Doação gestacional de corpo inteiro: o que é isso? — (parte 2)

continuação da primeira parte

Na primeira parte deste artigo, apresentou-se a controversa proposta da filósofa Anna Smajdor, da Universidade de Oslo, acerca da doação gestacional de corpo inteiro [1].

Nesta segunda parte abordam-se questões de natureza ética/moral e jurídica que a ideia suscita, sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro e a partir do pressuposto da viabilidade médica da prática sugerida pela filósofa.

Quando a vida termina?

Viu-se que a doação gestacional de corpo inteiro somente seria possível após a morte cerebral do indivíduo. E aqui tem-se a primeira questão a ser enfrentada: a definição do momento de morte para fins jurídicos.  

Divergências podem se instalar se forem levadas em consideração crenças religiosas. Ordenamentos jurídicos distintos podem adotar diferentes marcos definidores do óbito do indivíduo.

No Brasil, o artigo 6º, do CC, anuncia o fim da pessoa natural com a morte, porém não esclarece o que se deve entender por esse fenômeno, tampouco qual o momento de sua caracterização.

Por algum tempo, o fenômeno morte foi entendimento como a parada total das funções vitais do organismo. Mas a realidade dos transplantes de órgãos e tecidos provocou mudança nessa concepção e a medicina legal hoje reconhece dois conceitos de morte: a cerebral (ou encefálica) [2] e a circulatória. A primeira caracteriza-se pela cessação da atividade elétrica do cérebro; a segunda define-se pela parada cardíaca irreversível [3].

O artigo 3º, da Lei nº 9.434/97 (que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante) condiciona qualquer transplante ao diagnóstico da morte encefálica e atribui ao Conselho Federal de Medicina a competência para estabelecer os critérios a serem observados. A regulamentação consta na Resolução CFM nº 2.173/2017, a qual caracteriza a morte encefálica como a cessação das atividades corticais e do tronco encefálico de forma irreversível [4].

Há razoável consenso na comunidade médica de que a morte encefálica traduz-se na morte biológica do organismo e, assim, na morte da pessoa [5]. E o Direito brasileiro, no artigo 3º, da Lei nº 9.434/97, ao condicionar a retirada de órgãos para transplante à constatação da morte encefálica, delimita que, a partir desse momento, já não há mais pessoa. Passa a existir apenas um corpo, razão pela qual, havendo o consentimento, os órgãos podem ser retirados.

Interessante observar que a morte encefálica pode não corresponder à cessação imediata de todas as funções do organismo. Em verdade, a prática dos transplantes de órgãos só se faz possível porque, apesar da morte encefálica constatada, mantém-se a circulação e os batimentos cardíacos empregando-se recursos artificiais como a ventilação mecânica.

Ao olhar do leigo, pode parecer não se tratar de uma situação efetiva de óbito. Mas engano não há: a ausência de vida biológica é tão induvidosa que o próprio Conselho Federal de Medicina desobriga os médicos de manterem os suportes terapêuticos a partir da constatação da morte encefálica em caso de não-doadores de órgãos (Resolução CFM nº 1.826/07, artigo 1º).

A proposta de Smajdor não encontra obstáculo, no Brasil, quanto à definição do momento de morte, como poderia ser caso o critério adotado fosse exclusivamente a morte circulatória.

O corpo post-mortem

Se, no Brasil, a morte encefálica põe fim à existência da pessoa sob a perspectiva jurídica, o corpo desprovido de vida (cadáver) não se insere na órbita da pessoalidade; passa, então, à seara da simples materialidade, tornando-se uma coisa?

A natureza jurídica do cadáver desde há muito desperta discordância doutrinária. Pontes de Miranda [6] já destacava a existência de correntes de pensamento considerando o cadáver como “resto da personalidade, portanto não-coisa” (K. E. Cramer, J. Kohler, J. Rausnitz, Otto Von Gierke); como coisa extra commercium (H. Dernburg); como res nullius (Karl Gareis) ou como res nullius se não passada aos herdeiros (E. I. Bekker). Para o próprio Pontes de Miranda, “coisa fora do comércio, tal o que é cadáver” [7], porém com a ressalva de que poderia entrar em comércio (como o caso de múmias, esqueletos e peças com ossos humanos) [8].

A despeito da peculiaridade do cadáver, tem prevalecido que sua categorização dogmática melhor se realiza a partir da ótica dos bens, das coisas, aplicando-se os institutos dos direitos reais, como a propriedade [9].

Estudo recente propôs entender o cadáver sob a lente da quase-propriedade [10], ou seja, reconhecendo-se a incidência das faculdades inerentes ao direito da propriedade, porém de modo limitado, à vista de restrições impostas pelo próprio ordenamento jurídico.

A categorização do corpo sem vida como coisa e o reconhecimento de seu enquadramento como uma quase-propriedade resolve um problema teórico. Por outro lado, desperta um questionamento prático: quem é titular dessa quase-propriedade?

Meu corpo, minhas regras?

Há quem defenda que o Direito deve proteger o corpo humano após a morte para lhe dar uma destinação condigna e que o direito de fazê-lo “respeita aos parentes do morto, tratando-se de um direito familiar” [11] ou que “ele encerra um vínculo todo próprio com a sensibilidade familiar dos sucessores, que sobre ele tem titularidade e direitos, direitos esses relacionados a uma série de aspectos da potência sensitiva dos herdeiros, que tem interesses e direito de destiná-lo aos fins que atendam às suas convicções religiosas e de memória familiar” [12].

Defensores de uma espécie de estatização do corpo, por outro lado, buscam retirar qualquer aspecto de autonomia, seja do sujeito, seja da família, sobre destinação do cadáver e o submetem totalmente aos interesses públicos [13].

Por fim, a quase-propriedade do corpo sem vida é atribuída a ninguém menos que à pessoa que um dia o habitou. Uma relação simbiótica entre direito da personalidade e direito de propriedade assegura ao sujeito a possibilidade de disposição limitada do corpo após a morte. Um direito ao próprio corpo, sobre o qual vale a vontade individual, a ser respeitada pela coletividade [14].

Ao se analisar o artigo 14, do CC, constata-se a validação, pelo legislador, da disposição altruísta do corpo (e dos órgãos) pós-morte. Reforça a percepção de que definir o destino do corpo incumbe ao sujeito o artigo 1881, do CC, ao permitir que toda pessoa capaz de testar faça disposições especiais sobre seu enterro (valendo-se de um codicilo).

O Superior Tribunal de Justiça já validou a vontade de um indivíduo de ter seu corpo criopreservado. Litigaram, de um lado, duas filhas do falecido que pretendiam enterrá-lo em solo brasileiro, e de outro, terceira filha que pretendia fazer valer a vontade do pai e manter o seu cadáver criopreservado [15].

O acórdão ressalta que o STJ já deu sinais de valorização das disposições de última vontade do falecido em detrimento de formalidades testamentárias; reconhece a existência do direito ao cadáver; afasta o entendimento de que caberia ao Estado determinar a destinação do cadáver, pois “essa concepção não se amolda ao ordenamento jurídico, que disciplina a matéria no âmbito privado e prestigia a autonomia tanto no aspecto patrimonial (…) quanto extrapatrimonial (…)” e valoriza a lógica do direito privado e da autonomia na interpretação dos direitos da personalidade, pelo que a escolha feita pelo particular quanto à destinação de seu cadáver, ausente vedação legal, deve prevalecer.

Dúvida poderia surgir quanto à prevalência da vontade do indivíduo em relação à destinação de seu cadáver quando se observa a previsão do artigo 4º, da Lei nº 9.434/97, a qual condiciona a remoção dos órgãos ao consentimento de familiares do falecido, contrariando a previsão do artigo 14, do CC.

Contudo, já se construiu solução interpretativa para o aparente conflito. O enunciado 277, aprovado na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal registra que “o artigo 14 do Código Civil, ao afirmar a validade de disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade de familiares, portanto, a aplicação do artigo 4º da Lei nº. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”.

Admitindo-se que o direito ao cadáver permite ao indivíduo escolher a destinação de seu corpo após a morte e que a doação gestacional de corpo inteiro tenha sido escolha livre, sem contrapartida financeira para o doador ou terceira pessoa, a proposta de Smajdor encontraria respaldo jurídico no artigo 14, do CC, haja vista se tratar de ato altruísta. A manifestação de vontade individual, mantido o entendimento externado pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.693.718/RJ, teria eficácia vinculante, tanto quanto vinculam disposições testamentárias patrimoniais.

Ainda assim é possível questionar se o prolongamento de funções vitais de um organismo diagnosticado com morte encefálica com a exclusiva finalidade de transformá-lo em barriga de aluguel seria aceitável.

Acima se disse que a relação estabelecida entre o titular e o cadáver é de quase-propriedade. Isso significa que há limitações à disposição, como há em relação à propriedade pura. O exercício das faculdades inerentes ao direito de propriedade está condicionado ao respeito ao ordenamento.

No julgamento do REsp nº 1.693.718/RJ, consignou-se que o respeito ao ordenamento não engloba apenas a lei, “mas também os costumes e princípios que ele encerra, visto que são disciplinadores das relações em nossa sociedade”.

A avaliação feita pelo STJ acerca da criopreservação do cadáver filtrou a pretensão sob a lentes da não ofensa à moral ou aos bons costumes. Julgou-se que a situação não implicava em patrimonialização do corpo ou sua exposição pública, que seria incompatível com as normas sanitárias e de saúde pública. Por fim, considerou-se que o pedido era compatível com “o devido respeito aos restos mortais humanos” e que as “as condições a que está submetido [o corpo] são condizentes com o status jurídico do corpo morto, merecedor de respeito e de certa discrição, compatíveis com o pacífico descanso que, de um modo geral, as culturas ocidentais conferem aos seus mortos”.

É possível argumentar, pois, que sob uma perspectiva conglobante a sugestão de Smajdor implica em violação à exigência de respeito ao corpo morto, pois o instrumentaliza, o reifica de maneira evidente; converte o suporte da pessoalidade e personalidade humanas em simples incubadora e ignora a tradição e os costumes da sociedade brasileira em relação ao tratamento destinado a seus mortos. Dessa forma, deveria ser considerada contrária aos bons costumes e, portanto, proibida.

A doação gestacional de corpo inteiro talvez nunca se torne realidade; entretanto, a julgar pela velocidade de evolução da Medicina e da potencialidade de intervenção na vida e corpo humanos viabilizada pelos avanços tecnológicos a proposta não é algo a ser simplesmente descartado como não factível.

A forma como o ser humano se relaciona com seu próprio corpo vem mudando; o próprio critério de constatação da morte passou por alguma transformação. É preciso estar aberto ao debate e enfrentar os questionamentos jurídicos que certamente surgirão. Espera-se ter minimamente contribuído nesta coluna para o esclarecimento da questão.

*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

 


[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado: parte geral: bens; fatos jurídicos. Atual. Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: RT, 2012, t. II, p. 67.

Éverton Willian Pona é juiz de Direito no estado de São Paulo, doutorando em Direito Civil pela FDUSP, mestre em Direito negocial pela UEL-PR e especialista em Direito Constitucional Contemporâneo pelo IDCC/Unibrasil.

Consultor Júridico

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