A Constituição Federal trouxe um grande avanço no tratamento da questão indígena no Brasil, promovendo um significativo resgate social e cultural dos povos que povoavam o Brasil antes da chegada dos portugueses. Ela veio a estabelecer, no artigo 231, o reconhecimento aos índios da sua organização social e dos seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Além disso, no § 1º do 231 veio a delimitar que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Neste contexto, a Constituição promove ampla proteção a essa importante parcela da sociedade brasileira.
Mas a implementação desses direitos tem sido complexa e, em grande parte das vezes, dramática. O reconhecimento das áreas a serem demarcadas é promovido por estudos antropológicos que se baseiam na informação oral das próprias comunidades. Além disso, as reivindicações de áreas tem ocorrido em territórios já ocupados e com forte atividade econômica. Muitas reivindicações de demarcação alcançam até áreas urbanas consolidadas, como o caso de Brasília (DF) e Cascavel (PR). Tal situação é agravada pelo que dispõe a primeira parte do § 6º do artigo 231 da Constituição ao estabelecer que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Em outras palavras, independente do direito próprio e da ancestralidade da ocupação, a Constituição Federal veio a tornar a mesma sem nenhum efeito jurídico, o que leva a União apenas indenizar apenas eventuais benfeitorias que existam na terra desapropriada para fins de demarcação das terras indígenas. Obviamente, a resistência à desocupação é grande, levando muitas vezes à violência e mortes.
Porém, a Constituição oferece uma solução de transição que pende de incorporação no sistema jurídico brasileiro. Ela está presente na segunda parte do §6º do artigo 231, já citado, que ressalva a nulidade e a extinção dos direitos de ocupação preexistentes à demarcação nos casos de relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar.
Aqui surge um problema: qual seria o relevante interesse público da União que afastaria a imposição de nulidade e inexistência de direito preexiste à demarcação?
A primeira resposta estaria na identificação das atividades relevantes realizadas pela União que seriam objeto da ressalva, tai como exploração energética, extração de petróleo e minério, ou implementação de rodovias e ferrovias. Tais exceções estão presentes nas 19 condicionantes à demarcação fixadas pelo Supremo Tribunal Federal. A condicionante 1 é expressa ao citar isso:
“As condições estabelecidas para demarcação e ocupação de terras indígenas terão os seguintes conteúdos:
1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar”
Todavia, creio que o interesse público não se limita apenas à interesse patrimonial, mas igualmente ao equilibro de valores fundamentais presentes nos fundamentos da nossa República. São os mesmos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais o trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (artigo 1º). Da mesma forma, compõem o interesse público relevante a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos (artigo 3º).
Portanto, a própria Constituição estabelece mecanismos de equilíbrio a orientar a atuação do Estado para composição e implementação dos direitos dos indígenas e dos demais brasileiros que integram o nosso país. A adoção da lei complementar pelo Congresso Nacional é um passo fundamental na implementação de processos demarcatórios menos conflitivos que preservem situações consolidadas (áreas urbanas e rurais), processos produtivos indispensáveis ao crescimento econômico do país e a consolidação de sua soberania internacional, concedendo às comunidades indígenas não apenas um território para reproduzir a sua cultura e língua, mas também os meios econômicos para sua subsistência e desenvolvimento.
Luís Inácio Adams é advogado e ex-procurador da Fazenda Nacional. Foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).