Dandara e Henriques: Mercado de carbono no futuro das transações

Muito se tem discutido a respeito de mercado de crédito de carbono, principalmente com relação a sua regulação e as formas de transação de seus créditos. No entanto, muitas dúvidas ainda surgem com relação ao tema e a profundidade dos questionamentos. Tendo em vista a relevância da temática, decidiu-se aqui por esclarecer, inicialmente, alguns conceitos.

O mercado de crédito de carbono é um sistema cujo objetivo as compensações de emissão de carbono ou de gás equivalente de efeito estufa. A transação do crédito ocorre, de forma simplificada, através da compra de créditos de carbono por aquelas empresas que não atingiram as suas metas para redução de gases de efeito estufa (GEE), daquelas que reduziram as suas emissões.

Existem duas estratégias principais com o objetivo de mitigar a emissão dos gases de efeito estufa: políticas de comando e controle e via instrumento econômico. A segunda estratégia, ou seja, a precificação do carbono, pode se dar através da taxação do carbono ou por meio de um mercado de carbono, que será voluntário ou regulado, e um dos pontos nodais deste artigo.

O mercado de carbono voluntário autoriza ONGs, governos e instituições que se responsabilizem pela compensação de suas próprias emissões, comprem crédito de carbono por meio de projetos de terceiros, visando a redução de forma efetiva das emissões ou captura de carbono.

Já o mercado de carbono regulado ocorre interação entre os setores regulados que possuem capacidade de compra e venda de emissões GEE.

Dentre os mercados regulados, o tipo mais comum, a nível mundial, é o Sistema de Comércio de Emissões, sob a ótica do cap and trade, isto é, na distribuição de permissões por meio dos governos dos países signatário do Protocolo de Kyoto.

Desta forma, é possível afirmar que o protocolo direcionou a regulamentação do mercado de carbono à nível global afetando, principalmente, os países que tinham metas de redução de emissão de gases de feito estufa a nível obrigatório.

Operacionalização do mercado regulado de carbono

Converter a descarbonização das economias em créditos é uma forma sensata e eficaz de incentivo para que as nações consigam aderir e atingir a meta global, estabelecida no Acordo de Paris (2015), a fim de limitar o aquecimento do planeta em 1,5º C, até 2100, em relação aos níveis pré-industriais.

No mercado regulado de carbono, existe um limite para que as empresas emitam gases que provocam o efeito estufa. Sendo assim, àquelas empresas que emitem menos que o limite, são concedidos créditos que podem ser vendidos aos que ultrapassaram seu limite. Importante pontuar que o crédito de carbono equivale a uma tonelada de gás carbônico, ou outros gases, que deixou de ser emitida, e que o volume de transações destes créditos já movimenta cálculos bilionários no mercado.

Como exemplo, segundo a Refinitiv Financial Solutions, “The value of traded global markets for carbon dioxide (CO2) permits reached a record 850 billion euros ($909 billion) last year, analysts at Refinitiv said on Tuesday”.

No entanto, por mais expressivos que sejam os números, ainda não se vive um cenário ideal. Para que seja possível atingir as metas do Acordo de Paris, a redução à nível global de gases que causam efeito estufa deve ser diminuída, anualmente, entre um e dois bilhões de toneladas por ano, aproximadamente.

O que isso significa? Significa que o mercado de carbono ainda precisa crescer 14 vezes do que é atualmente para que seja possível alcançar esses números, e isso só será possível através de uma regulamentação eficaz.

Natureza jurídica do ativo

Foi há quase 15 anos, em 2009, que a CVM se pronunciou por meio do Processo Administrativo CVM RJ 2009/6346, avaliando que as Reduções Certificadas de Emissões não se configuram como contratos coletivos de investimento ou derivativos, e portanto, não seria de competência da CVM sua regulação, visto que os ativos não se enquadrariam como valores mobiliários.

Em 2009, a Lei nº 12.187, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), classificou os créditos de carbono como “títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas”.

De outro lado, o Código Florestal (Lei nº. 12.651/2004) define o crédito de carbono como “título de direito sobre bem intangível e incorpóreo transacionável”. A Receita Federal, na Solução de Consulta nº 24, ao tratar de operações com créditos de carbono no âmbito do Protocolo de Kyoto, entendeu que os créditos teriam a natureza de ativos intangíveis.

Além disso, o Banco Central já considerou as operações com créditos de carbono como prestações de serviço, através da Circular nº 3.291/2005. Contudo, recentemente, com a Instrução Normativa nº 325/22, estabeleceu novas regras de contabilização, para as instituições financeiras de operações com créditos de sustentabilidade.

A classificação do crédito de carbono como ativo financeiro somente foi consolidada pelo Decreto nº 11.075/22. O decreto, como vemos, seguiu as diretrizes do Código Florestal, e considera que os créditos de carbono são ativos intangíveis, incorpóreos e transacionáveis. 

Apesar dos desencontros no tratamento do ativo, precisamos citar o Projeto de Lei 528/2021, que tramita no Senado e tem a intenção de criar o mercado regulado no país, e por sua vez, vêm conceituar, por meio do artigo 10, em seu parágrafo único, que a natureza tributária dos títulos de crédito de carbono se dará em observância ao que dispõe no artigo 3º, inciso XXVII da Lei 12.651, de 25 de maio de 2012 — Código Florestal, bem como as resoluções do Banco Central que dispõem sobre regulação de transações de crédito de carbono.

Dessa maneira, parece que estamos no caminho de uma melhor definição da natureza jurídica desse ativo, de forma que podemos adotar a premissa de que sejam ativos financeiros, intangíveis, incorpóreos e transacionáveis.

Sem que tenhamos a definição da natureza jurídica dos créditos de carbono não é possível o correto tratamento contábil e tributário das atividades relacionadas operações no mercado regulado e voluntário. Isso porque, a segurança da regulamentação das operações com créditos de carbono e do tratamento tributário adequado garantirá o futuro, desenvolvimento e a sustentabilidade desse mercado.

Transações financeiras a partir do crédito de carbono

Nesse ponto vale uma perspectiva comparada com outros mercados, a fim de analisarmos os diferentes tratamentos ao ativo. Isso porque quando esses ativos são transacionados em contratos futuros, podem passar a ser regulados como derivativos, e assim falaríamos em natureza de ativos financeiros, como no caso da regulação financeira da União Europeia.

Nos Estados Unidos, possuem definição ampla de commodities, que parece contemplar também contratos futuros de créditos de carbono, ou seja, os chamados derivativos.

Dessa forma, podemos notar que os desenhos de investimento não possuem limites para investimento nesse mercado, e podemos utilizar do estudo comparado aos mercados dos EUA e União Europeia, no sentido de possibilitar que sejam transacionadas opções de compras futuras, o que, portanto, faz com que o tratamento concedido esteja alinhado ao conceito de ativo financeiro.

Assim, em uma realidade em que cada vez mais as empresas traçam seus caminhos net-zero, e o ESG dita as regras do mercado financeiro, os derivativos podem desempenhar um papel estratégico para auxiliar os investidores a gerenciar o risco do preço do carbono.

Nesse mesmo cenário, de novos modelos de transação, aliados à tecnologia, temos a “tokenização” ou a digitalização dos certificados em redes blockchain, nas quais ativos poderão ser fracionados e oferecidos às pessoas de forma segura e transparente, democratizando e descentralizando o acesso a este mercado.

Não devemos, claro, nos ater somente aos benefícios, mas sim realizar, dessa forma, uma análise de risco robusta para que não tenhamos lacunas nessas operações. Certo é que a tecnologia blockchain traz inúmeros benefícios para o mercado voluntário de carbono, como liquidez dos ativos, segurança com a rastreabilidade, divisão dos créditos em frações menores e escalabilidade do modelo de negócio e transparência.

No que diz respeito à descentralização e democratização do mercado, permitirá maior integração entre os créditos de carbono comercializados em bolsas regionais, além de oportunizar a aquisição à investidores de varejo, não estando mais restritos aos grandes investidores, por fim, podem ser disponibilizados em bolsas globais — conforme as metas determinadas no Acordo do Clima de Paris, visando consolidar uma oferta global dos mercados de carbono.

A regulação e a justa medida para suportar a inovação

O Estado deve estar apto a entender e interagir com as mudanças trazidas pelas inovações de um mercado cada vez mais dinâmico. Pode-se assim trazer para este debate que a inovação financeira funciona como um fator externo ao funcionamento tradicional do mercado e repercute no funcionamento interno deste, devendo ser absorvidas e compreendias por uma autoridade reguladora eficiente.

É necessário que a regulação seja feita através de instrumentos capazes de acompanhar as mudanças e os processos que seguem o funcionamento dos derivativos financeiros e novos modelos de transações financeiras, para que a regulação seja feita de maneira eficiente. 

Não pode ser a regulação o principal embargo ao desenvolvimento de um mercado, mantendo-o atardado ou sem segurança jurídica e regulatória, isso porque os prejuízos de uma regulação ineficiente podem ocasionar perdas significativas e irreversíveis ao mercado, além de incentivar o desinvestimento no país.

Nesse sentido Brasil deu um primeiro passo na direção da regulamentação de um mercado de créditos de carbono, com a publicação do decreto 11.075/2022 do governo federal. O texto, baseado na Política Nacional sobre Mudança do Clima (a PNMC, lei 12.187/2009), parece ser um ponto de partida para a precificação dos gases do efeito estufa no Brasil, mas carece de aperfeiçoamento.

Existem, conforme mencionado, outros projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, além do decreto 11.075/2022, que compartilham do mesmo objetivo de estabelecer regras para mercado brasileiro de créditos de carbono — a exemplo do PL 2.148/2015, no qual o PL 528/2021 é um dos apensados, PL 412/2022, PLS 1684/2022, entre outros. No entanto, a sobreposição de textos substitutivos e a aparente falta de alinhamento entre os Poderes Executivo e Legislativo geram insegurança jurídica.

Aguardamos nessa linha, os trâmites referentes à aprovação do PL 528/2021, cujo teor do projeto tem a finalidade de criar a regulamentação do MBRE (Mercado Brasileiro de Redução de Emissões), com vistas a determinar a natureza jurídica dos ativos de carbono, estabelecer um sistema de registro da inventariação das emissões de gases de efeito estufa e a contabilidade nacional das reduções de emissões e suas transações, além de estabelecer que o regime de contabilização com fundamento no artigo 6º do Acordo de Paris.

Contudo, apesar de parecer que caminhamos no sentido de um alinhamento quanto à definição da natureza jurídica desses ativos, garantindo maior segurança jurídica, para que possa ser implementado o MRBE, alguns pontos centrais da regulação ainda precisam ser consolidados, como é o caso da definição da titularidade dos créditos, a tributação das operações envolvendo créditos de carbono e, claro, as competências dos reguladores com a finalidade de garantir segurança e sustentabilidade do mercado.

Como vemos, o sinal econômico muitas vezes é o grande impulsionador de grandes transformações regulatórias e legislativas, o Estado não pode ficar inerte ao sinal econômico, devendo acompanhar a evolução das políticas econômicas e da inovação, superando a inexistência de um marco regulatório para o MRBE, que reflete em inseguranças jurídicas decorrentes da própria complexidade do tema , além da falta de informações sobre os mercado, falta de transparência e de escalabilidade, que poderiam ser superados com o implemento de tecnologias para operação decorrentes dos créditos de carbono, a exemplo da “tokenização” e dos derivativos.

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[1] https://www.reuters.com/business/sustainable-business/global-carbon-markets-value-hit-record-909-bln-last-year-2023-02-07/

[2] Torres, E. (2022a). Restrição de sobrevivência e regulação financeira: uma nova perspectiva minskyana. Revista de Economia Política, 42, 1.

[3] PROJETO DE LEI Nº 528, DE 2021

[4] Anbimba – Position Paper: A Importância da Harmonização na Regulação do Mercado de Derivativos e a Necessidade de Priorização do Brasil nas Discussões Internacionais, Rio de Janeiro e São Paulo, 28/05/2014. Grupo de Trabalho sobre Regulação Internacional.

[5] https://valorinveste.globo.com/blogs/caroline-prolo/coluna/quem-tem-medo-da-regulacao-do-carbono.ghtml

Camila Henriques é advogada e LLM em Direito Societário e Mercado de Capitais pelo IBMEC.

Consultor Júridico

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