Decisão do STF sobre competência do juiz das garantias gera críticas

A decisão do Supremo Tribunal Federal de limitar a competência do juiz das garantias ao momento do oferecimento da denúncia, e não ao do recebimento, como estava previsto na lei “anticrime”, não foi bem recebida pela comunidade jurídica brasileira.

Especialistas acreditam que interpretação do ministro Luiz Fux ultrapassou limites constitucionais ao mudar texto de lei

Carlos Moura/SCO/STF

Da maneira como foi decidido pelo STF, o juiz das garantias cuidará da fase do inquérito policial, sendo responsável por julgar uma série de pedidos relativos a essa etapa, como quebra de sigilo bancário e telefônico e mandado de busca e apreensão. Porém, diferentemente do que previa a lei aprovada em 2019, ele não poderá receber a denúncia, o que ficará a cargo do juiz da causa.

No entendimento da maioria dos estudiosos do assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, essa limitação imposta pelo Supremo, além de esvaziar o instituto do juiz das garantias, é inconstitucional, já que altera o texto de uma lei aprovada pelo Parlamento. Um dos principais críticos dessa alteração é o jurista Lenio Streck, que acredita que o STF invadiu a competência de outro poder a partir do entendimento firmado pelo voto do ministro Luiz Fux.

“Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição”, afirmou Streck em artigo publicado na ConJur. A interpretação de Fux sobre o limite da competência do juiz das garantias prevaleceu no julgamento.

O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, também criticou essa interpretação. “A grande modificação da figura do juiz das garantias é retirar do juiz da causa o contato com os elementos de informação prévios à denúncia. Isso é algo diverso do que o legislador escolheu. Um passo atrás, porque é uma alteração de competência que deixa de lado o motivo principal dessa alteração, que é separar o que pode ser valorado por cada juiz.”

O criminalista Fernando Fernandes também acredita que o STF ultrapassou a matéria constitucional ao impor uma interpretação que substitui a do Legislativo. “Lenio Streck, citando Bernd Rüthers, classificou como ‘interpretação sem limites (unbegrenzte Auslegung)’. E mais, após anos com o dispositivo suspenso, ainda atrasam em um ano a vigência de algo que dá concretude à garantia constitucional. O cidadão não pode ser punido pelo atraso do Estado. O Supremo precisa, como guardião da Constituição, respeitar seus próprios limites e os da ciência, da doutrina, que estão acima das interpretações casuísticas.”

O professor da FGV-SP e sócio da área penal do escritório Mattos Filho Rogério Fernando Taffarello acredita que no cenário ideal haveria um magistrado para investigação, um outro para o recebimento da denúncia e mais um para o processo crime. “Só que isso não é viável. Então é possível escolher entre o juiz das garantias atuando até o oferecimento da denúncia ou até o recebimento. Nosso legislador fez uma escolha muito clara de que a competência do juiz das garantias iria até a admissibilidade da denúncia. Eu não consigo enxergar uma questão constitucional que permitisse ao STF alterar essa regra. O Supremo legislou”, afirma. 

 Copo meio cheio

Alguns especialistas, por outro lado, acreditam que a limitação da competência enfraquece, mas não esvazia o instituto do juiz das garantias. É o caso do advogado criminalista Aury Lopes Jr..

“O recebimento da denúncia deveria ficar nas mãos do juiz das garantias, não apenas para assegurar a máxima originalidade cognitiva do juiz da instrução e julgamento, mas também para justificar a necessária exclusão física dos autos do inquérito. Ou seja: o juiz das garantias, para receber a denúncia, poderia levar em consideração os elementos informativos do inquérito. Já o juiz da instrução deveria ingressar depois de recebida a denúncia, formando sua convicção (sentença) apenas com base em prova (ou seja, os elementos produzidos na instrução).”

No entendimento do criminalista, a decisão é um golpe duro em toda a estrutura lógica e necessária ao trabalho do juiz das garantias. “Se fosse para chegar nisso, com o recebimento da denúncia nas mãos do juiz da instrução (violando tudo o que já se sabe sobre o problema da contaminação e do viés confirmatório), bastaria apenas ter criado uma lei que determinasse que a prevenção passaria a ser uma causa de exclusão da competência, e não de fixação (regra desde 1941). No fundo, novamente avançamos muito pouco perto do que se pretendia e podia.” 

Já o também criminalista Luís Henrique Machado diverge dos demais advogados ouvidos. “Acho que o Supremo andou bem ao definir o instituto dessa forma. O juiz das garantias vai supervisionar todo o inquérito até o momento de oferecer a denúncia. Para receber a denúncia, é ideal haver um novo magistrado equidistante a todo processo investigativo.”

Nadando contra a corrente dos operadores do Direito, Machado acredita que a solução encontrada pelo STF acabou sendo mais garantista do que o texto aprovado no Congresso. “Tornar um investigado réu é um momento crucial do processo penal. O juiz das garantias vai decidir várias questões durante o inquérito, como interceptação telefônica, busca e apreensão e prisão preventiva, então como esse mesmo juiz estaria apto a receber a denúncia?”, questiona ele. 

Consultor Júridico

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