As Diretas Já são, quanto ao tamanho, o maior movimento de massa da história brasileira. Diferentemente de outras manifestações, o foco dela não era ser contra algo, mas a favor. A reivindicação era clara — que o presidente da República fosse eleito por voto direto — e tinha amplo apoio social, quase sem divergências. Quarenta anos depois da campanha, o Brasil é, pela primeira vez, governado pela mesma união de forças que lutou pela redemocratização.
É o que afirma o livro O girassol que nos tinge: uma história das Diretas Já, o maior movimento popular do Brasil (Fósforo), do jornalista Oscar Pilagallo. O título da obra, lançada no início de março, foi tirado de um documento lido por artistas em 14 de fevereiro de 1984, em frente ao Spazio Pirandello, epicentro de manifestações culturais em São Paulo.
Com ou sem as Diretas Já, a ditadura militar (1964-1985) estava fadada a terminar. A economia estava em crise, com recessão e inflação em disparada. Na política, as disputas internas no governo vinham se acirrando, entre os defensores da abertura e os de endurecer o regime.
“Sem as Diretas, porém, o desfecho se encaminhava para a última etapa de uma autorreforma que dispensava a participação da sociedade, salvo pela indicação de sua vontade nas urnas em pleitos para outros níveis de governo, como para os poderes legislativos e os executivos estaduais”, afirma Pilagallo na apresentação à obra.
Embora a Emenda Dante de Oliveira (Proposta de Emenda Constitucional 5/1983) não tenha sido aprovada em um Congresso dominado por governistas, a campanha das Diretas Já atingiu o objetivo de fazer avançar a democracia no país, diz o jornalista.
O livro aborda o papel de diversos setores no movimento, como os políticos, os militares, a imprensa e os artistas. Também trata de atos específicos, como o inicial, ocorrido no Pacaembu, em São Paulo, e o “comício-monstro” da Candelária, no Rio de Janeiro.
Caso único
Para Oscar Pilagallo, a campanha das Diretas Já é um caso único na história do Brasil devido ao seu conteúdo, forma, tamanho, grau de consenso e natureza.
Quanto ao conteúdo, as Diretas foram mais focadas no que eram a favor (a redemocratização) do que contra (a ditadura), como costuma acontecer com a maioria das manifestações. A campanha também se diferenciou pela forma, com contribuições impactantes de artistas, compositores, militantes, atletas, chargistas, publicitários, poetas e jornalistas.
“A criatividade vazava por slogans matadores, músicas empolgantes, performances modernistas e manifestos poéticos, o que emprestava uma dimensão estética à questão política”, aponta o jornalista.
Quanto ao tamanho, as Diretas Já foram o maior movimento de massa da história brasileira, antes ou depois de 1984. E houve elevado grau de consenso com relação à Emenda Dante de Oliveira.
“À exceção da franja mais à direita da sociedade e dos poucos que gravitavam em torno do núcleo do poder, a população em peso apoiava a reivindicação. As divergências ficavam mais por conta das implicações políticas da logística da festa cívica.”
Isso tinha a ver com a natureza do movimento, cujo protagonismo coube às multidões, em contraste com o papel coadjuvante que desempenharam em outras encruzilhadas da vida nacional.
“As Diretas Já ocupam lugar central na história contemporânea do Brasil. Além de colocar o povo na equação que produziu o fim da ditadura, a campanha testemunhou a ascensão de lideranças que dominariam a cena política no período da redemocratização. Os dois presidentes mais longevos desde 1985 foram Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, assíduos frequentadores dos palanques das Diretas”, destaca o autor.
Segundo ele, “a longa cauda das Diretas Já se estende até os dias de hoje”. “Com exceção de Collor, que votou no candidato da ditadura no Colégio Eleitoral, e de Bolsonaro, que exalta a ditadura e seus torturadores, todos os outros presidentes desde Sarney estiveram associados à campanha, uns mais, outros menos”, afirma Pilagallo.
“Quase quarenta anos depois das Diretas, o Brasil é, pela primeira vez, governado pelo mesmo arco de forças que lutou pela redemocratização”, menciona o jornalista, citando a ampla coalização que elegeu Lula presidente em 2022.
Diferenças para outros protestos
Oscar Pilagallo aponta que, nas quatro décadas após as Diretas Já, os brasileiros voltaram às ruas em diversas ocasiões, em protestos cujos alvos foram, alternadamente, a esquerda e a direita no poder. Ele cita os atos do “Fora Dilma”, em 2015, “Fora Temer”, em 2016 e 2017, e “Ele não”, em 2018, contra o candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro.
“Tais atos, no entanto, não podem ser comparados à campanha pela redemocratização. Não tanto pela dimensão, que ficou aquém da marca das Diretas, mas porque remetiam à polarização da sociedade, enquanto em 1984 os comícios traduziam um consenso”, avalia.
As Jornadas de Junho de 2013 rivalizam, em tamanho e potência, com a campanha das Diretas Já. Porém, têm diferenças relevantes quanto aos atos pela redemocratização. As Diretas foram pacíficas, enquanto os atos de junho são lembrados por episódios de violência, tanto da atuação dos black blocs quanto da repressão policial, diz o jornalista.
Com relação à dinâmica, a campanha das Diretas começou de cima para baixo, a partir do Congresso, e com o passar do tempo ganhou um impulso em sentido contrário, de baixo para cima, com a pressão crescente da sociedade. De um jeito ou de outro, a ação era sempre vertical. Já em 2013, as manifestações se inscrevem no modelo horizontal resultante da comunicação imediata das mídias sociais.
“Se nas Diretas a população respondia a um estímulo inicial — a emenda Dante de Oliveira ou a ação coordenada dos governadores de oposição —, nas Jornadas foi a espontaneidade que prevaleceu”, analisa Pilagallo.
Talvez a maior diferença, conforme o autor, seja o fato de que as Diretas Já foram “focadas e propositivas”, enquanto as Jornadas de Junho foram “ambíguas e reativas”. A primeira campanha visava ao retorno das eleições diretas e ao fim da ditadura. Já a segunda começou se opondo ao aumento dos preços das tarifas de transporte público, avançou para a crítica à qualidade dos serviços públicos em geral, passou pelos protestos contra os gastos com a Copa do Mundo no Brasil e “finalmente responsabilizou a presidente Dilma Rousseff pelo conjunto de tudo o que se considerava errado no país”.
Ainda há diferenças quanto os resultados, de acordo com o jornalista. “Em 1984, plantou-se a semente da redemocratização. Em 2013, chocou-se o ovo da serpente do protofascismo”, cita, ressaltando que, nos dois casos, os efeitos — respectivamente, o fim da ditadura e a eleição de Jair Bolsonaro — não foram imediatos.
De todas as manifestações desde a redemocratização, analisa Oscar Pilagallo, as dos “caras-pintadas”, que pediam o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992, são as que guardam maior afinidade com a campanha das Diretas.
“Para começar, com um intervalo de apenas oito anos entre elas, pode-se supor que as mesmas pessoas, em grande parte, tenham estado nas ruas nas duas ocasiões. Provavelmente muitas crianças que foram com seus pais aos megacomícios pintaram a cara para depor Collor. A criatividade dos manifestantes, aliás, foi um traço comum a 1984 e 1992”, lembra.
“Além disso, nos dois casos, os atos públicos responderam a um estímulo externo que veio ao encontro de um anseio geral. No Collorgate, o papel de fagulha foi desempenhado sobretudo pela imprensa, que ajudou a destruir o ícone da moralidade pública que havia construído dois anos antes. Por fim, tanto nas Diretas como no impeachment de Collor houve certo consenso — no primeiro caso, desde o início; no segundo, à medida que a trama de mentiras e corrupção enredava o presidente.”
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.