Eleições de 2022 e dois aprendizados sobre desinformação

Todas as eleições se revestem de importância única na experiência democrática de um país. Cada qual, porém, apresenta demandas e desafios típicos do contexto social e político em que são realizadas. As eleições de 2022 foram especialmente peculiares e desafiadoras, cabendo uma reflexão sobre alguns entraves e dificuldades ali vivenciados, com vistas a evitar que alguns equívocos  se repitam nos pleitos vindouros, especialmente no que toca à desinformação, respeito às instituições democráticas e liberdade de expressão.

No campo normativo, a problemática foi o vácuo legal. Não havia lei que regulamentasse as condutas das plataformas digitais. O PL 2.630 (Das fake news) gerou muitas polêmicas e ainda está em debate no Congresso, sem que haja sequer certeza sobre sua votação e aprovação.

Permanece até hoje um cenário de autorregulamentação com alguma mitigação (especialmente a realizada pela Resolução TSE nº 23.714/2022). Cada plataforma lida com a desinformação de acordo com suas políticas internas e termos de uso, o que nem sempre está alinhado à proteção do Estado democrático de Direito, pois seus negócios, visando prioritariamente ao lucro, são resistentes a modificar o modelo de sucesso implementado. O caso do Twitter e ataques às escolas ilustra a oposição das redes em retirar do ar conteúdos virais sob a justificativa de que não são contrários às suas diretrizes, independente de seu teor.

Não se pode esquecer, todavia, que os direitos fundamentais devem ser respeitados também em sua eficácia diagonal, quando temos grandes atores privados de um lado e os indivíduos do outros.

Empresas estão obrigadas a obedecer padrões mínimos de direitos humanos na condução de seus negócios. Shoshana Zuboff na obra Capitalismo de Vigilância bem lembra que a preocupação com o controle da vida das pessoas por parte do Estado tirou a atenção da possibilidade de atores privados exercerem o mesmo controle, algo que está efetivamente acontecendo quando se fala de liberdade de expressão e desinformação.

A moderação de conteúdo permanece sendo feita de maneira nada transparente, sem possibilidade de exercício do contraditório. A coleta de dados também é opaca, o tratamento desses dados é desconhecido. Não se sabe a política de descarte das informações reunidas e tampouco como seu uso acontece. O caso Cambridge Analytica, conquanto citado diversas vezes como perigoso precedente, parece ter caído em esquecimento cedo demais.

Se a desinformação viraliza por conta de seu apelo emocional, o que acaba burlando a racionalidade e fazendo as pessoas agirem pelos sentimentos, sobretudo o medo e a raiva, as big techs tendem a manter o conteúdo no ar pelo engajamento gerado. Essa conduta acaba por vilipendiar a liberdade de expressão duplamente: pelo engano causado que faz com que com eleitores formem sua vontade com base em uma falácia e pelo controle artificial do debate público gerado pela mensagem enganadora.

Ainda no campo normativo, o Novo Código Eleitoral (PLP 112/2021) também não foi aprovado e está no Senado aguardando o debate. Ressalta-se que há dispositivos específicos no projeto para a desinformação na propaganda eleitoral, criando figuras típicas próprias:

Divulgação de fatos inverídicos

Art. 869. Divulgar ou compartilhar, no âmbito da propaganda eleitoral, a partir do início do prazo para a realização das convenções partidárias, fatos sabidamente inverídicos para causar atentado grave à igualdade de condições entre candidatos no pleito ou embaraço, desestímulo ao exercício do voto e deslegitimação do processo eleitoral:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem produz, oferece ou vende vídeo referente aos fatos descritos no caput desse artigo.  § 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se o crime: I – é cometido por intermédio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou rede social, ou é transmitido em tempo real; II – envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.

Art. 870. Produzir, estruturar, oferecer, financiar, usar ou adquirir, ainda que gratuitamente, serviços ou banco de dados aptos a disseminar informação por quaisquer meios, fora das hipóteses e limites previstos na legislação eleitoral, independentemente do conteúdo das mensagens divulgadas ou que se pretende divulgar. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Se a conduta é praticada com a finalidade de disseminação de desinformação, a pena será acrescida de metade a 2/3 (dois terços).

Na seara jurisprudencial, criou-se um certo precedente estável aplicado mais de uma vez em processos do pleito de 2022: o artigo 57-D, da Lei Geral das Eleições, que pune o anonimato nas redes, também pode ser utilizado para hipóteses de desinformação. A multa cominada varia entre R$ 5 mil e R$ 30 mil.

O leading case foi a RP 0601754-50.2022.6.00.0000, de autoria da Coligação Brasil da Esperança, tendo como representado Nikolas Ferreira de Oliveira e relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Pontua-se trecho da decisão do relator, referendada pelo plenário da casa por seis votos a um:

Não se ignora que, ao interpretar o dispositivo, a jurisprudência desta CORTE, para eleições anteriores, firmou o entendimento no sentido de que a multa nele prevista é restrita à hipótese em que a propaganda é divulgada por pessoa não identificada, ou seja, “não sendo anônima a postagem de vídeo em página da rede social Facebook (na qual se veiculou vídeo em tese ofensivo a candidato), descabe sancionar o agravante com base no referido dispositivo” (AgR-REspe 76-38, Rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 2/4/2018). No mesmo sentido: Rp. 0601697-71, Rel. Min. SÉRGIO BANHOS, DJe de 10/11/2020; AREspe 0600604-22, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 9/9/2022; AgR-REspe 0600603-37, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 4/4/2022.

Nada obstante, tendo em vista o grave contexto de propagação reiterada de desinformação, com inegável impacto na legitimidade das eleições, deve-se proceder à reinterpretação do dispositivo, de forma a melhor ajustar-se à finalidade da JUSTIÇA ELEITORAL, especialmente deste TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no combate às fake news na propaganda eleitoral.

Realmente, a partir da leitura do dispositivo, não se mostra viável depreender que o ilícito se restringe à hipótese de anonimato, tornando insuscetíveis de punição outros abusos na livre manifestação de pensamento.

O teor da norma, na verdade, embora especialmente relacionado a atos ocorridos por meio da internet, apresenta teor extremamente semelhante ao disposto no art. 5º, IV, da Constituição Federal – “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” –, o qual, como se sabe, não consagra a liberdade de expressão como direito absoluto e nem limita os excessos às hipóteses de anonimato, razão pela qual abusos no exercício desse direito fundamental não se mostram imunes à sanções impostas pelo ordenamento jurídico.

Portanto, para os próximos pleitos, ainda que não tenhamos normas específicas sobre desinformação aprovadas no Congresso, a Justiça Eleitoral chancelou a aplicação do artigo 57-D da Lei Geral das Eleições para punir a desinformação eleitoral. Os juízes eleitores de primeira instância certamente enfrentarão o tema no pleito municipal de 2024.

É pertinente ainda lembrar o entendimento já firmado pela Corte de que a divulgação de desinformação, a depender das nuances do caso concreto, pode ser considerada para fins de abuso dos meios de comunicação social, gerando inelegibilidade e possível perda do mandato (caso Francischini).

Dois aprendizados ficam: a necessidade de atualização urgente da legislação para que a desinformação em contextos políticos seja combatida, e a prontidão da Justiça Eleitoral para zelar pela democracia e punir aqueles que se valem da desinformação. Os precedentes surgiram justamente como consequência do vácuo legal e da necessidade de se fazer algo, sob pena de se ver a democracia desmoronar. Casos levados à apreciação jurisdicional serão decididos. E os atores, especialmente o legislador, têm a chance de fazer valer sua vontade. O silêncio será ocupado pelo Judiciário em sua função de protetor dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional.

Elder Maia Goltzman é doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Membro da Abradep e Caoste. Pesquisador, professor e autor de Liberdade de Expressão e Desinformação em Contextos Eleitorais, pela Editora Fórum.

Consultor Júridico

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