Um ano depois de ser publicada a Lei 14.454/2022, que derrubou rol taxativo para cobertura de planos de saúde, o imbróglio continua, castiga pacientes e repercute no Poder Judiciário. Processos relacionados a custeio de tratamentos não previstos no rol de procedimentos médicos da Agência Nacional de Saúde (ANS) têm se tornado cada vez mais comuns, mas recebem decisões distintas, a depender de quem julga.
Grande parte dos milhares de processos relacionados à recusa ao custeio de tratamentos não elencados no rol da ANS diz respeito ao fornecimento de órtese a recém-nascidos para tratamento de assimetria craniana, como substituto de cirurgia prevista no mesmo rol. São casos urgentes que, muitas vezes, demandam do Poder Judiciário decisões liminares.
O problema se agrava em meio à disparidade de entendimentos dentro do Judiciário, que variam a depender do tribunal, do estado, do órgão julgador ou do magistrado. Processos com casos análogos podem ser analisados de forma completamente diferente, o que aprofunda a discussão sobre a chamada “jurisprudência lotérica”.
Antes mesmo de ser publicada a Lei 14.454/2022, em setembro do ano passado, para tentar resolver as divergências em casos semelhantes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em junho do mesmo ano, que o rol da ANS é taxativo, mas pode ser superado em casos excepcionais, obedecidos alguns critérios [1]. O julgamento ocorreu no âmbito dos Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp) 1.886.929. Até então, o STJ tinha divergências entre a posição da 3ª e da 4ª Turmas.
Depois, em meio ao furor social causado pela repercussão do julgamento, o Congresso reagiu e aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.033/2022, no dia 29 de agosto do ano passado. O texto estabelece que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, atualizado pela ANS, servirá apenas como referência básica para os planos privados de saúde.
A situação, então, provocou nova dúvida. Antes havia um precedente vinculante que apontava para a taxatividade do rol, que, posteriormente, foi classificado como “exemplificativo” por lei promulgada em 21 de setembro de 2022. Como, então, o Judiciário deve se posicionar nesses casos?
O STJ, nos autos do Recurso Especial (REsp) 1.882.957, sinalizou para a possibilidade de instauração de incidente de assunção de competência, cujo objetivo seria pacificar o entendimento da Corte sobre o tema. A ideia era pautar e consolidar a posição do Judiciário, de modo a diminuir o crescimento de litígios pela insegurança jurídica e dar solução uniforme a casos análogos [2].
No entanto, nada avançou até o momento. A proposta foi rejeitada. O tribunal aguardará os casos de instâncias ordinárias chegarem à 3ª e 4ª Turmas, para que o tema seja analisado novamente, se houver nova divergência de entendimentos entre esses órgãos julgadores.
Dessa forma, apesar de tentar pacificar tema extremamente controvertido no Judiciário, inclusive entre seus membros e órgãos julgadores, o STJ se absteve de reforçar seu posicionamento novamente, depois da publicação de lei contrária a seu entendimento. Assim, deixou o jurisdicionado, a população em si, mais uma vez na insegurança, contando com a sorte (ou azar) na hora da distribuição de uma ação ou recurso. Isto é, uma verdadeira loteria.
“Jurisprudência lotérica” e seus desdobramentos
É necessário evitar que o desdobramento de um conflito judicial se torne fruto do acaso. Na hipótese de decisões com entendimentos distintos sobre casos análogos, a prestação jurisdicional fica à mercê da própria sorte, como em um sorteio ou jogo de dados, gerando o efeito da “jurisprudência lotérica”.
Afinal, a consistência nas decisões dentro do sistema legal deve ser preservada, a fim de evitar a criação de incertezas legais. Portanto, é essencial que as partes envolvidas tenham a capacidade de antecipar, em certa medida, o desfecho das causas e não se sintam apostadores em uma banca lotérica judicial [3].
Em relação a pedidos de órtese craniana, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) é um dos que têm entendimentos divergentes no país e, portanto, exemplifica a “jurisprudência lotérica”. Normalmente, a 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e 7ª Turmas são favoráveis às solicitações dos pacientes. A 1ª e 8ª Turmas são contrárias.
Ao analisar as divergências no âmbito do Poder Judiciário, Eduardo Cambi explica que, “se um órgão jurisdicional julga de um jeito e outro de outro, instaura-se uma atmosfera de incerteza, com a consequência de retirar a credibilidade social da administração da justiça” [4].
Segundo ele, não se pode dar, ao juiz de primeiro grau, total e absoluta liberdade para interpretar o Direito. Se essa liberdade for concedida, haveria confirmação de caso de “jurisprudência lotérica”. Ele propõe o efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores, visando à estabilidade da jurisprudência [5].
Por outro lado, Evandro Lins e Silva entende não ser ideal que a jurisprudência dos tribunais superiores seja aplicada de forma vinculante. Nesta situação, segundo ele, os juízes de primeira instância não julgariam livremente os casos abrangidos por eventual pronunciamento prévio de tribunal superior, evidenciando a supressão do princípio do duplo grau de jurisdição, engessando as interpretações e impedindo o surgimento de novos entendimentos [6].
Zulmar Fachin defende linha parecida, quando trata da autonomia funcional dos juízes, que, segundo ele, não podem sofrer ingerências externas, seja por parte de pessoas seja por parte de outros Poderes. O juiz de Direito não estaria sequer obrigado a decidir em conformidade com o tribunal de justiça a que estiver vinculado, excetuando-se o entendimento do STF editado em súmula com efeito vinculante [7].
A constante troca de posicionamento dos juízes, contudo, deve ser vista como uma patologia ou um equívoco, que, infelizmente, está entranhado em nosso sistema jurídico, alerta Luiz Guilherme Marinoni [8].
O mesmo autor não admite que o Judiciário possa proferir decisões conflitantes e contraditórias de maneira descontrolada, sob pena de ferir um sistema racional de distribuição de justiça e transformando-se em um organismo doente [9]:
“Ora, um organismo que tem manifestações contraditórias é, indubitavelmente, um organismo doente. Portanto, é preciso não confundir independência dos juízes com ausência de unidade, sob pena de, ao invés de se ter um sistema que racional e isonomicamente distribui justiça, ter-se algo que, mais do que falhar aos fins a que se destina, beira a um manicômio, onde vozes irremediavelmente contrastantes, de forma ilógica-e improducente, se digladiam.”
As convicções pessoais dos juízes sobre justiça e imparcialidade não devem — nem podem! — se sobrepor à busca pela unidade de julgamento norteada pelos precedentes, reconhecendo e acatando a existência de um princípio superior e independente: o princípio da integridade [10].
Afinal, a visão sistêmica e integrativa busca alcançar a previsibilidade e a igualdade, além de evitar que os fundamentos determinantes de uma decisão sejam desconsiderados em quaisquer decisões de órgãos judiciais hierarquicamente inferiores [11].
Em todas as épocas históricas, procurou-se obter a estabilidade social, econômica e política, por meio do Direito [12]. Neste ponto, Eduardo Cambi defende que não se deve restringir [13].
“(…) indevidamente o livre convencimento dos juízes, mas impedir que uma mesma regra de direito seja interpretada de maneiras diferentes por órgãos de um mesmo Tribunal, já que, se isso fosse razoável, restaria comprometida a unidade do ordenamento jurídico, ficando os litigantes sujeitos apenas à sorte ou ao azar de terem seus processos distribuídos a determinadas Câmaras ou Turmas e não as outras que lhes poderiam assegurar a tutela jurisdicional.”
Além disso, não cabe falar em qualquer perda de liberdade por parte do juiz por estar submetido ao que já decidiu ou ao que já decidira tribunal que lhe é superior. Principalmente, aos e considerar que o juiz não deve decidir conforme sua consciência, como se fosse um processo de escolha da solução que lhe pareça mais adequada. Decidir não é sinônimo de escolher [14].
A constante evolução do Direito é evidenciada diante da possibilidade, ou necessidade, de eventuais mudanças nos entendimentos dos tribunais, por meio da exigência de novos posicionamentos, devidamente fundamentados e embasados em argumentos consistentes e não apenas em ilações ou posições individuais.
A prestação jurisdicional não pode ficar condicionada aos caprichos do julgador. Pelo contrário, os jurisdicionados devem – ou deveriam – ter confiança no Judiciário e em seus respectivos posicionamentos, frutos de uma evolução dos debates, mas nunca ficar torcendo para que o processo seja distribuído para esse ou aquele juízo, como em uma loteria.
[3] CAMBI, Eduardo. HELLMAN, Renê Francisco. Jurisimprudência: a independência do juiz ante os precedentes judiciais como obstáculo à igualdade e a segurança jurídicas. Revista de processo, v. 39, nº 231, p. 349-363, maio 2014.
[4] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência Lotérica. Revista dos Tribunais, v. 786, n. 379, p. 108-128, abr. 2001.
[5] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência Lotérica. Revista dos Tribunais, v. 786, nº 379, p. 108-128, abr. 2001.
[6] LINS E SILVA, Evandro. A questão do efeito vinculante. Revista do Conselho Federal da OAB, ano 25, nº 61, p. 53-58, jul./dez. 1995.
[7] Fachin, Zulmar. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 500
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. A transformação do civil Law e a oportunidade de um sistema precedentalista para o Brasil.. Revista Jurídica, ano 57, nº 380, jun. 2009.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 203
[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante: a ênfase à ratio decidendi e à força vinculante dos precedentes. Revista de Processo, ano 35, nº 184, p. 9-41, jun. 2010.
[12] ARRUDA ALVIM. PELUSO, Antônio Cézar. FORNICIARI JÚNIOR, Clito. RIZZI, Luiz Sérgio de Souza. ALVIM, Thereza. A possibilidade de o Ministério Público suscitar o incidente de uniformização de jurisprudência. Revista dos Tribunais Edição Especial 100 Anos, v. 7, p. 137-142, 2011.
[13] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência Lotérica. Revista dos Tribunais, v. 786, nº 379, p. 108-128, abr. 2001.
Alfredo Ribeiro da Cunha Lobo é advogado, sócio do Escritório Miranda Lima & Lobo Advogados, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Advocacia no Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi).