“[…] é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira” [1].
Diógenes procurava pelas ruas com a sua lanterna um homem justo [2]. A justiça talvez seja a maior busca nas sociedades humanas. Todos se abalam, ou quase todos, quando deparados com uma violação ao que consideramos necessariamente tutelado em nossa sociedade, existindo na violação de bens jurídicos relevantes, nosso maior empenho em frustrar a ação de violadores.
O Direito Penal como a mais poderosa arma que dispõe o Estado para conter as condutas danosas e pacificar a sociedade, muitas vezes se mostra obsoleto diante das novas formas de delinquência.
A expansão do Direito Penal, com a vinda ao mundo jurídico de novos tipos penais; a constante tipificação de ações consideradas de perigo abstrato; a defesa de teorias cada vez mais fundadas no funcionalismo, nos apontam uma tendência futura, onde o combate a crimes complexos poderia exigir um rebaixamento de garantias [3].
O professor Silva Sanches, já nos ensina, com sua teoria das velocidades do Direito Penal, que a expansão de novos tipos de delinquência traria a existência de uma nova forma de se aplicar o Direito Penal, que seria o Direito Penal de Terceira Velocidade, com um menor apego a garantias.
Já o professor Günther Jakobs defende a existência de um Direito Penal do “Inimigo”, que seria aplicado a aqueles que cognitivamente não aceitariam submeter-se às regras elementares de convívio em sociedade. Sendo assim, haveria uma divisão do Direito Penal: do Cidadão — com respeito aos direitos e garantias constitucionais; e do Inimigo — com a flexibilização de direitos e garantias constitucionais e legais [4].
Com esta introdução, podemos dizer, que segundo os autores citados, a expansão de novas formas de criminalidade exigiria novas maneiras de combate, com a flexibilização de garantias individuais, com o objetivo de proteger a sociedade.
O direito à livre expressão é uma das maiores garantias dos Estados democráticos, sendo o alicerce da formatação das sociedades livres, pois onde não existe liberdade de manifestação, não existe liberdade de mudança, contendo-se a evolução.
A censura é certamente a maior arma dos Estados autocráticos, caracterizando-se como uma violência ao intelecto que é aprisionado pelo silêncio, mantendo-se assim o status quo, buscando impossibilitar evolução e mudança [5].
A liberdade de expressão é um direito inalienável nos Estados democráticos, todavia, devemos nos indagar se esse direito é absoluto, ou relativo, devendo ser observado em consonância a outras garantias, para que assim seja preservado.
Um conceito de democracia tem sido por diversas vezes utilizado atualmente, e que com bases na teoria da democracia de militância descrita por Karl Loewenstein em seu artigo científico “Militant Democracy and Fundamental Rights”, se fundamenta a necessidade nos dias atuais da existência de um conceito de “democracia defensiva”, que seria basicamente a utilização de instrumentos do Estado, como mecanismos de defesa do próprio regime democrático, contra os excessos na utilização de direitos e garantias sustentados pelos próprio sistema. Seria a democracia defensiva um freio, para que excessos não coloquem em risco a própria democracia [6].
Nesses dias, verificamos uma crescente utilização do ciberespaço, por meio das plataformas de redes sociais e aplicativos de comunicação, para o cometimento de uma vária gama de crimes, inclusive aqueles contra o próprio regime democrático, com a propagação de notícias falsas com o objetivo de manipular a população quanto a temas que sustentam a base do sistema, como a lisura das eleições por exemplo.
Essas ações orquestradas que utilizam as redes sociais e os aplicativos de comunicação, beneficiando-se da rapidez e alcance das informações e amparando-se na garantia da liberdade de expressão para difusão de notícias falsas, causam e já causaram grandes lesões a bens jurídicos relevantes, como individualmente a honra de diversas pessoas, e coletivamente a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, como presenciamos em 8 de janeiro de 2023 [7].
Diante de questões tão graves, com violações sistêmicas a bens jurídicos muito relevantes, discute-se a necessidade de ação do Direito Penal como ultima ratio, para que se possa conter tais avanços criminosos. Por esta razão, o Congresso Nacional discute já há algum tempo a necessidade de tipificação penal para punir a propagação de noticias falsas, as conhecidas fake news.
O Poder Legislativo tem se preocupado com essa questão, sendo que no Senado, até pouco tempo, estavam em análise 17 propostas com o objetivo de tornar crime a criação e a distribuição de notícias falsas na internet e nas redes sociais.
O PL 632/2020 busca penalizar as autoridades públicas que divulgarem fake news, as quais poderão responder por crime de responsabilidade.
Já o PL 3.813/2021 propõe incluir no Código Penal, entre os crimes contra a paz pública, “criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante”. O tema é semelhante ao PL 5.555/2020, que torna crime deixar de se submeter, sem justa causa, à vacinação obrigatória em situação de emergência de saúde pública, e propagar notícias falsas sobre vacina [8].
São várias as propostas de tipificação da conduta de criar ou divulgar notícias falsas, mas para o presente artigo nos ateremos ao PL 3.813/2021, que no caso estabelece um crime de perigo ou mera conduta, ou seja, sem a necessidade de comprovação de lesividade concreta, atribuindo o dolo apenas ao conhecimento da falsidade da notícia, ou seja, caso divulgue notícia que desconhece ser falsa, estaríamos diante de uma atipicidade material da conduta.
Os verbos utilizados pelo PL 3.813/2021, “criar” ou “divulgar”, demonstram uma intenção do legislador de antecipar barreiras, impedindo a divulgação do conteúdo, penalizando o ato de criar o conteúdo falso, mesmo que não o divulgue. Ao nosso ver, o ato de criar “notícia falsa”, sem a demonstração de intenção de divulgá-la, classificaria o tipo penal como sendo de perigo em abstrato, todavia, entendemos que no caso das “notícias falsas” uma punição somente seria legítima com a demonstração de potencial lesividade, ou o dolo específico de criar o conteúdo para difundi-lo, mesmo que seja impedido por situação alheia a sua vontade.
É necessária que a tipificação penal respeite minimamente as garantias individuais de liberdade de expressão, já que a nosso ver a mera criação de conteúdo sem a sua divulgação não coloca em risco bem jurídico tutelado, não atraindo assim a incidência do direito penal, todavia, não impedindo a atuação de outros ramos do direito.
Demonstra o projeto de inclusão desse tipo ao Código Penal a deliberada intenção de impedir a divulgação de todo e qualquer tipo de notícia falsa, penalizando os idealizadores de tais notícias, que muitas vezes estão ocultos ao público em geral, mas que com o aparato estatal destinado a persecução penal virão a “luz” e serão devidamente punidos.
A questão de tipificação das fake news nos coloca no olho do furação do fervoroso debate entre eficácia penal e garantia individual, no qual o legislador deve friamente sopesar os alcances do tipo penal incriminador, para que possa com a sua existência defender bens jurídicos relevantes, e ao mesmo tempo resguardar garantias individuais, fazendo com que garantias não sejam usadas como escudo por delinquentes, e que a eficiência do tipo penal seja alcançada com a punição daqueles que realmente ultrapassando seus direitos violem bens jurídicos individuais ou coletivos, mas que nunca seja utilizada como meio de promoção de censura, sendo este verdadeiro dilema que requer toda nossa atenção.
[3] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.
Sidney Duran Gonçalez é advogado criminalista, palestrante, escritor, especialista em teoria jurídica do delito, mestre em Direito Penal e doutorando em Direito Penal, todos pela Universidad de Salamanca (Espanha).