Curzi e Ferreira: ADPF 442, descriminalizar para não matar

O ano é 2023, mas no Brasil a pessoa gestante que não possui o desejo de prosseguir com uma gravidez e opta pela sua interrupção ainda segue sujeita à punição pelo Código Penal Brasileiro. O artigo 124 prevê uma pena de detenção de até três anos para quem provoca em si ou consente o aborto, e o artigo 126 uma pena de reclusão de até 4 anos para quem faz ou auxilia (incluindo médicos, enfermeiros e demais agentes de saúde) no procedimento.

O aborto no Brasil somente é permitido legalmente quando a gravidez decorre de estupro quando representa risco à vida da pessoa gestante ou em caso de malformação fetal inviabilizadora de vida extra-uterina (ADPF 54). É preciso comentar, contudo, que mesmo nos casos já previstos em lei, diversas barreiras são impostas e persistem ao longo do tempo para acessar o procedimento de maneira segura e eficaz.

Alguns países vizinhos latino-americanos e caribenhos, como El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname, também possuem legislações que punem a prática do aborto, até mesmo quando a gravidez representa risco para a vida de quem gesta ou é fruto de estupro. Por outro lado, Argentina, Chile, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai, optaram por seguir a “onda verde”, concretizando as demandas sociais pela descriminalização do procedimento e alinhando-se às principais democracias do mundo.

A situação brasileira conflita com importantes recomendações das principais autoridades internacionais de saúde e direitos humanos, como a Organização Mundial da Saúde e a Organização das Nações Unidas. No último mês, o Comitê de Direitos Humanos da ONU, inclusive, recomendou a ampliação da legislação sobre aborto legal. Modificar a legislação representaria além de uma valiosa contribuição para os avanços na agenda de direitos sexuais e reprodutivos na América Latina e Caribe, o respeito à dignidade humana, manifestada pelo direito à autonomia reprodutiva.

A ADPF 442, proposta pelo PSOL e pela Anis (Instituto de Bioética) em março de 2017, busca reverter o cenário atual ao questionar os artigos 124 e 126 do Código Penal. Esses artigos são considerados incompatíveis com preceitos fundamentais, como o direito das pessoas gestantes à vida, dignidade, liberdade e saúde. No escopo desta ADPF, solicita-se a suspensão de prisões em flagrante, inquéritos policiais e efeitos de decisões judiciais relacionadas a esses artigos em casos de interrupção voluntária da gestação. Além disso, pleiteia-se o reconhecimento do direito de pessoas gestantes de interromper a gestação até as 12 semanas, assim como o direito dos profissionais de saúde de realizar o procedimento sem consequências penais.

A regulação deste tema pelo STF pode incluir a definição de um prazo para a gestação ou permitir que um órgão técnico estabeleça tal limite. Dependendo do resultado, serão necessárias regulações específicas sobre a oferta e execução deste procedimento nos sistemas de saúde públicos e privados do país. Em agosto de 2018, uma audiência pública discutiu o tema ao reunir representantes da sociedade civil e especialistas. Dado que a ministra relatora, Rosa Weber, se aposentará em outubro, é esperado que o julgamento seja marcado em breve.

Algumas tendências no possível resultado do julgamento podem ser identificadas com base nas opiniões anteriores dos ministros da Corte. Em 2016, Rosa Weber, Barroso e Fachin se posicionaram contra a criminalização do aborto até o terceiro mês em um caso da 1ª Turma do STF relacionado a uma clínica em Duque de Caxias. Cármen Lúcia, sendo uma mulher com inclinações progressistas, é esperada que tenha uma visão liberal sobre o tema.

Contrariamente, os ministros indicados por Jair Bolsonaro, Kássio Nunes e André Mendonça, provavelmente terão posicionamento contrário. Não há clareza sobre como vão se posicionar os demais: Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Luiz Fux. Vale ressaltar que após o proferimento do voto da relatora, ministra Rosa Weber, a qualquer tempo podem ser pedidas vistas.

No olho do furacão, o debate sobre a descriminalização do aborto no Supremo é pressionado por ondas de desinformação e campanhas ideológicas que buscam produzir pânico moral  geralmente pressupondo a “banalização” do procedimento, tendo como base a percepção infundada sobre a incapacidade de planejamento familiar das pessoas gestantes, quando, na verdade, a possibilidade de evitar uma gravidez indesejada visa justamente uma melhor avaliação da disponibilidade emocional, financeira e melhores condições de saúde para dar a luz.

A despeito do alarmado, segundo apontado por pesquisa da UnB (Universidade de Brasília) e pela Anis, a maioria das pessoas que optam por interromper a gravidez no Brasil hoje é casada, já possui filhos e professa uma religião. E estima-se que 1 milhão de procedimentos são feitos por ano no Brasil.

Mesmo para as hipóteses de aborto legal, apenas 6 das 27 unidades federativas no país possuem clínicas voltadas para a sua realização, o que a inviabiliza mesmo para os casos em que ele é permitido. Assim, a procura por clínicas clandestinas não se dá apenas para a realização do procedimento em sua “ilegalidade”, mas também devido à falta de acesso às clínicas regularizadas.

Pessoas morrem todos os dias em suas casas ou nas clínicas clandestinas  enquadrando-se nas hipóteses permitidas pela lei ou não. O cenário de criminalização impede a produção de dados a respeito do real cenário e, portanto, de políticas públicas direcionadas.

A criminalização do aborto fomenta, assim, a sua clandestinidade, o que significa um grave risco à vida de pessoas gestantes. O aborto inseguro é, hoje, a quinta maior causa de mortes de gestantes no país. Neste bojo, é imprescindível salientar que a desigualdade racial e econômica atravessa o tema de forma marcante: meninas e mulheres pobres, pretas, pardas, indígenas e nordestinas são as mais vulneráveis a abortos inseguros e clandestinos, seja por falta de acesso às clínicas de aborto legal e serviços de saúde de qualidade, ou por estarem mais submetidas a situações de violências (como abuso doméstico, incluindo sexual e estupro marital), ou de exploração sexual.

A subnotificação e a clandestinidade andam de mãos dadas impedindo o endereçamento da questão como um problema de saúde pública. Como efeito principal, a criminalização do aborto não protege o bem jurídico que se pretende tutelar (o da vida do nascituro) e, sim, promove uma conjuntura ideal para que mulheres, meninas e pessoas que interrompem gestações tenham suas vidas colocadas em risco.

Estima-se que 23 mil gestantes morrem todos os anos ao redor do mundo vítimas de processos clandestinos de interrupção da gestação, segundo dados da OMS. Dentre estas, cerca de 1 milhão são brasileiras e 200 mil são as que chegam ao Sistema Único de Saúde (SUS) na tentativa de reverter agravamentos sob o risco de serem denunciadas à justiça. As estatísticas são alarmantes e poderiam ter sido evitadas à medida que dizem respeito a um problema ainda a ser reconhecido pelo poder público.

Descriminalização é fundamental, mas por si só não basta

Enquanto países onde a prática é criminalizada tendem a ter taxas mais altas de aborto, de acordo com um levantamento do Instituto Guttmacher de Nova York, a experiência de países onde o aborto é descriminalizado, como Portugal e Uruguai, vai no sentido oposto. No primeiro, a descriminalização teve como resultado o aumento dos números de abortamento apenas nos primeiros momentos de implementação das políticas públicas de assistência ao abortamento voluntário, seguida de quedas de procura pelo procedimento. O caso português pode indicar também uma maior efetividade dos programas de planejamento familiar que foram integrados no atendimento às pessoas que abortam, direcionando-as para consultas ginecológicas que apresentavam métodos contraceptivos mais eficientes.

O mesmo foi observado no Uruguai, onde a procura pelo procedimento caiu após os primeiros anos de legalização. O país apostou na inserção das pessoas que procuravam assistência para o aborto e, após o procedimento, eram ofertados métodos contraceptivos para evitar uma nova gravidez indesejada.   

No Brasil, a descriminalização do aborto é, na verdade, o ponto de partida para que o país possa repensar e reconstruir um rol de políticas públicas voltadas à saúde e direitos reprodutivos e sexuais. Uma das marcas mais fúnebres da história brasileira foi a concepção de políticas reguladoras da reprodução que violavam profundamente direitos humanos, voltadas ao controle demográfico e social.

Seguindo a tendência de demais nações em desenvolvimento, a introdução dos programas de planejamento familiar como parte de uma política pública mais ampla para promoção dos direitos sexuais e reprodutivos foi pensada a partir de uma demanda que veio, sobretudo, do receio pelo “crescimento populacional desenfreado” analisado à luz de teorias neo-malthusianas importadas de memorandos de segurança norte-americanos durante os anos de regime militar.

Durante a década de 1990, a chamada “CPMI da laqueadura”, trouxe à tona investigações oficiais sobre os casos de esterilizações realizadas durante as décadas de ditaduras no Brasil, evidenciando a relação direta entre financiamentos internacionais para políticas de reprodução social e a inserção de métodos contraceptivos no Brasil.

O principal documento analisado pela CPMI, mantido em sigilo pela inteligência americana até a década de 1980, foi o “Relatório Kissinger”, documento oficial do governo norte-americano, que trazia expressamente o crescimento populacional brasileiro e de mais 13 países do Sul-Global como uma ameaça à segurança nacional [1].

A comissão parlamentar conduzida pela então deputada Benedita da Silva jogou luz a respeito das condições inadequadas nas quais os programas de planejamento familiar foram introduzidos e desenvolvidos no país, o que resultou na esterilização de cerca de 45% das mulheres em idade reprodutiva no Brasil, principalmente nas regiões do Nordeste e Centro-Oeste.

A possibilidade de  realizar o procedimento apenas nas condições atualmente previstas pela legislação brasileira revela um baixo comprometimento com a eliminação das desigualdades estruturais de gênero, de raça e de classe. Tratar o aborto como uma questão de saúde pública, não de segurança pública, é reconhecer que o tema precisa ser lidado com políticas públicas, como garantia de acesso a serviços públicos de saúde, como consultas ginecológicas e planejamento familiar, acompanhamento psicológico e acesso a medicamentos.

Proporcionar condições seguras para a realização do aborto é uma escolha pela vida das pessoas que tem potencial de gestar. Não fazê-lo, fechando os olhos para os dados alarmantes sobre a população específica que morre por abortos inseguros é optar por perpetuar as políticas de controle demográfico, de forma velada.

 


[1] “India, Bangladesh, Pakistan, Nigeria, Mexico, Indonesia, Brazil, The Philippines, Thailand, Egypt, Turkey, Ethiopia e Colombia. Do total de 73.3 milhões do crescimento médio da população mundial de 1970-75 tais países contribuíram com 34.3 milhões ou 47%. Este grupo de países prioritários inclui alguns cujo governo não possui nenhum interesse nos programas de planejamento familiar e outros cujos programas podem receber maiores investimentos financeiros e técnicos”. (USA, p 75, 1974). Tradução minha.

Yasmin Curzi é professora de Direitos Humanos na graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), mestre em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), coordenadora do Programa de Diversidade & Inclusão da Fundação Getulio Vargas (PD&I) e pesquisadora associada ao Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS-FGV).

Giullia M. Thomaz Ferreira é mestranda pelo Programa de Sociologia & Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (PPGSA – IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora no Programa de Diversidade & Inclusão da Fundação Getulio Vargas (PD&I) e no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS-FGV).

Consultor Júridico

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