessoas consideradas sem deficiência.
ITEM |
C/DEF |
S/DEF |
Taxa de analfabetismo |
19,5% |
4,1% |
Pessoas que concluíram o Ensino Médio |
25,6% |
57,3% |
Pessoas com nível superior |
7,0% |
20,9% |
Participação na força de trabalho |
29,2% |
66,4% |
Participação na força de trabalho (pessoas com nível superior) |
54,7% |
84,2% |
Nível de ocupação |
26,6% |
60,7% |
Trabalho informal |
55,0% |
38,7% |
Taxa de escolarização – crianças de 6 a 14 anos (frequência) |
95,1% |
99,4% |
Taxa de escolarização – jovens de 15 a 17 anos (frequência) |
84,6% |
93,0% |
Taxa de escolarização – grupo de 18 a 24 anos (frequência) |
14,3% |
25,5% |
Atraso escolar – crianças de 6 a 14 anos (idade-etapa de ensino) – Ensino Fundamental |
89,3% |
93,9% |
Atraso escolar – jovens de 15 a 17 anos (idade-etapa de ensino) – Ensino Médio |
54,4% |
70,3% |
Atraso escolar – grupo de 18 a 24 anos (idade-etapa de ensino) – Ensino Superior |
14,3% |
25,5% |
Trabalho por conta própria (mulheres) |
31,0% |
20,4% |
Trabalho doméstico (mulheres) |
18,8% |
12,2% |
Rendimento médio real habitualmente recebido |
R$ 1.860 |
R$ 2.690 |
Rendimento médio (homens) |
R$ 2.157 |
R$ 2.941 |
Rendimento médio (mulheres) |
R$ 1.553 |
R$ 2.347 |
Fonte: IBGE
Os números precisam ser estudados pelos órgãos do Estado encarregados de implementar as políticas públicas de inclusão nas diversas áreas. E mais. Demonstram a necessidade de imediata tomada de posição para que se possa evitar a perpetuação da desigualdade por gerações.
A taxa de analfabetismo, por exemplo, é quatro vezes maior entre os dois grupos e também reflete as desigualdades regionais, pois a mais alta do país é no Nordeste (31,2%) e a mais baixa no Sul (12,7%).
Ainda de acordo com o IBGE, para cada 100 pessoas com deficiência, aproximadamente 20 são analfabetas e apenas uma em cada quatro concluiu o Ensino Básico Obrigatório.
A taxa de escolarização é sempre menor nos três grupos analisados (crianças, jovens e o pessoas entre 18 e 24 anos de idade) e no atraso escolar, observada por meio da taxa de frequência líquida ajustada, que considera a adequação idade-etapa de ensino, a desigualdade é ainda maior e permanece nos três grupos: 89,3% das crianças entre 6 e 14 anos com deficiência frequentavam o Ensino Fundamental, contra 93,9% entre os sem deficiência; 54,4% (pouco mais da metade) dos jovens de 15 a 17 anos com deficiência frequentavam o Ensino Médio frente a 70,3% dos jovens sem deficiência e, no terceiro grupo (entre 18 e 24 anos), os percentuais são de 14,3% 25,5%, respectivamente, para o Ensino Superior.
Sem educação de qualidade, as dificuldades de formação profissional serão ainda maiores e reduzirão as possibilidades de inclusão no mercado de trabalho.
Desde os anos 1990, estudos demonstram haver diferenças significativas entre pessoas com deficiência que estavam a trabalhar por apresentarem escores mais elevados referentes à qualidade de vida e adquirirem outros ganhos, a exemplo de habilidades sociais, círculo de amigos e melhor aparência. Apresentavam melhora considerável na qualidade de vida, o que inclui o desenvolvimento pessoal, constatado a partir do aumento de relações sociais, das amizades e das chances de se manterem no emprego, entre outros aspectos individuais, quando comparados com os que não estavam inseridos no mercado de trabalho.
Em termos de ocupação, a taxa é mais do dobro entre as pessoas sem e com deficiência (66,4% e 29,2%) e é proporcionalmente inversa em relação à informalidade (26,6% e 60,7%). Em 2022, apenas 29,2% das pessoas com deficiência no Brasil estavam na força de trabalho, equivalentes a 5,1 milhões de pessoas, distribuídas entre as regiões Centro-Oeste (35,7% – maior percentual), Norte (35,1%), Sul (29,6%), Sudeste (28,5%) e Nordeste (26,8% – menor percentual). Contudo, 12 milhões delas estavam fora da força de trabalho. Dos 99,3 milhões de pessoas ocupadas no Brasil em 2022, 4,7% eram pessoas com deficiência.
A disparidade também é refletida na remuneração. O rendimento médio real habitualmente recebido pelas pessoas com deficiência corresponde a 69,14% do percebido pelas pessoas sem deficiência, ainda menor no caso das mulheres dos dois grupos (66,16%).
Infelizmente, como regra geral, o tema somente toca àqueles que, de alguma forma, possuem contato próximo com o universo vivenciado pelas pessoas com deficiência, no qual palavras como discriminação, exclusão, preconceito, entre outras, fazem parte do cotidiano.
Insisto em dizer que a atribuição da equivalência a emenda constitucional pelo Congresso brasileiro à Convenção da ONU vincula os Poderes constituídos à adoção dos objetivos nela consagrados.
O Brasil adotou uma clara posição política de inclusão desse grupo vulnerável. Esteve entre os 82 países que a assinaram no primeiro dia disponibilizado para assinaturas (30 de março de 2007).
Assumiu compromissos perante os demais países e a sociedade brasileira, que incluem conscientização, implementação de acessibilidade, garantia do direito à vida, proteção em caso de situações de risco e emergências humanitárias, reconhecimento da igualdade efetiva perante a lei, acesso à justiça, prevenção contra a exploração, a violência e o abuso, proteção da integridade da pessoa, direito a vida independente e inclusão na comunidade, direito à educação, à saúde, à habilitação e reabilitação, ao trabalho e ao emprego, à participação na vida política e pública, entre muitos outros.
Se o caminho percorrido até agora foi longo, sinuoso, acidentado e sem pavimentação, somente o firme propósito de modificá-lo pode gerar as consequências desejadas por todos e concretizar os valores mencionados na Constituição de 1988, dirigidos a atingir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fazer da promessa realidade e alcançar os objetivos nela traçados, de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Aproxima-se o dia 21 de setembro, dia escolhido como o Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência, por ser próximo ao início da primavera, estação em que a natureza floresce, e representa a luta e a renovação das pessoas com deficiência. Que a renovação não fique apenas nas flores do campo. Urge, pois, a mudança.
Cláudio Brandão é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, doutor em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa “Luís de Camões”, mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (Cadeira nº 39), da Academia de Letras Jurídicas da Bahia (Cadeira nº 19), do Instituto Baiano de Direito do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, membro correspondente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e investigador integrado do Ratio Legis — Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autônoma de Lisboa [Projeto: Cultura de Paz e Democracia].