Daniel Mesquita: Perdimento de bens como obrigação legal

Recentemente, a revista eletrônica Consultor Jurídico noticiou que a “2ª Turma do Supremo Tribunal Federal autorizou que o empresário Emílio Odebrecht repatrie o montante de R$ 71.190.654 mantido por ele no Banco Pictet, da Suíça, apenas após uma condenação definitiva em processo relacionado à finada ‘lava jato'” [1]. O acordão foi assim publicado:

“JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL. COLABORAÇÃO PREMIADA HOMOLOGADA. EFICÁCIA DA CLÁUSULA DE PERDIMENTO DE BENS E VALORES SUBORDINADA AO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA. LIMITES À DISPOSIÇÃO CONTRATUAL NO AMBIENTE DA COLABORAÇÃO PREMIADA. EFEITO SECUNDÁRIO DA CONDENAÇÃO QUE EXIGE O TRÂNSITO EM JULGADO, OPORTUNIDADE EM QUE O DESEMPENHO DO COLABORADOR EM RELAÇÃO AOS TERMOS ACORDADOS SERÁ ANALISADO, COM A DETERMINAÇÃO DA EXTENSÃO DAS OBRIGAÇÕES [ESTADO E COLABORADOR]. INEFICÁCIA DA CLÁUSULA QUE IMPÕE A ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS PENAIS SUBORDINADOS À DEFINIÇÃO DA SITUAÇÃO JURÍDICA DO COLABORADOR QUANDO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. DEVIDO PROCESSO PENAL NEGOCIAL. AGRAVO PROVIDO. No ambiente da Colaboração Premiada, embora incida a lógica civilista própria dos “negócios jurídicos”, deve-se calibrar a interpretação prevalecente em face do interesse público subjacente, tendo em vista os limites quanto à disponibilidade do objeto do ação penal [culpa e punição], dentro dos limites das balizas normativas [Lei 12815/13, art. 3º, § 7º-A e art. 4º], com a criação de salvaguardas aptas à garantia das condições formais e materiais quanto à manifestação válida da autonomia privada, da boa-fé objetiva e da Justiça/Equilíbrio contratual, isto é, da construção de indicadores de suporte ao Devido Processo Penal Negocial. Ao mesmo tempo que o controle dos atos negociais orienta-se pelo suporte civilista, a partir da boa-fé objetiva, as normas processuais penais estabelecem a autoridade competente, o objeto e a forma da homologação, com a expressa ressalva da possibilidade de exclusão, ressalva e/ou ajuste por parte da autoridade judiciária competente para o ato judicial de homologação da “proposta”. Daí que há necessário diálogo de fontes [penais, processuais, civis, administrativas etc.] na interseção do objeto e da execução/cumprimento da “proposta do acordo de Colaboração Premiada” que, por ser condicional, subordina-se ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Os legitimados [ativo e passivo] devem observar as normas procedimentais [Lei 12850/13; CPP; art. 381; CP, art. 91 e 91-A] e os limites e restrições estabelecidos na legislação específica de modo cogente. Do contrário, prevaleceria a livre disposição do legitimado ativo [Ministério Público ou Delegado de Polícia] quanto ao objeto negociado, situação incompatível com o previsto no art. 4º da Lei 12850/13 e os limites democráticos quanto à disponibilidade da ação penal pelo Ministério Público que, diferentemente do modelo do plea barganing, encontra balizas normativas definidas e obrigatórias. O resultado do procedimento de negociação materializa-se por meio de acordo escrito [com anexos ordenados pela defesa], seguido de decisão judicial homologatória da ‘proposta’ pela autoridade judiciária, momento em que exerce o controle de conformidade [material e formal] quanto aos ‘termos do acordo’ que, a teor do art. 121 do Código Civil, ‘subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto’, ou seja, à prolação de futura sentença penal condenatória, ocasião em que a autoridade judicial sentenciante verificará o desempenho obtido pelo colaborador em relação à proposta homologada, com a aplicação parcial ou total do benefícios anteriormente acordados, nos termos do art. 4º da Lei 12850/13. A eficácia da proposta de Colaboração Premiada homologada pela autoridade judiciária subordina-se à eficácia da sentença penal condenatória, incluindo os efeitos da decisão penal contra o colaborador, porque não há previsão legal para que os efeitos subsequentes ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória possam ser objeto de disposição antecipada quando da homologação da ‘proposta’ da Colaboração Premiada. O produto da barganha antes da sentença condenatória, negociada entre o agente estatal e o colaborador, sob necessária orientação técnica de defensor, sem a participação do juiz nas rodadas de negociação, limita-se materialmente ao objeto negociável, com a nulidade das cláusulas que extrapolem a função preliminar da ‘proposta’, dentre elas as que antecipam o cumprimento de sanções subordinadas ao trânsito em julgado da sentença condenatória, a teor do art. 4º, § 7º, da Lei 12850/13″ (Pet 6.474 AgR, relator(a): Edson Fachin, relator(a) p/ Acórdão: Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 03-07-2023, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 09-10-2023 PUBLIC 10-10-2023) (grifos do articulista).

Da leitura do acórdão, constata-se que a controvérsia nos autos foi estabelecer se a eficácia da cláusula de perdimento de valores e bens, fixada em acordo de colaboração premiada, homologado judicialmente, é vinculada ou não a posterior sentença penal condenatória. A despeito da conclusão a que chegou a 2ª Turma do STF, não se afigura a melhor interpretação dentro de uma perspectiva moderna de modelo de Justiça Criminal Negocial.

A Lei nº 12.850/2013, com as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019 (O nomeado pacote anticrime), previu o instituto da colaboração premiada como sendo um negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova. É mecanismo de colaboração na justiça criminal, estimulado por arcabouço normativo internacional, reconhecido pelo Estado brasileiro com a finalidade de auxiliar ao combate da corrupção e do crime organizado, como se percebe da leitura do artigo 37 da Convenção de Mérida (Decreto nº 5.687/2006): “1. Cada Estado Parte adotará as medidas apropriadas para restabelecer as pessoas que participem ou que tenham participado na prática dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção que proporcionem às autoridades competentes informação útil com fins investigativos e probatórios e as que lhes prestem ajuda efetiva e concreta que possa contribuir a privar os criminosos do produto do delito, assim como recuperar esse produto; e do artigo 26 da Convenção de Parlemo (Decreto nº 5.013/2004): “Medidas para intensificar a cooperação com as autoridades competentes para a aplicação da lei 1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados: a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente i) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados; ii) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; iii) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime“.

Representa, portanto, instrumento moderno à disposição das autoridades públicas, responsáveis pela persecução criminal, vinculado a um microssistema negocial e premial que intenta, por decisão de política criminal, atrair o autor de crimes para colaborar com extirpação da conduta criminosa, com a responsabilização dos criminosos, bem como na implementação do ressarcimento do ofendido e reparação dos danos causados.

Para aquilo que se propõe o presente artigo, é de se perquirir a diferença entre eficácia do acordo de colaboração como elemento constitutivo do negócio jurídico processual, consoante a “escada ponteana”, da eficiência (efetividade) das condutas colaborativas (meio de obtenção de prova) como elemento de barganha para o recebimento de benefícios de natureza penal. Além disso, pressupondo que constituem características diferentes, verificar se há interferência no momento do cumprimento das obrigações patrimoniais, previstas em lei e assumidas no bojo do acordo de colaboração.

Em um modelo penal de direito negocial/premial, a formulação de um acordo, entre um dos legitimados estatais (Ministério Público ou autoridade policial) e o autor do crime, impõe às partes o cumprimento de obrigações legais. O procedimento de pactuação se divide em três etapas, consoante se deflui da leitura da Lei nº 12.850/2013. O primeiro momento é o do recebimento da “proposta” do acordo, momento preliminar, no qual as partes definem o objeto, contornos obrigacionais e benefícios pretendidos. O segundo é a efetiva assinatura, pelas partes, do acordo de colaboração. E, por fim, a homologação do acordo em si pela autoridade judiciária, e não mera proposta, por parte do Poder Judiciário que irá verificar a regularidade, a legalidade, a adequação legal dos benefícios pretendidos, a adequação legal dos resultados exigidos, além da voluntariedade daquele que anui com acordo.

É com a homologação judicial pela autoridade judicial que o acordo de colaboração, como negócio jurídico processual, recebe eficácia jurídica. Nesse sentido, o ministro Dias Toffoli, no paradigmático voto do HC 127.483/PR, destacou: “Finalmente, superados os planos da existência e da validade, chega-se ao plano da eficácia: o acordo existente e válido somente será eficaz se for submetido à homologação judicial (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13). Esse provimento interlocutório, que não julga o mérito da pretensão acusatória, mas sim resolve uma questão incidente, tem natureza meramente homologatória, limitando-se a se pronunciar sobre a ‘regularidade, legalidade e voluntariedade’ do acordo (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13)”.

O acordo de colaboração representa fato jurídico, o qual somado à vontade das partes, a partir dos parâmetros legais, produzem efeitos jurídicos tanto para auxiliar na produção de provas quanto para possibilitar o recebimento de benefícios de natureza penal pelo colaborador. Desta feita, não há que se confundir a eficácia do negócio jurídico do acordo de colaboração premiada, a partir da homologação judicial do acordo, com a análise, em momento posterior, na sentença de mérito, da eficácia (efetividade) do ato de colaboração (cooperação) como meio de prova para alcançar os resultados legais exigidos nos incisos do artigo 4 da Lei nº 12.850/13 (I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada). Os resultados devem advir dos atos cooperativos do colaborador com a investigação e com o processo criminal e, portanto, são anteriores ao momento da sentença penal condenatória.

O termo eficácia, no que se relaciona ao acordo de colaboração premiada, é portanto termo polissêmico. A eficácia do acordo de colaboração como negócio jurídico, após a homologação judicial, imprime direitos e deveres às partes. Ao colaborador cabe colaborar efetiva e voluntariamente com as investigações e com o processo criminal, ao mesmo tempo que faz jus aos direitos pactuados, como por exemplo, os relacionados no artigo 5º da Lei nº 12.850. Lado outro, a eficácia (efetividade) dos atos de colaboração são aferidos no momento da sentença, pelo juízo sentenciante, tomando como parâmetro o alcance dos resultados mínimos previstos no artigo 4º.

A distinção acima é ponto de partida para explorar as repercussões patrimoniais, no âmbito da colaboração premiada que não se confunde com o perdimento como efeito da condenação penal, nos moldes do artigo 91, II do Código Penal. Nesse último caso, tratando-se de efeito (consequência), por óbvio, pressupõe-se uma sentença penal condenatória. Portanto, o perdimento tipificado nos artigos 91, II do Código Penal e 7º, I da Lei nº 9.613/98 caracteriza-se como efeito genérico de caráter extrapenal, decorrente do exercício do ius puniendi estatal.

Diversamente, é a obrigação legal imposta ao colaborador, no âmbito do acordo de colaboração premiada, para cooperar com o Estado na recuperação do produto ou proveito das infrações penais praticadas. Sendo possível, o colaborador tem o dever de auxiliar na recuperação dos bens e valores, relacionados à prática criminosa, para que sua colaboração seja considerada eficiente e, consequentemente, faça jus aos benefícios pretendidos.

Na perspectiva do direito penal negocial/premial, questões de política criminal fomentam o arrependimento por parte do agente colaborador, impedindo o enriquecimento ilícito do grupo criminoso, ao mesmo tempo que o estimula a cooperar com o Estado em troca do recebimento de benefícios de natureza penal. A contribuição do colaborador, voltada a recuperar o produto ou proveito das infrações penais deve ser ato voluntário, precedendo, exatamente, o momento da sentença penal condenatória, possibilitando ao órgão judiciário sentenciante, na fase final do processo de conhecimento verificar se, nesse ponto, a cooperação prestada pelo colaborador foi efetiva.

Não se trata de execução forçada de bens pela força cogente do Estado, mas conduta colaborativa do agente do crime que pretende ter benefícios de natureza penal, previstos em lei. Ainda que a Orientação Conjunta nº 1/2018 da 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal tenha previsto a possibilidade de previsão, nos acordos de colaboração premiada, de obrigações pecuniárias, divididas em três espécies, quais sejam sancionatória; ressarcitória ou reparatória; e o perdimento [2], somente a primeira representa sanção de natureza penal e, portanto, prescinde de sentença condenatória. O caráter ressarcitório e/ou o perdimento possuem caráter extrapenal, sendo de livre disposição patrimonial por parte do colaborador, o qual confessa a prática do crime, bem como reconhece a origem ilícita dos referidos bens e valores.

Registre-se que a voluntariedade do agente e sua cooperação com o Estado para dispor de bens e valores, no âmbito do direito penal, não é exclusiva do acordo de colaboração premiada. No acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A, incisos I e II do Código de Processo Penal, uma das condições inafastáveis para seu reconhecimento é previsão que o autor possa reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo, bem como renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime.

Assim, não apenas o perdimento, mas também a reparação do dano, que são classicamente efeitos de condenação de natureza extrapenal, encontram, em bases normativas modernas, o reconhecimento de aplicabilidade, independentemente, de sentença penal condenatória, estimulando o autor dos crimes em troca de prêmios de natureza penal.

Nesse cenário, é de se concluir que recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa, seja para impedir o enriquecimento ilícito dos autores, seja para permitir a reparação dos danos ou o ressarcimento do ofendido, configura obrigação legal impositiva ao colaborador que pretende se beneficiar dos prêmios previstos no acordo de colaboração. E, portanto, tratando-se de obrigação decorre da homologação do acordo e deve ser implementada antes do momento da sentença penal condenatória, pois base de análise do juízo sentenciante para avaliar o cumprimento ou não do acordo pactuado em sua integralidade. Em suma, condicionar a recuperação de bens e valores, pactuados no acordo de colaboração premiada, ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, além de esvaziar significativamente a finalidade do instrumento, enseja insegurança jurídica na condução da própria persecução penal.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2023-jul-12/empreiteiro-devolver-dinheiro-condenacao-definitiva

[2] “27.1. O acordo de colaboração premiada pode também prever o valor da multa penal, o valor ou os bens objeto de perdimento e sua destinação, o valor mínimo da reparação do dano e sua destinação às vítimas dos delitos, quando couber.”

Daniel José Mesquita Monteiro Dias é promotor de Justiça em Pernambuco (MP-PE), especialista em Direito Público e Gestão de Polícia Civil, ex-juiz de Direito do Rio Grande do Norte e ex-delegado de Polícia Civil do Distrito Federal.

Consultor Júridico

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