Não é à toa que os CEOs de Meta e Google passaram a mencionar amigos em conversas sobre inteligência artificial: personagens criados por IA para fazer companhia e simular relacionamentos já estão entre as ofertas mais populares da internet.
Líder do segmento, o Character.AI já está entre os cem sites mais buscados no Brasil. O também popular Polybuzz cobra R$ 50 ao mês para oferecer acesso a personagens que flertam mais —com uso ilimitado de voz, já está entre os 30 aplicativos de entretenimento mais rentáveis dos Estados Unidos e do Brasil, de acordo com o monitor de audiência em celulares Sensor Tower.
Os personagens mais acessados da Polybuzz incluem um brasileiro: MC Paiva, descrito como um funkeiro milionário e pai de dois filhos, de comportamento protetor.
Vídeos no TikTok mostram como jovens engatam desde amizades até relacionamentos amorosos com os personagens, que também podem ter aparência e personalidade definidos por instruções do usuário.
A influenciadora Debora Oliveira acumulou 800 mil seguidores tratando do tema com humor, mas alerta: “Já trouxe algumas vezes ao público a importância de não desenvolver sentimentos pelos bots de IA.”
Outros apps como Chai e Emochi têm ganhado popularidade por serem mais liberais em relação ao conteúdo do bate-papo, e a Meta já fez testes oferecendo a possibilidade de conversar com personagens de IA baseados em celebridades. O Google ainda não estreou no meio, mas contratou os fundadores da Character.AI.
O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, fez um possível diagnóstico que explica a procura por companhia artificial. Durante entrevista a um podcast, ele afirmou que o americano médio considera que tem 3 amigos, enquanto quer ter 15.
Para o executivo, ainda há um estigma sobre a interação emocional entre pessoas e chatbots. “Ao longo do tempo, nós vamos achar um vocabulário para articular porque as pessoas com esse comportamento são racionais.”
O CEO da Meta está propondo um remédio para uma mazela que ele ajudou a criar, avaliam pesquisadores ouvidos pela reportagem —o crescente sentimento de solidão.
“Criaram uma tecnologia [as redes sociais] que no princípio pretendia aumentar os laços entre as pessoas, e, na verdade, ela vai se mostrando cada vez mais uma tentativa de substituir os laços”, afirmou a psicanalista Vera Iaconelli, também colunista da Folha.
De acordo com Iaconelli, existem sintomas de que a troca do contato humano pelas interações virtuais é um erro. “Nunca se sofreu tanto psiquicamente, nunca as pessoas se sentiram tão sós, tão isoladas, tão adoecidas, tão medicalizadas como hoje”, afirma.
O nível de isolamento autodeclarado no Brasil é o mesmo dos Estados Unidos, de acordo com pesquisa da Meta encomendada ao instituto Gallup: 15%. Porém, os jovens brasileiros relatam um sentimento menor de apoio social —34% dizem não se sentirem queridos pelas pessoas, contra 25% nos Estados Unidos.
Folha Mercado
Receba no seu email o que de mais importante acontece na economia; aberta para não assinantes.
A tecnologia pode ajudar os amigos a estarem mais disponíveis, defendeu o CEO do Google, Sundar Pichai, durante evento da big tech. Segundo ele, a IA vai permitir que as pessoas sejam mais prestativas entre si.
Uma nova ferramenta do Google, anunciada pelo executivo da big tech, vai permitir ver arquivos e emails do usuário e escrever respostas no lugar dele. Assim, ficaria mais rápido, por exemplo, responder a um amigo sobre detalhes de uma viagem guardados em um documento antigo —também haveria menos chance de esquecer o pedido de ajuda.
“Eu poderia ser um amigo melhor”, disse o executivo ao mostrar como vai funcionar o recurso, disponível por meio de uma assinatura anual de R$ 980.
Segundo o anúncio do Google, a ferramenta só funcionará com consentimento do dono dos arquivos e os dados não serão usados com outra finalidade além de personalizar o assistente.
Iaconelli questiona: “Os amigos te autorizam a deixar as informações deles e a comunicação com eles mediada por uma máquina que vai ter todas essas informações à disposição?”
Zuckerberg também já citou que as pessoas usam a inteligência artificial como terapeutas ou para ensaiar discussões difíceis com pessoas amadas e assim tomar decisões.
Para ele, a tecnologia também precisa de mais dados para atender aos desejos mais subjetivos. “À medida que o ciclo de personalização começa a funcionar e a IA passa a conhecê-lo cada vez melhor, acredito que isso será realmente fascinante.”
O estudioso das mídias Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, recordou à Folha que desde a revolução industrial existe uma promessa de que a tecnologia ajudará as pessoas a economizar tempo. A janela de ociosidade, porém, teria diminuído pouco desde então.
Ao usar essas novas ferramentas, as pessoas evitariam as atividades mais humanas, como pensar no que dizer aos amigos ou planejar como passar um final de semana afetuoso com os filhos. Assim, sobraria mais tempo para navegar pelas plataformas, ver anúncios também personalizados e comprar.
“Isso que aparentemente, na fantasia, na superfície, é uma grande invenção, no fundo, é o avanço de uma forma organizada de roubar a vida das pessoas, a sua intimidade, a sua imaginação, os seus afetos, a sua elaboração intelectual”, afirmou.
De acordo com Iaconelli, a interação excessiva com os modelos de linguagem ainda arrisca a sociabilidade dos usuários, uma vez que os chatbots se comportam para atender pedidos.
“Essa possibilidade de estar com o outro, às vezes é penosa, porque o outro nos contradiz, nos afronta, nos exige, nos demanda”, disse. “Há o risco de a pessoa ficar sem as ferramentas para sustentar os encontros presenciais e as relações duradouras.”
Para a psicanalista, a inteligência artificial é incapaz de substituir o afeto humano. “É que nem comer comida industrializada, é gostoso para caramba, você sente até que está se alimentando, só que não está.”