Crime ambiental complexo: leis insuficientes e outros desafios

A dimensão ecológica da dignidade (da pessoa) humana

O direito a um ambiente saudável e equilibrado, essencial para uma qualidade de vida adequada, foi estabelecido pela Constituição de 1988 como um dos direitos fundamentais mais significativos.

Em seu artigo 225, caput, o constituinte estabeleceu que todos têm o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e essencial para uma vida saudável, e impôs ao poder público e à sociedade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações presentes e futuras.

Trata-se de direito de terceira geração ou de novíssima dimensão, caracterizando-se por ser um direito de solidariedade ou fraternidade, com caráter de irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.

Essa conquista é de extrema importância, e qualquer retrocesso ou flexibilização nos níveis de proteção ecológica já alcançados não são aceitáveis. O princípio da vedação ao retrocesso, também conhecido como entrincheiramento ou efeito cliquet, limita a reversibilidade dos direitos já consolidados.

Isso significa que, no plano normativo, não é permitida a revogação de normas que consagram direitos fundamentais ou sua substituição por outras normas que não sejam equivalentes. No plano concreto, é proibida a implementação de políticas estatais que busquem suprimir ou flexibilizar esses direitos.

Na jurisprudência nacional e internacional há inúmeros precedentes reconhecendo o efeito cliquet de direitos fundamentais. O próprio Supremo Tribunal Federal o adota como baliza axiológica constitucional e veda o chamado retrocesso ambiental, de modo que as leis ambientais não poderão retroceder dos patamares já atingidos. Eventuais alterações legislativas somente serão admitidas se buscarem a ampliação da tutela ambiental, mas jamais para reduzi-la.

Com a evolução da humanidade, os valores ecológicos e ambientais assumiram novos contornos e passaram-se a se relacionar, de forma indissociável, com o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, CF/88). É desse avanço social que se extrai a chamada dimensão ecológica do princípio da dignidade humana, onde se insere a noção de bem-estar ambiental, bem-estar individual e social, indispensável a uma vida digna, saudável e segura [1]. Afinal, somente em um ambiente saudável é que o ser humano reúne condições de desenvolver-se de forma totalmente digna.

O meio ambiente como bem jurídico autônomo e o reflexo no plano normativo

A proteção penal do meio ambiente como bem autônomo, considerado como aquele vital de la comunidad o del individuo que por sua significación social es protegido juridicamente[2], foi determinada pelo próprio constituinte.

No plano normativo, a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado pode ser encontrada, principalmente, na Lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), Lei nº 6.938/81; na Constituição de 1988, que tratou expressamente da responsabilidade dos infratores do bem ambiental, consagrando a responsabilidade administrativa, civil e penal, inclusive das pessoas jurídicas; e, finalmente, a Lei nº 9.605/98, que em seu capítulo V prevê os delitos contra o meio ambiente, dividindo-os da seguinte forma: Seção I, Dos crimes contra a fauna; Seção II, Dos crimes contra a flora; Seção III, Da poluição e outros crimes ambientais; Seção IV, Dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural; e Seção V, Dos crimes contra a administração ambiental (artigos 29 a 69-A).

Compulsando os mais de 80 dispositivos espalhados pela lei, nota-se a vontade do legislador em privilegiar a prevenção do dano, ao invés da sua reparação ou da sua mera indenização, consagrando os princípios da prevenção e da precaução, presentes na nossa Constituição. E essa escolha reflete na construção dos tipos penais.

Para permitir uma proteção penal antecipada e eficiente do bem jurídico, o legislador lançou mão de diversos crimes de perigo abstrato, técnica legislativa empregada no mundo todo, especialmente para a proteção de bens jurídicos metaindividuais, como é o caso do meio ambiente.

Apesar da magnitude do bem jurídico tutelado e do esforço legislativo em cominar sanções penais, civis e administrativas para dissuadir os infratores ambientais, é preciso reconhecer que nossa legislação ainda carece de aprimoramento para fazer frente ao avanço do crime ambiental organizado.

Abordagem holística entre os crimes ambientais e a lavagem de capitais

O próprio Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi) [3] considera que o crime ambiental constitui uma nova frente de lucro fácil para as organizações criminosas, que reciclam vultosas quantias decorrentes das mais diversas atividades ambientais ilícitas, a exemplo da extração ilegal de minérios, do contrabando de animais silvestres e do desmatamento ilegal.

Desde 2019, a Unidade de Inteligência Financeira do Brasil (Conselho de Controle de Atividades Financeiras Coaf) tomou algumas medidas importantes para sinalizar o reconhecimento das ligações entre a lavagem de dinheiro e crimes ambientais, incluindo a realização de estudos exploratórios [4] e análises de risco sobre tráfico de animais silvestres, extração ilegal de madeira e mineração ilegal de ouro.

Em 2021, a iniciativa interagências Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) também incluiu, pela primeira vez em sua história, dois pontos de ação relacionados a crimes ambientais e mineração ilegal de ouro [5]. Em 2022, foi incluído um ponto de ação voltado à compreensão da correlação de crimes ambientais com corrupção, fraude e lavagem de dinheiro e, em 2023, o Enccla inseriu um ponto de ação para elaborar diagnóstico dos riscos de fraude e de corrupção associados à grilagem de terras e propor medidas para fortalecer os mecanismos de controle e a transparência dos registros imobiliários e dos bancos de dados públicos sobre imóveis rurais.

Embora desempenhe um papel puramente consultivo, o fato de esses tópicos terem chegado à Enccla demonstra uma maior conscientização das agências nacionais sobre as ligações entre corrupção, lavagem de dinheiro e crimes ambientais [6].

Não por outra razão, alguns órgãos encarregados da persecução penal buscam desenvolver suas próprias unidades especializadas para reprimir os crimes ambientais. É o caso da Polícia Federal que, em sua estrutura organizacional, conta com uma delegacia especializada em cada uma das 27 superintendências do país [7], cujas diretrizes são repassadas pela recém-criada Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente [8].

Em outra direção, infelizmente, encontram-se os estados da Federação. Neles podemos perceber o atrelamento completo das Delegacias de Combate a Crimes Ambientais, algumas inclusive bem sucateadas e exauridas, a infrações penais ambientais menos complexas.

O conceito legal de organização criminosa como óbice no combate aos crimes ambientais mais complexos

Uma outra dificuldade significativa na repressão de crimes ambientais mais complexos está relacionada ao conceito legal de organização criminosa, que é definida pela legislação como a associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, direta ou indiretamente, mediante a prática de infrações penais. Para que uma sociedade criminosa (societatis sceleris) seja considerada uma organização criminosa, as penas máximas dos crimes cometidos devem ser superiores a 4 anos ou possuir caráter transnacional.

A dificuldade surge quando observamos que a imensa maioria dos crimes previstos na Lei 9.605/98, embora sejam altamente prejudiciais ao meio ambiente e à sociedade, não possuem penas máximas superiores a 4 anos. Desmatamento ilegal, tráfico de animais selvagens e comércio ilegal de produtos florestais são exemplos de crimes ambientais que, não obstante o desvalor da conduta, possuem penas inferiores a quatro anos.

Essa limitação legal cria um cenário desafiador para a persecução penal dos crimes ambientais perpetrados por grupos estruturados, dificultando a aplicação de medidas mais abrangentes de combate e repressão a essas organizações. Por isso, imprescindível a atualização da legislação para que os órgãos de persecução possam se utilizar de técnicas investigativas mais modernas visando sempre a uma proteção mais eficiente do bem jurídico tutelado.

Atualmente, para que se possa imputar o crime de organização criminosa para esses infratores do meio ambiente, é preciso desvendar a ocorrência de outros delitos cometidos pelo grupo, como corrupção envolvendo funcionários de órgãos ambientais e, não raramente, agentes de segurança pública. Isso ocorre porque, isoladamente, os crimes ambientais não se enquadram nos requisitos previstos na Lei nº 12.850/2013, que exige penas cominadas acima de 4 anos. Portanto, ao estabelecer penas superiores a quatro anos para delitos como corrupção ativa, corrupção passiva e lavagem de capitais, é possível atribuir aos envolvidos a responsabilidade por uma organização criminosa e, consequentemente, utilizar ferramentas investigativas mais avançadas.

Só assim se torna possível uma abordagem mais abrangente na repressão a essas redes criminosas, que operam de forma estruturada e planejada, explorando a fragilidade dos sistemas e a conivência de agentes públicos.

Conclusão

Em arremate, a proteção do meio ambiente como direito fundamental e a repressão aos crimes ambientais apresentam desafios significativos. A dimensão ecológica da dignidade humana, consagrada na Constituição, destaca a importância de um ambiente propício para uma vida digna, saudável e segura. No entanto, a legislação atual dificulta a persecução penal dos crimes ambientais perpetrados por organizações criminosas, devido à falta de penas máximas superiores a 4 anos para a maioria desses delitos.

Conquanto a legislação existente estabeleça uma tutela penal ao meio ambiente, é preciso reconhecer que ela se revela insuficiente, havendo espaço para um aprimoramento normativo visando enfrentar o avanço do crime ambiental organizado, sem que seja necessária uma correlação com outros crimes igualmente graves, como a corrupção e a lavagem de capitais.

Para superar os desafios enfrentados, é essencial uma revisão da legislação, garantindo penas mais severas aos crimes ambientais, aprimorando a prevenção e a repressão dessas condutas. Uma outra alternativa no âmbito normativo seria instituir o crime de associação criminosa específica para delitos ambientais, seguindo o exemplo bem-sucedido da Lei de Drogas [9]. Nesse sentido, o legislador poderia estabelecer o crime de associação criminosa, com pena adequada à gravidade da violação ao bem jurídico tutelado. Uma solução seria a inserção no Capítulo V, da Seção V-A, com o seguinte teor:

Art. 69-B. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar qualquer dos crimes previstos nesta Lei:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Também entendemos adequado transportar para o contexto os crimes ambientais a mesma técnica legislativa utilizada na Lei Combate ao Tráfico de Seres Humanos [10] para alterar o artigo 79 da Lei 9.605/98 [11], que passaria a ter a seguinte redação:

Art. 79. Aplicam-se subsidiariamente a esta Lei as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei nº 12.850/13.

Além das mudanças sugeridas no plano abstrato, a cooperação entre os órgãos governamentais, agências internacionais e a sociedade civil também se revela fundamental para fortalecer a proteção ambiental e enfrentar as organizações criminosas que exploram os recursos naturais de forma ilegal e destrutiva.

Somente com uma abordagem integrada, envolvendo aperfeiçoamento legislativo, cooperação entre instituições e conscientização da sociedade, poderemos enfrentar efetivamente os crimes ambientais praticados por organizações criminosas, garantindo um futuro sustentável e preservando a rica biodiversidade do nosso planeta para as gerações presentes e futuras.

 


[4] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Casos e Casos: Coletânea Completa de Casos Brasileiros de Lavagem de Dinheiro, Conselho de Controle de Atividades Financeiras, Brasília: COAF, 2016.

[11] Art. 79. Aplicam-se subsidiariamente a esta Lei as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Eduardo Fontes é delegado de Polícia Federal, ex-superintendente da Polícia Federal no estado de Amazonas, autor de obras jurídicas pela Juspodivm, professor de ciências criminais, fundador do curso Próximo Delegado, professor da Academia Nacional de Polícia, especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça, mestrando em Ciências Jurídicas e Políticas pela Univesridade Portucalense, coordenador do Iberojur no Brasil, aprovado nos concursos de procurador do estado de São Paulo e delegado de Polícia Civil no Paraná.

Fábio Costa é deputado federal por Alagoas, relator da Lei Orgânica da Polícia Civil, membro titular da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, da Frente Parlamentar da Segurança Pública, vice-presidente da Comissão
Parlamentar de Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), delegado da Polícia Civil de Alagoas, graduado em Direito e em Ciências Jurídicas
pelo Centro Universitário Cesmac, pós-graduado em Direito Processual Penal e Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp—Campo Grande).

Consultor Júridico

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