Ao longo dos últimos meses diversas foram as notícias sobre o uso do ChatGPT, um modelo de inteligência artificial (IA) desenvolvido pela OpenAI que usa técnicas avançadas de aprendizado supervisionado, conhecida como aprendizado profundo por transferência (transfer learning), com mais de seis bilhões de parâmetros (na versão 3.5). A partir dessa grande quantidade de dados de texto, o assistente virtual é pré-treinado para compreender a linguagem natural com alto desempenho e gerar textos, realizar traduções, responder a perguntas e fornecer informações [1].
Nesta ConJur, saíram reportagens sobre os riscos da utilização indiscriminada da ferramenta, sobre a falta de transparência no lançamento da versão ChatGPT-4 e das discussões iniciadas no âmbito da União Europeia, em especial na Itália, que chegou a banir o chatbot [2][3][4]. Dias depois, foram publicadas notícias de discussão sobre a responsabilidade civil pelo uso de textos produzidos por IA com conteúdo falso ou difamatório e da aplicação de multa por litigância de má-fé, pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por causa do ajuizamento de uma petição baseada em uma conversa com o assistente virtual [5][6].
Por último, foi o divulgado o requerimento de um advogado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a proibição do uso do ChatGPT na realização de atos processuais por magistrados [7]. Finalmente, chegou a hora de explorar os desafios para a aplicação de inteligência artificial em julgamentos do Poder Judiciário brasileiro.
Tribunais brasileiros há tempos vem desenvolvendo algoritmos baseados em IA. O Supremo Tribunal Federal (STF) utiliza o Victor (homenagem ao ministro Victor Nunes Leal) para reconhecer a existência de teses de repercussão geral em recursos extraordinários. Por meio do processamento natural da linguagem, a aplicação processa a leitura e o reconhecimento de texto, compara-o com a base de dados das teses de repercussão geral, enfim, trabalha como humanos, porém numa velocidade jamais vista.
No Tribunal Superior do Trabalho (TST), o sistema Bem-te-Vi também dispõe de uma funcionalidade em IA: o reconhecimento automático de intempestividade. O CNJ, que havia catalogado 41 projetos no ano de 2021, atualmente possui 111 projetos inscritos em seu Painel de Projetos com Inteligência Artificial no Poder Judiciário [8].
Não é novidade que as novas tecnologias estão mudando a natureza de todas as profissões, em todos os setores, inclusive as atividades judiciais. Klaus Schwab [9] chama a atenção por uma nova polarização do mercado de trabalho: postos de trabalho de ocupações manuais desaparecerão, ao passo que os cargos criativos, cognitivos e de altos salários seriam valorizados na chamada Revolução 4.0.
Em estudo feito na Universidade de Oxford sobre o futuro dos empregos, foi proposto um modelo probabilístico de substituição do trabalho humano pela máquina dentre 702 ocupações catalogadas no Reino Unido. Foram utilizadas as seguintes categorias distintivas: percepção e manipulação (motricidade fina/grossa, trabalho em ambientes confinados), inteligência criativa (originalidade, Belas Artes) e inteligência social (empatia, negociação, persuasão, suporte emocional, etc.). A atividade dos juízes se encontra na parte intermediária da tabela desse estudo (271ª posição). Serventuários da Justiça estão na 276ª posição dentre as ocupações que possuem menor probabilidade de serem substituídas por soluções tecnológicas [10].
Parece compreensível que os serviços judiciários figurem em tal posição, porque são muitas as atividades burocráticas, repetitivas, que demandam tempo, dinheiro e outros recursos. Por outro lado, também existem muitas tarefas que dependem de atributos de inteligência social e, por essa razão, alguma solução de IA envolveria altos níveis de complexidade.
Em princípio, seria possível conceber que os recursos de IA fossem direcionados somente para as tarefas de baixa complexidade, enquanto que as menos padronizadas e que necessitam de percepção e inteligência social fossem, pelo menos, supervisionadas por humanos [11]. Entretanto essa divisão parece incompatível com uma normalidade artificialmente construída [12], em que há uma relação de encaixamento fractal e recíproco entre sujeitos e objetos [13], e em que está havendo a transferência da autoridade de humanos para algoritmos, a ponto de se pensar na possibilidade de substituição do trabalho de médicos, advogados, poetas, músicos por programas de computador superiores [14]. Surge, portanto, o momento para algumas reflexões.
É fato que estamos diante do desenvolvimento veloz de um novo espaço comunicativo, que se constrói na indeterminação de sentido global qualquer e causa reflexos sistêmicos, nos planos econômico, político, humano e cultural [9][12]. Para esse novo universal fluido, virtual e que se encontra ao mesmo tempo reunido e disperso, Pierre Lévy dá o nome de Cibercultura [15]. Já Yuval Harari explora os dilemas existentes entre os valores humanistas, há muito celebrados entre as sociedades ocidentais e a nova agenda tecnológica, na qual a condição humana não estaria como fonte suprema de significado: o dataísmo, a seita que venera dados [14].
Embora essa convergência de tecnologias nos remeta à fluidez, ao indefinido, ao instável, às mudanças irreversíveis, entendemos que o conhecimento jurídico não se deve limitar aos questionamentos, ao registro de incertezas, ao mapeamento e identificação de riscos e desafios. É preciso promover a reflexão, ressignificar institutos, implementar novos direitos, redefinir formas de sociabilidade; enfim, remodelar a Teoria Jurídica [12][16][17].
Logo, em vez do percurso rumo à perda de sentidos, à desumanização e à reificação pela tecnologia [18], propomos o desenvolvimento de discussões para o estabelecimento de valores jurídicos ao uso das tecnologias encampadas pela Revolução 4.0, que, além da repercussão em dimensões biológicas, físicas e digitais, tem reflexos nos sentimentos humanos, nas emoções, na empatia, e que, por isso mesmo, constituem o Direito como um guia para a cultura humana [9][12][16][19].
Dessa forma, parece ser o momento para a Teoria do Direito fornecer respostas às constantes mutações do universo tecnológico, em especial para estabelecer limites e critérios para avaliação e escolha. Nas palavras de Stefano Rodotà [12], deve-se conceber uma teoria jurídica “como fator de estabilização que, tal qual a coruja de Minerva que começa seu voo no extremo do crepúsculo, vê esta sua função histórica deslocada para o amanhecer, no seu clarear ainda incerto.”
Ressalte-se que a maioria dos estudos atuais sobre o Direito Digital estão a ocorrer de maneira fragmentada e voltadas para a técnica. Sim, são muito relevantes os trabalhos acadêmicos sobre temas como privacidade, segurança de dados, responsabilidade civil, cibercrime, direitos da personalidade… Entretanto, se do ponto de vista individual, a perda de controle das tecnologias implicaria a perda de autonomia, em escala coletiva as ameaças de descontrole podem chegar à destruição global. Dada essa importância, a produção de conhecimento na área não tem como ser um mero exercício de construção da crítica. A abordagem adequada também deve identificar as questões éticas e, acima de tudo, produzir soluções compartilháveis [17].
Assim, por conta da importância dos valores em jogo, revela-se estratégica a convergência das formas de intervenção jurídica, que não se limita às ideias de proibição nem de regulação. Somente a partir da Teoria do Direito, por meio de novos conceitos, será possível construir a interação das tecnologias ao ser humano e à sociedade, com os valores de referência já existentes, do Estado Democrático de Direito.
Notas e Referências
[1] Informações fornecidas pelo próprio Chat GPT.
[2] https://www.conjur.com.br/2023-abr-14/paulo-vidigal-politica-uso-chatgpt-empresa
[3] https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/democrito-filho-chatgpt-sistema-alto-risco
[4] https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/vanessa-alvarez-chatgpt-mira-autoridades-europeias
[5] https://www.conjur.com.br/2023-abr-17/especialistas-discutem-possivel-processar-chatgpt-difamacao
[6] https://www.conjur.com.br/2023-abr-18/tse-multa-advogado-peticao-baseada-conversa-chatgpt
[7] https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/cnj-avalia-proibir-juizes-usar-chatgpt-decisoes
[8] https://www.cnj.jus.br/sistemas/plataforma-sinapses/paineis-e-publicacoes/
[9] SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.
[10] FREY, Carl Benedikt; OSBORNE, Michael A. The future of employment: How susceptible are jobs to computerisation?. Technological forecasting and social change, v. 114, p. 254-280, 2017.
[11] HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[12] RODOTÀ, Stefano. Pós-humano (tradução de Carlos Nelson Konder). Revista Brasileira Direito Civil, v. 27, p. 113, 2021.
[13] LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
[14] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[15] LÉVY, Pierre. Cibercultura. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
[16] BITTAR, Eduardo CB. A Teoria do Direito, a Era Digital e o Pós-Humano: o novo estatuto do corpo sob um regime tecnológico e a emergência do Sujeito Pós-Humano de Direito. Revista Direito e Práxis, v. 10, p. 933-961, 2019.
[17] FLORIDI, Luciano. Soft ethics and the governance of the digital. Philosophy & Technology, v. 31, n. 1, p. 1-8, 2018.
[18] BITTAR, Eduardo CB. Technique, Dehumanization and Human Rights. In: Human Rights, Rule of Law and the Contemporary Social Challenges in Complex Societies: Proceedings of the XXVI World Congress of Philosophy of Law and Social Philosophy of the Internationale Vereinigunf für Rechts-und Socialphilosophie. Editora Initia Via, Belo Horizonte, 2015. p. 1684-1711.
[19] HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
Daniel Carvalho Martins é juiz do Trabalho no TRT da 12ª Região (SC) e especialista em Direito da Proteção e Uso de Dados pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais