Cristiano Quinaia: Efeito prospectivo da tutela acautelatória

Tutela de urgência: histórico de pressupostos

Atribui-se a Piero Calamandrei (1945) a sistematização do processo cautelar, com sua obra Introducción al estudio sistematico de las providencias cautelares. Valiosa pelo seu pioneirismo, e épica por seus avanços, a obra de Calamandrei (1945, p. 47-48) inaugura-se expondo um exemplo que, no atual estágio de desenvolvimento científico, longe de ser assecuratório, constitui-se em típica espécie satisfativa. Extrai-se de sua obra:

“O proprietário de uma casa noturna de Paris havia encomendado a um pintor a decoração do salão de danças com afrescos, que representassem danças de sátiros e ninfas, e o pintor, querendo aumentar o interesse pela decoração mural, resolveu dar aos personagens, que nessas coreografias apareciam em vestes superlativamente primitivas, as fisionomias, facilmente reconhecíveis, de literatos e artistas muito conhecidos naquele ambiente mundano. Na noite da inauguração, uma atriz, que fazia parte da multidão de convidados, teve a surpresa de reconhecer-se em uma das ninfas que dançavam com vestes extremamente sucintas; e, entendendo que essa representação era ofensiva ao seu decoro, deu início a um processo civil contra o proprietário do estabelecimento, como pedido de sua condenação a eliminar aquela figura ultrajante e a reparar os danos. E pediu desde logo que, enquanto durasse o processo, fosse ordenado ao réu que cobrisse provisoriamente aquela parte do afresco que reproduzia a sua imagem em pose indecorosa.”

Para além da descrição da situação que necessita de segurança, o interessado deve comprovar a urgência, que é evidência pela demonstração do perigo na demora, a locução periculum in mora não é incorreta, mas é ambígua. Na verdade, a tutela cautelar legitima-se porque o direito, carente de proteção imediata, poderia sofrer dano irreparável, se tivesse de submeter-se às exigências do procedimento ordinário [1].

Por muito tempo o relacionamento da tutela acautelatória esteve imbricada com a efetividade do provimento final, porém, “o conceito de referibilidade advém da ideia de ligação assegurativa da tutela cautelar à tutela do direito” [2].

Mais acertada parece esta afirmação uma vez que se é certo que a tutela acautelatória liga-se ao provimento jurisdicional, também é acertado afirmar que, sem proteger o direito esvazia-se a função estatal da jurisdição, conforme julgado do Tribunal de Relação de Coimbra:

“Se os procedimentos cautelares servem para dar utilidade ao que for decidido na ação a favor do requerente, se servem para assegurar a efetividade do direito que lhe for reconhecido, então a lesão que se receia acontecer (…) será de considerar como grave e de difícil reparação quando, na hipótese de ela se concretizar, retirar efeito útil à decisão definitiva da causa ou impedir a efetividade do direito que for reconhecido ao requerente na decisão definitiva” (Processo nº 1234/18.7T8CVL.C1, de 10 de julho de 2019. Relator Emídio Santos).

Note-se a guinada científica de além de ver a tutela cautelar como ferramenta que resguarda a dignidade da justiça em sua capacidade modificativa da realidade, também a referibilidade ao direito material posto em tutela jurisdicional.

Sistemas de tutela de urgência no estrangeiro

No direito francês a référé, apesar de não formar coisa julgada, prospecta sua eficácia enquanto não ajuizada ação ordinária pelas partes, conforme artigo 484º, definido como “l’ordonnance de référé est une décision provisoire rendue à la demande d’une partie, l’autre présente ou appelée, dans les cas où la loi confère à un juge qui n’est pas saisi du principal, le pouvoir d’ordonner immédiatement les mesures nécessaires”.

Assim, o procedimento do référé é caracterizado pela não definitividade (não produz coisa julgada material) e pela sumariedade traço marcante da necessidade de pronta celeridade em sua execução imediata, eis que “toute procédure de référé sera sommaire et aboutira à une décision dotée de l´autorité de la chose jugée au provisoire” [3]

A doutrina francesa ainda destaca que é possível a concessão de référé en cours d’instance, “ou seja, a possibilidade de conceder tal provimento não obstante a pendência de juízo de mérito” [4]

A celeridade com a qual o sistema galês consagra a référé, diferentemente do exacerbado formalismo do processo ordinário, prescreve a possibilidade de a contraparte ser citada em prazo brevíssimo, “mesmo de poucas horas, mesmo em seu domicilio, sob a base de uma autorização prévia do juízo” [5], procedimento também marcado pela oralidade, salvo quando processado pelo tribunal de grande instance.

Grassa também o exame da conhecida ordennance sur requête do direito francês, que se assemelha mais ao conhecimento provimento cautelar e que pode ser concebido inaudita altera parte.

Tal procedimento desloca a legitimidade para propiciar o debate em processo ordinário para a contraparte. É dizer, salvo a instauração da référé-rétractation permanecerá eficaz a ordennance concedida [6].

O artigo 808 do Código Francês dispõe: “Em todos os casos de urgência, o presidente do tribunal de grande instância pode proferir todas aquelas medidas que não se opõem a nenhuma contestação séria ou que se justificam pela existência de uma controvérsia”.

É a atipicidade que atende ao pressuposto da celeridade e efetividade do provimento de référé a ser concedido, de modo que o legislador confia ao magistrado o poder-dever de mensurar, frente à situação substancial, a medida correlata de tutela do direito.

Por seu turno o Zivilprozessordnung prescreve: Seção 935. “Medidas liminares em relação ao objeto da disputa são permitidas se houver preocupação de que uma mudança na situação existente possa frustrar ou impedir significativamente a realização do direito de uma das partes”. 

Destaca-se que o processo alemão prestigia não a instrumentalidade em relação ao processo, mas sim o direito à tutela do direito material, de modo que a finalidade da medida é justamente resguardá-lo enquanto pendente o procedimento cognitivo.

Sobrevida da tutela de urgência

A jurisprudência e a doutrina até hoje estabeleceram existir possível conflito cognitivo ou substancial entre a tutela de urgência e a sentença superveniente de improcedência ou extintiva.

Pelo critério cognitivo a sentença suplantaria a decisão concessiva da tutela de urgência uma vez que esta é proferida com base na superficialidade e aquela primeira no exaurimento.

Por seu turno, também a sentença tem efeito substitutivo em relação à decisão que concede a tutela de urgência, de modo que, ainda quando não esteja expresso, a revogação opera pela incompatibilidade existencial.

Ainda, não se descura a necessidade de solução em caso de obtenção de tutela em grau de recurso em face de decisão interlocutória e a superveniência de sentença em sentido oposto. O excerto abaixo elucida bem esse fenômeno:

“Há dois critérios para solucionar o impasse relativo à ocorrência de esvaziamento do conteúdo do recurso de agravo de instrumento, em virtude da superveniência da sentença de mérito, quais sejam: a) o da cognição, segundo o qual o conhecimento exauriente da sentença absorve a cognição sumária da interlocutória, havendo perda de objeto do agravo; e b) o da hierarquia, que pressupõe a prevalência da decisão de segundo grau sobre a singular, quando então o julgamento do agravo se impõe”. (EAREsp 488.188/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. 07.10.2015, DJe 19.11.2015).

O acórdão faz menção ao fato de, concedida a tutela de urgência, sobrevir acórdão do tribunal revogando a tutela, hipótese na qual a hierarquia prevaleceria e o juiz estaria impedido de, na sentença, repristinar os efeitos da medida acautelatória.

Vozes na doutrina já acenaram para a necessidade de que benefícios e malefícios da revogação da tutela de urgência sejam sopesados,significa que o órgão jurisdicional deve mostrar-se consciente, sempre por meio de decisão motivada, dos benefícios e malefícios da concessão e da denegação  trata-se de medir o periculum in mora comparando-o com ‘periculum in mora’ reverso” [7].

O caminho a ser trilhado é justamente este enveredado por Paulo Lucon no sentido de que não se opere a comistão entre a tutela de urgência e a tutela ordinária do procedimento comum.

Dito de outro modo, é preciso preservar estanque a razão de ser da existência da tutela de urgência que não pode curvar-se ou ser sucumbida por força do julgamento proferido na tutela da ordinariedade.

A tutela de urgência não pode pura e simplesmente ser absorvida pelo comando sentencial da tutela ordinarizada, já que não se presta a declarar direito, mas sim a proteger direito. Essa temperança já foi defendida por Marinoni:

“Não há contradição entre a declaração de inexistência do direito e a necessidade de manutenção da tutela. A declaração da inexistência do direito não elimina o fundado receio de dano, já que o que vale, em caso de recurso, é o julgamento do tribunal, ou seja, a cognição definitiva (e não a cognição exauriente). Não há como negar que a revogação da tutela, em caso de sentença de improcedência, abre oportunidade para um ato contrário ao direito ou um dano na pendencia do recurso.” [8]

Assim, presente o perigo da demora e o risco de irreversibilidade do acautelamento acaso postergado para após à reanálise pelo tribunal, impõe-se como medida processual a manutenção da tutela de urgência a despeito da improcedência ou extinção do pleito:

“É necessário superar a interpretação literal do dispositivo para contornar o reconhecimento de sua inconstitucionalidade substancial: a vedação da concessão da tutela antecipada fundamentada em urgência nos casos de irreversibilidade não deve prevalecer nos casos em que o dano ou o risco que se quer evitar ou minimizar é qualitativamente mais importante para o requerente do que para o requerido.” [9]

Ovídio Batista [10], abeberando das lições do italiano Andrea Proto Pisani assevera que “diferentemente dos institutos materiais, os institutos de direito processual que visam a garantir a tutela jurisdicional dos direitos ‘nascem, por assim dizer, não apenas com o selo terreno, mas com aquele da eternidade, que lhes é aposto por seu próprio destino de garantir a realização da justiça'”.

Nessa senda, há de modificar-se as fincas mestras do processo civil de modo a alinhá-lo às necessidades circundantes e movediças do direito material que é submetido à tutela jurisdicional.

É preciso romper com o paradigma atávico segundo o qual o dever do magistrado é buscar, via processo ordinarizado, a vontade da lei, e não a efetividade do direito em primeiro plano. “Se investigarmos as raízes ideológicas que sustentam nosso paradigma, veremos que o Direito moderno, a partir das filosofias do século 17, passou a priorizar o valor ‘segurança’, como a exigência fundamental para a construção do moderno ‘Estado Industrial'” [11].

Direito à tutela do direito

É preciso atentar-se ao que Ovídio Baptista [12] defendia como “direito substancial de cautela” ou “direito material à segurança” que se afasta do paradigma fundado na verossimilhança para a concessão de tutelas não fundamentadas na cognição exauriente.

O que o jurista gaúcho coloca em destaque é que não se desenvolveu ainda a teoria de um direito à segurança desatrelada da teoria da cognição exauriente do processo de conhecimento.

O modelo ainda concebido é que a tutela cautelar funcione como antecipação do provimento final, como partícula menor da cognição exauriente que, ao final, a consumirá ou absorverá.

Ainda pesa sobre essa limitação o velho dogma de que decidindo com base em juízo de probabilidade não se estaria a “vontade da lei, mas a justiça do juiz” (Hobbes), causando perplexidade que “a técnica de parcialização ou sumarização de lides é tão conhecida e antiga quanto as mais remotas fontes romanas” [13].

Em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt, que também fez a cobertura especial do julgamento de Einchman em Jerusalém, depois de perpassar por breve escorço sobre a história da humanidade concluí que o primeiro fato hoje inelutável é o direito a ter direitos:

Por outro lado, a humanidade, que para o século 18, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável. Esta nova situação, na qual a “humanidade” assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito a ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade. Nada nos assegura que isso seja possível [14].

Conforme assevera Lafer [15] “o ser humano, privado de seu estatuto político, na medida em que é apenas um ser humano, perde as suas qualidades substanciais, ou seja, a possibilidade de ser tratado pelos Outros como um semelhante, num mundo compartilhado”.

No contexto da essência humana em sua finitude, o tempo adquire especial relevo no mundo jurídico, sendo curial relembrar a advertência da doutrina italiana para quem el valor que el tiempo tiene en el proceso es inmenso y, em grand parte desconocido. No sería demasiado atrevido parangonar el tiempo a un enemigo contra el cual el juez lucha sin descanso” [16].

A filosofia tem se ocupado da relação que o tempo possui com a vida humana, eis que conforme a expressão dasein de Heidegger [17] o ser é compreendido em sua dimensão temporal-existencial:

A experiência fática da vida reside totalmente no conteúdo, enquanto o como está implícito nisso. É no conteúdo que têm lugar todas as mudanças da vida. No curso da jornada de um dia faticamente vivido, ocupando-me com coisas completamente diferentes é, contudo, na atuação fática da vida que surge, para mim, de modo não consciente, o como diferente de seu reagir em cada maneira diferente.

Nesse compasso, cuidar da tutela emergencial de um direito sob o qual pesa a existência humana, é, em análise profunda, participar a jurisdição da concretização da vida do homem em sua dimensão temporal de existência.

Permitir que o direito seja objeto de perecimento implica em que em determinado tempo da existência humana o conteúdo de sua dignidade restou ofendido e que a ligadura da humanidade não foi possível de, a partir de um sistema jurídico-político, propiciar a tutela jurisdicional necessária.

Conforme Stein se pronuncia “o mundo é essencialmente constituído pelo ser-aí. É o lugar em que todos os entes encontram significação” [18]. A significação exige, entre outros prismas, o exercício dos direitos como manifestação da participação política da pessoa.

O tempo humano “sempre é tempo para algo. A expressão para algo já é própria do tempo, pois é um apontar para um fazer e um acontecer” [19]. O fazer como exercício de direito está fundamentalmente ligado ao tempo, de modo que a relação do ser-no-tempo (Dasein) exige a compreensão de que o sistema concebido pelo Direito deve assegurar o exercício no tempo necessário para fazer e acontecer.


[4] O “référé en cours d’instance” a princípio negado por uma decisão da Corte de cassação de 17 de dezembro de 1860. DP, 1861, I, p. 299, foi depois admitido por um acordão da mesma Corte de 08 de março de 1916. Dalloz, 1916, I, p. 73; mais recentemente ver a decisão da Corte de cassação de 11 de maio de 1993. JCP, 1994, II, nº 22275. Cf. BONATO, Giovanni. Os référés no ordenamento francês. Revista de Processo, 2016, 255.

[5] CHAINAIS, Cécile. La protection juridictionnelle provisoire cit., p. 277; SILVESTRI, Caterina. Il référé cit., p. 135; TISCINI, Roberta. I provvedimenti senza accertamento cit., p. 246. Ver na matéria App. Paris, 24 de outubro de 1991, in Dalloz, 1992. p. 244.

[6] Cf. BONATO, Giovanni. Os référés no ordenamento francês. Revista de Processo, 2016, 255.

Cristiano Aparecido Quinaia é advogado, mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília(Ceub) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

Consultor Júridico

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