O mundo do antitruste amanheceu agitado na manhã da quarta-feira, dia 19 de maio de 2023. O draft [1] (versão preliminar) da nova versão do Guia de Fusões (Atos de Concentração) do US Department of Justice (DOJ) e da Federal Trade Commission (FTC) [2], que já tinha sido anunciado há 18 meses quando a presidente da FTC, chairwoman Lina Khan, e o assistant attorney general da Divisão Antitruste do DOJ, Jonathan Kanther, divulgaram os seus planos de modernização das agências na área de fusões, foi finalmente lançado ao público para comentários gerais pelas duas agências antitrustes norte-americanas. Trata-se realmente de um grande fato para o mundo do antitruste que teve repercussão até no pronunciamento do presidente Joe Biden na reunião do seu Conselho de Concorrência [3].
O Direito Antitruste norte-americano é regrado, primordialmente, pelo Sherman Act e Clayton Act. É na Section 7 do Clayton que se cria a regra legal de análise antitruste em relação às fusões e aquisições [4]. Em síntese, a Section 7 proíbe fusões e aquisições “quando, em qualquer linha de comércio (in any line of commerce) ou em qualquer atividade que afete o comércio em qualquer seção do país (in any section of the country), o efeito de tal aquisição possa ser substancial para a redução da concorrência (may be subsantially to lessen competition) ou que tenda a criação de um monopólio (to tend to create a monopoly)”.
Desse modo, desde de 1968 [5], com a publicação do primeiro Merger Guidelines pelo DOJ, as agências antitrustes norte-americanas vêm reeditando os seus guias para expressar o corrente pensamento das autoridades no tocante aos seus papéis e ao enforcement que elas almejam quanto às fusões anticoncorrenciais. Assim, houve a edição do Guia de 1984 [6], de 1992 [7] e de sua atualização em 1997[8]. Atualmente, ressalta-se que os Estados Unidos têm dois guias de análise de fusões em vigor: (1) o Guia do DOJ e da FTC de Análise de Fusões Horizontais de 2010[9] e (2) o Guia do DOJ apenas — uma vez que a FTC retirou sua participação — de Análise de Fusões Verticais de 2020 [10].
Esse segundo guia, o de Fusões Verticais de 2020, foi aprovado por ambas agências no dia 30 de junho de 2020, sob a antiga administração tanto do DOJ, quanto da FTC. Contudo, no dia 15 de junho de 2021, já sob a nova administração do governo Biden, por uma votação de 3-2, a FTC decidiu retirar a sua participação do guia [11], apontando ao mercado que não teria mais esse guia como o seu direcionamento nos casos de fusões verticais — o DOJ não apontou sua expressa retirada do Guia Vertical.
Assim, o atual draft do novo guia, quando modificar de versão preliminar para a versão final, revogará os guias de 2010 e de 2020 — tanto para o DOJ, quanto para a FTC —, uma vez que o atual Guia servirá e contém disposições direcionados para casos de fusões horizontais e verticais.
O guia era muito esperado pela comunidade antitruste visto que apresentaria à comunidade o pensamento e posicionamento dos comandantes das agências pertencentes ao denominado movimento neo-brandeisiano ou Hipster Antitrust [12] no tocante ao enforcement das agências sobre a análise concorrencial de fusões. Os principais representantes desse movimento, como a chairwoman da FTC, Lina Khan, o assistent attorney general da Divisão Antitruste do DOJ, Jonathan Kanther, e o antigo special assistant to the president for Technology and Competition Policy da Casa Branca, Tim Wu, já detinham papéis importantes nas universidades por seus escritos acadêmicos. Todavia, ao tomarem o comando das agências (em especial, Lina Khan e Jonathan Kanter), de fato, viu-se uma modificação nas teorias de dano e nos casos desafiados nos tribunais norte-americanos [13].
Assim, até o momento atual, em que se tem em vigor os guias das antigas administrações com as ações da nova administração Biden, não se tinha um direcionamento claro das agências em relação à priorização dos casos de fusões antitrustes que as autoridades compreendiam como ilegais e, portanto, seriam devidamente escrutinizadas e, porventura, questionadas no Judiciário. Era-se esperado um posicionamento mais intervencionista das autoridades concorrenciais, em direcionamento similar à ” Executive Order on Promoting Competition” [14], exaurada pelo presidente Joe Biden no dia 9 de julho de 2021, o qual apontava que os últimos 40 anos da prática antitruste norte-americana, bastante influenciado pelos pensamentos do juiz Robert Bork, tinham sido um fracasso. Efetivamente, o draft põe em prática ideias mais intervencionistas do Bidenomics.
Da leitura do draft, percebe-se o viés mais intervencionista, se comparado aos guias passados, em decorrência do cherry picking nos casos selecionados para serem citados no guia. Conforme demonstrado por Lindsey Edwards [15], a partir da distribuição de casos por décadas, depreende-se que houve uma clara escolhe de citações por casos das décadas de 60 e 70 — em especial, os famosos casos da década de 60, Brown Shoes e Philadelphia National Bank.
Trata-se de casos extremamente controversos e, para muitos, já devidamente ultrapassados do ponto de vista de direito e de economia [1]. Tem-se, por exemplo, no caso Brown Show que “embora a análise vertical da Corte tenha refletido mais diretamente em populismo, a discussão horizontal também contribuiria para a incoerência econômica em futuros caso. A empresa Brown era a terceira maior varejista de sapatos no país, já a empresa Kinney era a oitiva maior, e a participação de mercado combinada no mercado nacional era de apenas 4,5%. O negócio era muito pouco concentrado; os 24 maiores varejistas de sapatos eram responsáveis por 35% das vendas” [2]. Até há alguns anos, ao se estudar a decisão do caso Brown Shoes, tinha-se tal decisão como um exemplo “bizarro” e ultrapassado de pensamento antitruste, pois se torna muito difícil explicar como que a fusão da terceira com a oitava maior empresa do mercado, em um mercado pouco concentrado, resultando num market share de 4,5%, seria capaz de abusar de seu poder de monopólio e causar danos concorrenciais. Nesse sentido, atualmente, tenderia a opinar ser quase impossível que uma fusão que resulte em uma empresa com 4,5% de market share no mercado relevante fosse reprovada por qualquer autoridade antitruste de qualquer jurisdição.
Porém, ao se utilizar desse caso, juntamente com o Philadelphia National Bank, para embasar os posicionamentos e as diretrizes do guia, revela-se as preferências já conhecidas dos comandantes das agências antitrustes norte-americanas para o caselaw antitruste das épocas pré anos 80 e revolução Borkiana [3]. Um contra-argumento utilizado pelos defensores da utilização desses casos é que, de fato, esses são os últimos casos julgados pela Suprema Corte Norte-Americana (Scotus) em relação à Section 7 do Clayton Act. Todavia, o ponto que se deve levar em consideração, é que a economia como um todo se modificou, e, muito dificilmente, algum M&A atualmente esperaria que o caso chegasse até a Scotus para que fosse decidido — sendo, provavelmente, cancelado em estágios muito mais recentes, uma vez que os recentes contratos de M&A preveem cláusulas resolutivas nos contratos caso não haja a conclusão do contrato até alguma data próxima. Provavelmente os casos da Section 7 do Clayton Act ficarão na história para a eternidade, não tendo a Scotus a oportunidade de julgar e modificar o seu posicionamento.
Todavia, as demais cortes norte-americanas não costumam adotar o posicionamento firmado pela Scotus nos anos 60 e 70 desde meados da década de 80. Conforme visto na tabela de distribuição dos casos citados no draft pelas décadas, percebe-se não se ter dando ênfase aos casos atuais e mais recentemente julgados pelos diversos circuits e demais cortes norte-americanas.
Desse modo, acadêmicos questionam: qual é a utilidade de um guia que seguramente não será utilizado pelas cortes [4]? No primeiro parágrafo do guia, o documento explicita que “ele foi desenhado para ajudar o público, a comunidade empresarial, os profissionais e os tribunais a compreender os fatores e enquadramentos que as agências consideram quando investigam fusões” [5]. Todavia, diferentemente das regras regulatórias que a FTC pode emanar [6], o guia não é vinculante para as cortes norte-americanas, os quais se baseiam, principalmente, nos precedentes legais.
Logo, caso o guia almejasse ser uma explicação sobre como o sistema concorrencial norte-americano está funcionando no atual momento (compreendendo a atuação das agências + o posicionamento das cortes norte-americanas), talvez teríamos que ter um outro draft. Nesse sentido, o guia certamente será mais eficaz no sentido de (1) dar clareza e transparência ao mercado sobre prováveis e futuras formas de atuação das agências do que (2) uma sinalização e um resumo das decisões passadas e como as cortes estão pensando o antitruste para casos de fusões. Realiza-se tal questionamento, pois não se sabe qual será o grau efetivo de enforcement de um guia que, possivelmente, não será respeitado pelas cortes ao final.
Com o intuito de se realizar uma melhor explanação inicial sobre o guia, realizei uma breve introdução teórica sobre o tema, o qual foi publicado por este artigo. Porém, para uma leitura maior, recomenda-se a leitura do texto completo o qual se encontra disponível no portal do SSRN [7].
Dario da Silva Oliveira Neto é diretor do Latin America Competition Advocacy Program do Global Antitrust Institute da Antonin Scalia Law School — George Mason University, doutorando no Departamento de Direito Comercial da USP, bacharel em Ciências Econômicas pela PUC-RS com prêmio distinção de mérito, mestre em Desenvolvimento Econômico com ênfase em Economia Regional pela PUC-RS, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS com láurea acadêmica, especialista em Direito Empresarial pela PUC-RS e em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV, economista e advogado.