Para sobreviver às ondas de populismo extremista experimentadas na última década, as democracias liberais consolidadas como o Brasil devem estabelecer mecanismos para evitar que as liberdades e direitos garantidos pela Constituição Federal sejam usados para ameaçar a própria existência do Estado Democrático de Direito. A isso se dá o nome de democracia defensiva.
A ideia foi central em evento realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral em parceria com a Embaixada da Alemanha, na manhã de quarta-feira (16/8), em que foram indicados caminhos que o país pode seguir para lidar com a incômoda necessidade de gerir a liberdade daqueles que são inimigos das liberdades.
Os alemães aprenderam a lição no Século XIX, quando a República de Weimar — a primeira experiência republicana alemã — ruiu de dentro para fora. Pelas vias democráticas, Adolf Hitler ascendeu ao cargo de chanceler e, com a morte do presidente Paul von Hinderburg em 1934, concentrou poderes, dando início ao Terceiro Reich que levaria o mundo à Segunda Guerra Mundial.
Com o fim da guerra, em 1945, a Alemanha Ocidental viu a necessidade de criar uma Constituição, dessa vez com um caráter defensivo para impedir que fosse subjugada no futuro. Promulgada em 1949, a Lei Fundamental previu instrumentos de autopreservação que, ao longo de quase 75 anos, evoluíram e atingiram esse objetivo.
Trata-se de um país onde a liberdade de expressão protege quem acha que a democracia não é o melhor regime político e até a divulgação de conteúdo nacional-socialista, desde que não agressivo ou violento. Mas que, ao mesmo tempo, não permite o uso dessas liberdades para ameaçar ou destruir a ordem constitucional.
No Brasil, onde recentemente foi preciso inovar para preservar a democracia, persiste a questão: como tutelar a liberdade daqueles que são inimigos da liberdade? Presidente do TSE, o ministro Alexandre de Moraes indicou a democracia defensiva como um caminho a ser seguido, a partir de uma reanálise dos mecanismos de defesa das instituições democráticas.
“Não é possível que a Constituição permita o uso sem limites de determinadas liberdades para que a própria democracia seja rompida. Não há lógica nisso. Não é de hoje que nenhum dos direitos fundamentais é absoluto. Há limites individuais e coletivos no sentido da prevalência do Estado Democrático de Direito”, afirmou.
Esse caminho passa pela atuação dos tribunais superiores. “O Brasil nos últimos anos tem demostrado que a Constituição Federal acertou em fortalecer as instituições e, principalmente, em apostar no fortalecimento do Judiciário como verdadeiro defensor da Constituição. Isso ficou demonstrado nas eleições de 2022”, pontuou Moraes.
Instrumentos de defesa
O conceito e a prática da democracia defensiva foram melhor explicados no evento em palestra do juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha Josef Christ, que apresentou os instrumentos usados no país para a defesa prática da democracia.
A disciplina desses instrumentos é extremamente rígida: só podem ser usados para proteger princípios básicos centrais indispensáveis ao Estado Democrático de Direito e em situações de mais elevado risco. Estão predominantemente sob controle da corte constitucional alemã e são definidos por seus efeitos sem qualquer margem de arbítrio.
Um exemplo é a possibilidade de proibir a existência de partidos políticos. Não há gradação: ou se proíbe ou estará liberado para existir. Até hoje, só duas legendas chegaram a tanto: o Partido Socialista do Reich, de cunho nazista, em 1952, e o Partido Comunista alemão, em 1956.
Atualmente, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, da sigla AfD, é monitorado e pode ser alvo de processo de proibição. O mesmo pode ocorrer com associações civis. 55 delas já foram proibidas, em regra por se situarem no campo do extremismo de direita, de esquerda, contra estrangeiros e do islamismo.
Há dois outros instrumentos que nunca foram usados, mas cuja existência tem enorme função simbólica: a suspensão de direitos fundamentais, por meio da qual indivíduos que abusem dos seus direitos de liberdade podem ser privados da proteção dos mesmos, e a denúncia contra juízes — nesse caso, tem-se optado por seguir a via do direito do funcionalismo público para disciplinar magistrados inimigos da Lei Fundamental.
O uso da democracia defensiva também pode passar pelo Direito Penal, por meio da tipificação de crimes contra a proteção do Estado. A última salvaguarda da constituição alemã está na definição expressa de cláusulas pétreas em áreas nucleares em que são traçadas linhas intransponíveis para o legislador. Dentre elas, estão as que tratam de princípios da democracia, da República e do estado social.
A função do Judiciário
“Nossa Lei Fundamental tomou um caminho oposto à da Constituição de Weimar”, apontou o Josef Christ. O documento foi pioneiro no estabelecimento dos direitos fundamentais e sociais e influenciou várias constituições a partir de então, mas podia ser emendado sem limites, sem quaisquer mecanismos de defesa contra seu esvaziamento.
Prevalecia, à época, o entendimento de constitucionalistas alemães como Gerhard Anschultz no sentido de que a Constituição não está acima do Poder Legislativo, mas a serviço do mesmo. Segundo o juiz Christ, em uma análise atual, a Constituição de Weimar ruiu mais porque muitos alemães não tinham confiança no Estado Democrático de Direito e porque a nova ordem não contou com apoio amplo da sociedade, sobretudo das elites.
A lição que fica é que o Estado de Direito está mais bem protegido quando firmemente arraigado na convicção política dos cidadãos. “Os tribunais constitucionais servem melhor a democracia quando não se tornam atores públicos, mas cumprem sua tarefa de guardiões da Constituição, sendo neutros em meio ao embate político de ideias”, destacou o magistrado alemão.
Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Sérgio Domingues, a vivência brasileira dos últimos anos expôs como é importante esclarecer à sociedade sobre medidas adequadas no combate a esse ambiente de violência política.
“Estamos muito longe de qualquer espécie de ditadura judicial. A missão não é e nunca foi eliminar o debate político. Ao contrário: o debate é da essência da democracia. Não se tolera a tentativa de abolir a democracia a partir de um falso debate. Garantir o equilíbrio faz parte da essência da atuação judicial”, afirmou.
Advogado Geral da União, Jorge Messias destacou a criação recente de um dos mecanismos de democracia defensiva no Brasil: a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, que foi apelidada pelos críticos de Ministério da Verdade. E afirmou que a experiência alemã ajuda a traçar com segurança caminho a ser seguido: a defesa da democracia para um regime de governo dinâmico, igualitário e inclusivo.
“Considero essencial a retomada do crescimento econômico, com o fortalecimento dos direitos sociais. Um novo ciclo de desenvolvimento parece andar junto da defesa da democracia. É preciso cumprir promessas da Constituição e estabelecer de uma vez por todas o Estado Social e Democrático de Direito, para resgatar a confiança da sociedade nas instituições”, expôs.
No encerramento do evento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um especialista no constitucionalismo alemão, fez um balanço do momento brasileiro. Relatou como a sensação de orgulho pelo mais longo período democrático da história republicana brasileira foi substituído por temores de ruptura institucional, que levaram ao 8 de janeiro.
“Estou a contar a história de um atropelamento que pôde ser evitado graças ao funcionamento das instituições”, disse, ao afirmar que o aprofundamento do diálogo com a Alemanha pode ser pedagógico e fortalecedor. “Inclusive para o debate que temos no Brasil a propósito da necessidade de defesa da democracia, de não sermos tolerantes com quem não é tolerante.”