Embora sejam definidos como condomínios de natureza especial, os fundos de investimento detêm uma estrutura organizacional mais próxima da sociedade. Os fundos são titulares autônomos de direitos e obrigações. Diferentemente do que prevê o artigo 1.314 do Código Civil para o condomínio geral, os quotistas dos fundos de investimento são titulares apenas das quotas, não do patrimônio do fundo.
A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019), adicionando os artigos 1.368-D, inciso I, e 1.368-E ao Código Civil, garantiu, respectivamente, limitação de responsabilidade e autonomia patrimonial aos fundos de investimento.
O Recurso Especial nº 1.965.982-SP, julgado em 5 de abril de 2022 sob a relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) aplicou a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica para estender as dívidas de um quotista a um fundo de investimento em participação.
Ressaltando que os fundos são condomínios regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), destituídos de personalidade jurídica, mas aptos à aquisição, em nome próprio, de direitos e obrigações diante dos cotistas e de terceiros, a Corte concluiu que “o fato de ser o FIP constituído sob a forma de condomínio e de não possuir personalidade jurídica não é capaz de impedir, por si só, a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em caso de comprovado abuso de direito por desvio de finalidade ou confusão patrimonial”.
Disso surgiria a dúvida: existe um fundamento técnico para que o fundo de investimento, como um ente despersonalizado, tenha a sua “personalidade” desconsiderada?
Há dois caminhos para essa discussão. Um primeiro caminho é uma análise de seu efeito técnico primário: o que se desconsidera não é a personalidade, mas a separação patrimonial. Um segundo é analisar o fundo de investimento diante da dupla crise, teoria de Lamartine Corrêa de Oliveira.
Clarificação do efeito técnico da desconsideração da PJ
Atribui-se comumente a origem do instituto da desconsideração à jurisprudência norte-americana [1]. Porém, no Brasil, a sua chegada se deu por meio da doutrina, em especial em razão de palestra de Rubens Requião, ministrada na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) em 1969, que tinha por título “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine)” [2].
Dada a sua inspiração na jurisprudência norte-americana, que teria adotado como terminologia “disregard of legal entity” ou “lifiting the corporate veil”, a terminologia sugerida por Rubens Requião foi “desconsideração da personalidade jurídica” ou “desestimação da personalidade jurídica” [3]. O primeiro termo foi adotado pelo Código Civil de 2002, em seu artigo 50.
No entanto, a terminologia parece inadequada para o seu verdadeiro efeito técnico. O que se desconsidera — ou se torna ineficaz — não é a personalidade da pessoa jurídica, mas a autonomia patrimonial existente entre o sócio e a pessoa jurídica [4].
Nesse sentido, embora se possa sustentar que a desconsideração da personalidade jurídica seria inaplicável aos fundos de investimento por serem eles condomínios, ou seja, entes despersonalizados, o argumento desconsidera (com o perdão do trocadilho) o efeito primário da desconsideração, que é a ineficácia da autonomia patrimonial.
Considerando a já reconhecida autonomia patrimonial dos fundos de investimento, consignada no artigo 1.368-E do Código Civil, não deveria haver dúvida de que ela poderia ser declarada ineficaz em razão de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Fundos de investimento diante da dupla crise da pessoa jurídica
O fundamento para a desconsideração dos fundos de investimento ganha um tom distinto, se analisado com recurso às considerações teóricas de Lamartine Corrêa de Oliveira.
O autor entende que todo ente social dotado de organização complexa é, em analogia aos humanos, pessoa. Conforme define, os entes são “pessoas jurídicas” antes mesmo de estarem previstos em lei, quando funcionam como um centro autônomo de relações jurídicas [5]. Trata-se da teoria ontológico-institucionalista da pessoa jurídica.
Desse conceito, Lamartine deduziu duas crises da pessoa jurídica: a crise de sistema e a crise de função.
A crise de sistema está associada à deficiência no reconhecimento de algumas entidades como pessoas jurídicas pelo ordenamento jurídico, embora socialmente funcionem como uma. Quanto à crise de sistema, Lamartine examina os entes despersonalizados com capacidade processual citados pelo artigo 12 do Código de Processo Civil de 1973, analisando dentre eles o condomínio edilício, afirmando que é um ente titular de direitos, obrigações, deveres e pretensões no plano do direito material, o que, para o autor, retira qualquer dúvida a respeito de sua adequação técnica ao conceito de pessoa jurídica [6].
Os fundos de investimento, assim como os condomínios edilícios, são titulares de direitos, obrigações, deveres e pretensões. Além disso — e é uma especificidade deste condomínio de natureza especial —, os fundos detêm autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade, o que os aproxima em muito às sociedades limitadas e anônimas. Assim, sob a ótica da teoria de Lamartine, os fundos de investimento seriam pessoas jurídicas. A ausência de reconhecimento de sua natureza de pessoa jurídica pelo ordenamento jurídico seria um sintoma da crise de sistema descrita pelo autor.
A segunda crise, chamada crise de função, segue o caminho inverso da crise de sistema, ou seja, existe quando se atribui a natureza de pessoa jurídica, assim como as consequências que derivam dela (separação patrimonial), às entidades que reúnem as condições formais, conforme o ordenamento jurídico, mas não detêm uma realidade institucional compatível. É o caso o de sociedades que atuam formalmente como pessoas jurídicas, com autonomia patrimonial entre o ente e seus sócios ou acionistas, mas na prática são utilizadas como meio para práticas consideradas “imorais ou antijurídicas”, assim consideradas as ações que violam a separação patrimonial [7]. Isso gerou uma reação dos tribunais que “tiveram como princípio comum uma espécie de suspensão de vigência — para o caso concreto em julgamento — do princípio da separação da pessoa jurídica e pessoa-membro” [8].
O diagnóstico realizado por Lamartine poderia se estender aos fundos de investimento. Em primeiro lugar, institucionalmente devem ser reconhecidos como pessoas jurídicas. No entanto, caso a autonomia patrimonial a ele legalmente atribuída sirva como pretexto para a apropriação privada do quotista do patrimônio do fundo, ou qualquer outro ato que desfigure a separação patrimonial, pode-se aplicar a teoria da desconsideração (direta ou inversa) personalidade jurídica.
Conclusão
O avanço da desconsideração, com a normalização da superação da autonomia patrimonial como um expediente do dia a dia, gerou um ar de preocupação na doutrina, havendo quem sustente o fim da responsabilidade limitada no Direito brasileiro [9].
Em palestra ocorrida na disciplina “Dogmática e Crítica da Jurisprudência”, ministrada no primeiro semestre de 2022 na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) pelos professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Alexandre de Moraes, Walfrido Warde afirmou que os agentes de mercado têm realizado um trânsito das sociedades limitadas e anônimas para os fundos de investimento, tendo em vista a maior rigidez da autonomia patrimonial e a dificuldade de afetação do patrimônio do fundo pelas dívidas dos sócios (ou vice-versa).
Desde que as quotas de fundo de investimento foram consideradas valores mobiliários, em função da Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001, os fundos de investimento passaram a ser regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). De lá para cá, os fundos têm se estruturado de maneira altamente profissionalizada, com gestão, administração e custódia realizadas por prestadores de serviços, além de regras muito rígidas de governança e necessária auditoria externa anual.
Conforme entendimento do STJ no acórdão citado na introdução desta coluna, tudo isso diminui, mas não aniquila o risco da violação à autonomia patrimonial por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. O referido acórdão é um primeiro e relevante precedente que abre caminho para uma adequação técnica dos fundos à teoria da desconsideração, o que pode servir como freio ao uso indevido da separação patrimonial. Contanto que, evidentemente, seja ela utilizada como meio excepcional, em consonância com o princípio da intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas, prescrito pelo artigo 2º, III da Lei da Liberdade Econômica.
Abrahan Lincoln Dorea Silva é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.