Dalmedico Silveira: Mercados locais e contratação pública

A nova Lei de Licitações, ao organizar institucionalmente o mercado de contratações públicas no Brasil, também estabelece algumas regras específicas, visando atender ou contemplar interesses locais ou regionais.

A lei, por exemplo, prevê a localidade do licitante como um critério de desempate em licitações (artigo 60, §1º, I) e estabelece regras específicas para pequenos municípios quanto à adaptação a certas disposições da nova lei (artigo 175, §2º). Trechos vetados da lei (artigo 26, §3º e §4º) chegavam a prever até a possibilidade de concessão de margens de preferência para bens e serviços produzidos nos territórios de estados e municípios.

No entanto, dentre todas essas disposições que visam promover interesses locais, destaca-se a faculdade conferida aos órgãos contratantes de exigirem dos futuros contratados, no respectivo edital, que sejam adquiridos insumos “existentes no local da execução”  como materiais e mão-de-obra, por exemplo , desde que isso não prejudique a competitividade do processo e a eficiência do futuro contrato (artigo 25, §2º).

Essa faculdade conferida aos órgãos contratantes parece estar em linha com a ideia mais ou menos aceita na literatura (inclusive internacional) de que a contratação pública possuiria uma função que extrapola a mera satisfação de uma necessidade imediata do órgão contratante, devendo alcançar e atender outros interesses (necessariamente “metacontratuais”). É o que se conhece, com algumas variações, por função social, secundária ou regulatória da contratação pública  estampada no reconhecimento legal de que o processo licitatório tem por objetivo “incentivar (…) o desenvolvimento nacional sustentável” (artigo 11, IV).

O objetivo, neste ponto, parece ser o de, por meio da contratação pública, fomentar mercados locais  objetivo este que se situaria no sentido de redução de “desigualdades (…) regionais”, que constitui, ao mesmo tempo, um objetivo (artigo 3º, IV) e um princípio da ordem econômica constitucional (artigo 170, VII).

 A preocupação em garantir o fomento e desenvolvimento da economia local é, obviamente, legítima. A conveniência quanto à utilização da contratação pública como instrumento para esse fim, todavia, merece algumas reflexões.

 De início, é preciso jogar luz sobre a questão relacionada à própria escolha de quais insumos deverão ser contratados junto a fornecedores ou prestadores de serviços locais. Embora o princípio da segregação de funções (artigo 5º) e a consequente exigência de que um determinado agente não seja designado para a ocupação de duas ou mais funções suscetíveis a risco (artigo 7º, §1º) visem evitar a prática de atos de corrupção, é fato que aquela escolha  inserida no âmbito de um estudo técnico preliminar — constitui uma decisão que, sob a ótica econômica, pode se tornar um ativo objeto de uma “transação”.

Esse fato, por si só, pode tornar o processo decisório suscetível à captura por grupos interessados  sobretudo fornecedores ou prestadores de serviços que possuem algum grau de “dominação” em mercados locais , o que poderia gerar não somente uma indevida “barreira de entrada” para fornecedores e prestadores de serviços “não locais”, mas também privilegiar certos insumos sem qualquer justificativa socioeconômica razoável, comprometendo a eficiência do sistema.

É fato que a própria legislação sublinha que a exigência de aquisição de insumos locais depende da preservação da competitividade do certame e da eficiência do contrato. O ponto, todavia, é que, sob o ponto de vista de eficiência produtiva, o licitante vencedor já contrataria insumos locais para a execução do contrato, independentemente da exigência do órgão licitante, se essa solução fosse, de fato, a mais eficiente  o que tornaria sem qualquer efeito prático a disposição do artigo 25, §2º, da nova lei.

Isso quer dizer que a “eficiência” que a lei aparentemente busca preservar seria, então, de outra natureza: uma eficiência mais “estrutural” sob o ponto de vista econômico, em que se busca obter umoffset positivo entre custos contratuais da Administração (gasto público) e benefícios decorrentes da contratação, pelo licitante vencedor, de insumos locais (como aumento de empregos e salários em uma dada região, incremento de arrecadação tributária local ou desenvolvimento tecnológico).

Mesmo essa eficiência, por outro lado, poderia ser comprometida por diversos aspectos. Em primeiro lugar, os estudos econômicos necessários para se antecipar, com alguma acuracidade, os benefícios indiretos de uma medida como essa possuem um grau de complexidade e sofisticação tal que a sua elaboração pode implicar custos relevantes para a Administração (sobretudo para municípios de menor porte)  é importante lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro exige que qualquer decisão em âmbito administrativo considere e explicite as consequências e resultados da medida pretendida (artigo 20).

Além disso, a exigência de contratação de insumos locais pode gerar desafios na própria fiscalização do contratado, sobretudo em contratos de longo prazo, como, por exemplo, nos contratos de eficiência  que podem alcançar até 35 anos de vigência (artigo 111, II)  e nos contratos de fornecimento ou prestação de serviços contínuos, cujo prazo máximo é de dez anos (artigo 107). Essa exigência, diga-se, pode ser adotada, inclusive, nos casos de contratos de concessão de serviços públicos  sejam elas concessões comuns (Lei nº 8.987/1995) ou patrocinadas (Lei nº 11.079/2004).

Ou seja, a Administração necessitará ou contar com um aparato suficiente para verificar, continuamente, a observância da contratação de insumos locais pelo contratado ou transferir a ele (contratado) o ônus de, ativamente, demonstrar o cumprimento da exigência. Em ambos os casos  diretamente, no primeiro, e indiretamente, no segundo , custos de transação ex post  visando, sobretudo, evitar a adoção de comportamento oportunista (risco moral) pelo contratado  podem comprometer a eficiência do sistema.

À primeira vista, portanto, apesar da louvável preocupação da nova lei de licitações em fomentar, por meio da contratação pública, a atividade econômica local, a utilização de mecanismos como aquele previsto no artigo 25, §2º, parece, ainda, mais inclinado a gerar ineficiências indesejáveis  agravando o déficit público, promovendo a transferência de recursos para grupos dominantes, perpetuando dominâncias locais, aprofundando desigualdades existentes e, enfim, prejudicando (ao invés de promover) a economia local.

Luis Felipe Dalmedico Silveira é advogado especialista da área contratual e sócio do escritório Finocchio & Ustra Advogados.

Consultor Júridico

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