No último dia 17 de março, o STF (Supremo Tribunal Federal) iniciou o julgamento da ADI 6.309, que versa sobre a idade mínima e o critério de cálculo na aposentadoria especial, além da (im)possibilidade de conversão do tempo de serviço especial em comum após a edição da EC 103/2019.
O ministro Roberto Barroso, relator, apresentou voto pela improcedência da ação. A contextualização dos motivos da reforma da previdência, tais como o aumento da expectativa de vida, o suposto déficit, a saída prematura do mercado de trabalho, enfim, não possui relevância jurídica no contexto da ADI 6.309. Fosse assim, poderíamos problematizar outras tantas abordagens como a criação de novas demandas em razão da idade mínima: a) novos empregos serão necessários, para absorver uma faixa etária que encontra sérias dificuldades no mercado de trabalho; e b) prolongar o tempo de trabalho insalubre, penoso ou perigoso aumenta a probabilidade de danos à saúde e/ou à integridade física. Faltam estudos de impacto social, econômico… o que dizer das idades de 55, 58 e 60 anos para a aposentadoria especial (de onde se tirou isso)?
O que eu gostaria de formular logo de saída é: não há como se comparar a aposentadoria especial com os demais benefícios, no sentido de seguir “o mesmo objetivo do estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria voluntária dos segurados do regime geral de previdência social: impedir a saída prematura do mercado de trabalho e a sobrecarga do sistema com o pagamento de benefícios por prazos demasiadamente longos“.
Uma coisa é a aposentadoria por idade, outra, muito distinta, é a aposentadoria especial, que traz consigo uma presunção de incapacidade absoluta, como se verifica no voto do ministro Dias Toffoli, no julgamento do Tema 709: “Trabalha-se com uma presunção absoluta de incapacidade decorrente do tempo do serviço prestado, e é isso que justifica o tempo reduzido para a inativação” [1].
Ainda, o voto do ministro Roberto Barroso parte da premissa de que “a exigência de idade mínima para passar à inatividade de forma precoce — isto é, antes do tempo exigido dos trabalhadores em geral — não é uma exclusividade brasileira“, quando o que discute é retirar o trabalhador mais cedo do trabalho, a fim de evitar o dano e, como muito maior razão, atenuá-lo. Como já se viu, o que está em jogo é o trabalho que “[…] pode fazer com que as pessoas venham a morrer prematuramente, isto é, ‘antes da hora'” […]”, por causas distintas daquelas “esperadas” (por agravos que ocorrem excessivamente em algumas categorias) [2].
O STF já perquiriu a finalidade do benefício de aposentadoria especial no Tema 555, mas isso nos levaria a retornar a coisas já ditas em outro artigo [3]. O que mais perto interessa à problemática é verificar que idade mínima não apenas potencializa o risco causado pelos agentes nocivos, mas obriga o segurado a permanecer no trabalho após o cumprimento do tempo de efetiva exposição a agentes nocivos. No julgamento do Tema 709, o STF reiterou a finalidade do benefício: “A norma se presta, de forma razoável e proporcional, para homenagear o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os direitos à saúde, à vida, ao ambiente de trabalho equilibrado e à redução dos riscos inerentes ao trabalho”. A conclusão: “É vedada a simultaneidade entre a percepção da aposentadoria especial e o exercício de atividade especial, seja essa última aquela que deu causa à aposentação precoce ou não”.
Então: por que o percipiente de aposentadoria especial não pode permanecer ou retornar ao trabalho insalubre, perigoso ou penoso? A resposta só pode ser: porque isso contraria a finalidade do benefício, qual seja, evitar o dano e, com muito maior razão, atenuá-lo, mediante a redução do tempo de trabalho (com contribuição) sob condições prejudicais à saúde e à integridade física/mental. Isso vale para idade mínima.
No que diz respeito ao critério de cálculo, é sim, verdadeira a afirmação de que esses trabalhadores receberão valor menor de proventos que o segurados que laboram em condições normais. O que se tem é o famoso “dar com uma mão e tirar com a outra”. Não se pode aceitar como “benesse” a redução do tempo de contribuição e idade mínima, em razão da efetiva exposição a agentes nocivos (durante 15, 20 ou 25 anos), se, por outro lado, o valor do benefício sofrerá uma redução muito maior do que na aposentadoria por tempo de contribuição, porquanto proporcional ao tempo de contribuição (60% + 2% para cada ano que superar os 15 anos de contribuição, se mulher ou mineiro, ou 20, se homem).
Ao lado desses enganos muito difundidos, tem-se que a vedação da conversão constitui uma opção legislativa legítima, que confere maior peso, dadas as circunstâncias atuais, à necessidade de restabelecer o equilíbrio financeiros e atuarial do sistema previdenciário. No Tema 942, contudo, o STF confirmou que o fator de conversão nada mais é — e, por isso, muito — do que um ajuste da relação de trabalho, com a proteção daquele que exerce trabalhos insalubres, independentemente de por quanto tempo.
Seja como for, argumentos funcionalistas acabaram tendo preferência sobre argumentos normativos, o que, se assim racionalizar a maioria dos ministros, poderá levar ao sacrifício de direitos fundamentais [4]. Os direitos fundamentais não são garantia de nada, quando a Suprema Corte decide por política ou com fundamento em argumentos econômicos, e não por princípios. Onde está a responsabilidade política do juiz… a força normativa da Constituição? Segundo Lenio Streck: “Decidir por princípio significa não ser consequencialista nos moldes da análise econômica do direito (AED) ou da análise moralista do direito (AMD)” [5].
Precisamos enfrentar o argumento que coloca os recursos orçamentários como limite à proteção do trabalhador. Sobra realidade nas comparações com outros países, que, ao revés do Brasil, apostam na eliminação dos riscos no meio ambiente do trabalho. No Brasil se aposta em “representações ideais”, que, na sequência, são aplicadas por mimetismo à realidade. Assim, com um discurso endereçado para o futuro, o ministro Roberto Barroso acaba expressando a lógica do governo, sem nenhum compromisso com as conquistas constitucionais, em matéria de proteção do trabalhador.
No discurso, retida a ideia de que o direito deve se adequar às práticas da comunidade extrajurídica, como sendo a reforma uma vontade do povo: “A jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade” m afirma o ministro. A reforma da previdência ultrapassou os limites que desafiam a previdência social de oferecer proteção social, com especial atenção para a saúde do trabalhador.
A partir de uma propaganda enganosa, é verdade, muitas pessoas apoiaram a reforma da previdência social e, paradoxalmente, se fizeram matar pela ilusão da igualdade meramente formal, sem falar nos que (ainda) acreditam que há um excesso de direitos sociais — adicionais de suicídio já são para muitos mais do que o trabalhador merece.
É um discurso que inverte os valores, os equilíbrios, as polaridades, e que postula: “A reforma contém uma mudança de paradigma em relação à disciplina então vigente“. É uma luz que divide, que aclara de um lado, mas deixa na sobra, ou lança para a noite, uma parte importante do corpo social. A função do Estado não se resume a promover a distribuição de bens (riquezas), mas também de riscos, o que significa proteger e cuidar da saúde do trabalhador. Apesar de vivermos numa sociedade de risco, existem grupos de trabalhadores mais vulneráveis, razão pela qual devemos selecionar os riscos, com vistas a um tratamento diferenciado (uma discriminação jurídica positiva). O tratamento diferenciado, seja qual for seu preço, é defensável precisamente onde o preço da igualmente (formal) tem sido o adoecimento ou a morte de trabalhadores.
A decisão toma como vetores de interpretação a “autocontenção judicial” e a “adequada consideração das capacidades institucionais e dos efeitos sistêmicos na tomada de decisões envolvendo a Previdência Social”. Segundo o ministro: “O juiz constitucional não deve ser prisioneiro do passado, mas militante do presente e passageiro do futuro“, logo, “[…] não caberia mais ao Judiciário impor sua visão do que seria a concretização ideal de determinado princípio“.
Ocorre que o passado também faz, na Constituição e jurisprudência do próprio STF, uma declaração a ser observada no presente, razão pela qual insistimos nos vetores interpretativos instituídos pelo novo CPC (artigo 926), a saber: a coerência e integridade do direito. A coerência significa dizer que, em casos semelhantes, “deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica”. Ou seja, somente “haverá coerência se os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mas, mais do que isto, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição”. Já a integridade “é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade” [6].
Enfim, a decisão do ministro relator segue numa defesa genérica da reforma da previdência social, sem, contudo, perquirir a compatibilidade das regras com a Constituição (entendida, à toda evidência, no seu todo principiológico), sem observar as próprias decisões sobre o tema, além das Convenções que diretamente tratam da saúde do trabalhador. O Brasil ratificou as Convenções da OIT a respeito do trabalho forçado: tanto a n. 105, que trata de sua abolição, quanto a nº 29 que designa como “trabalho forçado ou obrigatório” todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu por espontânea vontade. No seu artigo 21: “Não se aplicará o trabalho forçado ou obrigatório para trabalhos subterrâneos em minas”.
Seja qual for a abordagem, a solução do conflito passa, necessariamente, por uma interpretação dos artigos 7º, XXIII; 170; 193; 200, VIII; 201, § 1º; e 225, caput e V, para citar apenas esses. A Constituição de 1988 — antecipando a promulgação da Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho pelo Decreto 1.254, de 29 de setembro de 1994 — conferiu ao cidadão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nele compreendido o meio ambiente laboral (artigo 225); e determinou, como direito fundamental social dos trabalhadores, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (artigo 7º, inciso XXII), com vistas a conservar a “existência digna” do trabalhador (artigo 170, caput), bem assim, a condição da dignidade humana e a justiça social (artigo 193), devendo, até mesmo o SUS, “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido do trabalho” (artigo 200, inciso VIII). Isso tudo desemboca no artigo 201, § 1º, II, da CF.
Os artigos supramencionados conferem concreção aos princípios da prevenção, da igualdade, da proteção social, da vida, da saúde, da prevenção/precaução, da proporcionalidade (no sentido de insuficiência na proteção de um direito fundamental-social), da dignidade da pessoa humana, vedação do retrocesso, para citar apenas estes — que não foram revogados da Constituição. Uma vez atingindo um determinado nível de proteção do trabalhador/segurado, esse nível não pode ser diminuído [7]. Toda e qualquer redução na ordem de prevenção — contra acidentes e doenças laborais —, contida nos preceitos normativos vigentes, configura um retrocesso.
Os princípios da solidariedade, da seletividade e da distributividade permitem escolhas direcionadas para a prevenção e a proteção de determinadas categorias. As empresas são obrigadas, por lei, a contribuírem para o financiamento do benefício da aposentadoria especial, a partir dos acréscimos de 6%, 9% ou 12%, vale sublinhar: incidentes sobre a remuneração dos trabalhadores. Não se pode admitir o risco somente para fins arrecadatórios, e não para concessão da aposentadoria especial. É como já disse José Antonio Savaris: “Mas uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo” [8].
Não se trabalha apenas com a solidariedade prevista no artigo 3º, I, da CF/1988, mas é, como defende Ingo Wolfgang Sarlet, um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Para o autor, o conceito de dignidade da pessoa humana é calcado no substrato axiológico e conteúdo normativo, sendo que propõe um desdobramento da dignidade em quatro princípios, quais sejam o da igualdade, o da integridade física e moral, o da liberdade e o da solidariedade [9].
Eu gostaria de acrescentar a isso mais uma coisa. No espaço dos direitos fundamentais, é importante o controle constitucional das novas regras, mormente quando os atos de poder parecem não coincidir com a realidade, razão pela qual o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de acidentes de trabalho.
[1] RE 791961, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-206 DIVULG 18-08-2020 PUBLIC 19-08-2020.
[2] MENDES, René. Saúde e segurança no trabalho: acidentes e doenças ocupacionais. In: FERNANDES, Reynaldo (Org.). O trabalho no Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: LTr, 1995. p. 201.
[3] ARE 664335, relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015.
[4] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 116.
[5] STRECK, Lenio Luiz. O que é decidir por princípios? A diferença entre a vida e a morte. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 06 ago. 2015. Disponível aqui. Acesso em 21 mar. 2023.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC! Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 21 out. 2013. Disponível aqui:. Acesso em: 21 mar. 2023.
[7] AYALA, Patryck de Araújo. Deveres de proteção e o direito fundamental a ser protegido em face dos riscos de alimentos transgênicos. 2009. f. 264. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós- -Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC.
[8]: SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 81.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 123.
Diego Henrique Schuster é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).