Em pauta, por ocasião do Recurso Especial nº 2057181/SE, a possibilidade de superação do enunciado nº 231 da Súmula de Jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça). “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” Sob a ótica do artigo 65 do Código Penal, além de outros institutos despenalizadores impressos no ordenamento jurídico pátrio (v.g. acordo de não persecução penal, colaboração premiada), questiona-se se a orientação sumular revela afronta ao princípio da individualização da pena e da legalidade.
Vozes encamparam a inexorável necessidade de revisão do posicionamento (overruling) [1]. Convocou-se audiência pública para discussão da temática (em 17 de maio de 2023).
Por necessário, eis o texto nodal a ser interpretado:
“Código Penal
Circunstâncias atenuantes
Artigo 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena.“
No condão de contribuir ao debate, algumas peculiaridades devem ser destacadas.
As teses favoráveis à revisão do enunciado possuem uma característica comum: a preferência pela interpretação gramatical do vocábulo sempre. Havendo circunstância atenuante na segunda fase dosimétrica de Hungria, mesmo com a pena base fixada em seu mínimo patamar, a redução seria de rigor.
Chancelar tal linha de raciocínio é mitigar o papel do Poder Legislativo no constitucional princípio da individualização da pena, que recebeu especial atenção do poder constituinte originário.
Da leitura da Lei Maior, tem-se:
“Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
(…).”
Enaltecendo as fases da individualização, entoa a doutrina pátria:
“A palavra individualização refere-se ao individuo, o ser humano em relação a sua espécie. Individualizar é singularizar. A individualização da pena é feita em três planos distintos (fases).”
O primeiro plano é legislativo. A CF em seu artigo 5º XLVI, prevê que “a lei regula- rá a individualização da pena”. O constituinte remeteu ao legislador ordinário a tarefa de individualizar as penas de privação ou restrição de liberdade, de perda de bens, de multa, de prestação social alternativa e de suspensão ou interdição de direitos. Além das penas acima enumeradas, o legislador infraconstitucional tem a possibilidade de cominar outras penas.
Exemplo de outra pena criada pelo legislador ordinário, conforme permitido pela Carta Magna, é a pena de advertência sobre os efeitos das drogas prevista no artigo 28, inciso I, da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), em caso de aquisição, de guarda, de ter em depósito, de transportar ou de trazer consigo droga para uso pessoal. Esta pena de advertência sobre os efeitos das drogas, que não tem semelhança no CP, não é privativa ou restritiva de liberdade, tampouco de prestação social alternativa, suspensiva ou de interdição de direitos.
Ao legislador é vedado individualizar a pena de morte em tempo de paz, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou penas cruéis, em conformação com as proibições constitucionais feitas no inciso XLVII do artigo 5º da CF.
O legislador não pode prever pena imprescritível. A regra é da prescritibilidade das penas. Há duas exceções que estão no artigo 5º da CF. São imprescritíveis a prática do racismo (inciso XLII), crimes previstos na Lei nº 7.716, de 05.01.89, e a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado de Direito (inciso XLIV).
Outro aspecto é que o legislador individualiza a pena em abstrato para cada infração penal, quanto à qualidade de pena, de prisão ou de multa, determina a quantidade da pena, no caso de pena privativa de liberdade, o tempo mínimo e o máximo de tempo de prisão, se for pena de multa os valores a serem pagos em dinheiro. Pode, ainda, o legislador estabelecer requisitos para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos [2].
A individualização da pena tem sua gênese já na discussão legislativa, quando da eleição dos parâmetros mínimos e máximos. Vale dizer, sem prévia aprovação da lei, seguindo-se o devido processo legislativo constitucional, não há sequer cogitar da aplicação da pena. Logo, as demais fases desenvolvidas (judicial e judicial executória) são balizadas pela atuação legiferante.
Nesse contexto, indaga-se: a isolada interpretação da palavra sempre tem o condão de mitigar a limitação mínima da pena (individualização da pena) na fase judicial? A resposta negativa é a única a se coadunar com o princípio da vox populi (verdadeiro exercício da representatividade democrática no momento da tipificação penal). Não é demais relembrar que o princípio da proporcionalidade também é protagonista na discussão legislativa, servindo de norte também para a eleição da sanção mínima.
Outro reflexo da interpretação gramatical isolada é se descuidar da real percepção da técnica legislativa empreendida.
Numa análise histórica, vê-se que o artigo 59 do Código Penal de 1969 (que sequer teve sua vigência avivada) traduzia a necessidade de observância do intervalo legal:
“Artigo 59. Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar o quantum, deve o juiz fixá-lo entre um quinto e um têrço, guardados os limites da pena cominada ao crime.”
Aliás, tal linha de entendimento já foi adotada pelo Tribunal da Cidadania por ocasião do Tema Repetitivo nº 190, em que se cunhou a seguinte tese:
“O critério trifásico de individualização da pena, trazido pelo artigo 68 do Código Penal, não permite ao Magistrado extrapolar os marcos mínimo e máximo abstratamente cominados para a aplicação da sanção penal.”
Na norma vigente, não se descuida que o vocábulo sempre também foi empreendido na tratativa das circunstâncias agravantes:
“Circunstâncias agravantes
Artigo 61 – São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime.”
Ao se valer da limitação da aplicação da pena máxima na segunda fase dosimétrica, doutrina e jurisprudência invocam justamente o princípio da legalidade (pena máxima cominada) sob o viés do paradigma adotado pelo legislador ordinário. Ao juiz, pois, não é dado o poder decisório de fixação da pena para além do legislado. Nem mesmo a utilização de idêntica expressão (sempre) autoriza uma interpretação gramatical em sentido contrário. E assim também deve ser feito em relação à pena mínima.
O rompimento da barreira interpretativa advinda da superação do enunciado sumular acabará, invariavelmente, por reverberar na edição de novas normas penais. É que o legislador ordinário, no contexto da separação harmônica entre os poderes, ao indicar a existência de uma sanção mínima, espera (e merece) respeito à lei editada. Tal expectativa se dá desde da edição da Constituição de 1988 (e até mesmo anteriormente). Com isso não se está a afastar a hipótese de controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.
Sabedor da hipótese de pena concreta aquém do mínimo legal já na segunda fase e num infeliz contexto de hiperinflação de leis penais incriminadoras, o legislador ficará tentado a adotar a técnica de aumento significativo da pena mínima e a redução do intervalo de aplicação da pena.
No quadro emoldurado, ter-se-á um efeito colateral ao princípio da intervenção mínima e da ultima ratio.
Para além da mitigação da função legislativa na individualização da pena, tem-se que o rompimento da orientação sumulada trará incertezas de ordens práticas. No ordenamento jurídico pátrio, a pena mínima é utilizada como critério legal para o desenvolvimento de alguns institutos.
Cita-se:
“Suspensão condicional do Processo
Lei nº 9.099/95:
Artigo 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (artigo 77 do Código Penal);
Acordo de Não Persecução Penal
Código de Processo Penal:
Artigo 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente.”
As indigitadas medidas despenalizadoras dependem genuinamente da pena mínima para a aplicação. Ocorre que a superação do enunciado acabará por dar gênese a um questionamento: após a cognição ampla, profunda e exauriente e o advento da sentença penal condenatória, valendo-se da aplicação da pena abaixo do mínimo legal, teria o acusado (rectius, condenado) o direito adquirido ao fornecimento da medida despenalizadora (desde que preenchidos os demais requisitos legais, obviamente)?
A situação é deveras semelhante ao que acontece quando há a desclassificação do crime ou parcial procedência da pretensão punitiva, pontuando-se o consolidado entendimento jurisprudencial:
“PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. ABSOLVIÇÃO. DESCLASSIFICAÇÃO EM SEGUNDO GRAU PARA POSSE DE ARMA DE USO PERMITIDO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. SÚMULA 337/STJ. SANÇÃO CORPORAL SUBSTITUÍDA POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. ARTIGO 77, III, DO CP. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE SURSIS. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. FLAGRANTE ILEGALIDADE NÃO EVIDENCIADA. WRIT NÃO CONHECIDO.
(…)
2. Conforme a dicção da Súmula/STJ 337, ‘é cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva’. Diante disso, deve ser aberto prazo para o Ministério Público, a fim de que verifique a possibilidade de oferecimento dos benefícios previstos na Lei n. 9.099/1995, não cabendo ao julgador tal análise, uma vez que trata de prerrogativa do órgão ministerial.
(…)” (STJ – HC: 455560 MG 2018/0151723-3, relator: ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/08/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/08/2020).
Ora, o legislador, ao imprimir a pena mínima, tem o afã justamente da escolha da aplicação ou não de certas medidas despenalizadoras. Romper a barreira com a permissão da dosimetria abaixo do mínimo legal na segunda fase é desrespeitar a mens legislatoris e a mens legis. Dar-se-á margem para a aplicação destes institutos em casos não almejados quando da gênese normativa.
E valer-se da argumentação de que as medidas dizem respeito tão somente a penas cominadas é orientar-se por uma interpretação seletiva e ocasional: “devo respeitar o limite mínimo para a aplicação dos institutos despenalizadores, mas não para a aplicação da sanção penal propriamente dita”. Teratologia, pois.
Além disso, outros institutos encontram na pena mínima sua existência não genuína, mas são por ela diretamente influenciados. Exemplificadamente:
“Código Penal
Penas restritivas de direito
Artigo 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
(…)
Requisitos da suspensão da pena
Artigo 77. A execução da pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, poderá ser suspensa, por dois a quatro anos, desde que:
A mensagem legislativa no momento da individualização da pena mínima em abstrato é hialina: em determinados crimes, institutos como o em comento são inaplicáveis.”
Quanto à existência de circunstância especial de diminuição de pena para aquém do mínimo cominado, o assunto é inserido contextualmente no debate legislativo. Ou seja, ao legislador é dada a previsibilidade da hipótese, refletindo, inclusive, na aplicação dos institutos que, genuinamente ou não, dependem da pena mínima. O mesmo não acontece com a fixação da pena na segunda fase da dosimetria judicial. Logo, são situações que não podem ser equiparáveis por meio da interpretação analógica.
Passando-se a algumas considerações finais, tema da ordem do dia é o julgamento das ADPFs 964, 965, 966 e 967 pelo Supremo Tribunal Federal. Ali, discute-se a nulidade do decreto presidencial que concedeu indulto ao ex-deputado federal Daniel Silveira, condenado pela Corte à pena de oito anos e nove meses pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo.
A eminente ministra presidente e relatora Rosa Maria Pires Weber, ao bater pela inconstitucionalidade do ato administrativo, destacou em seu voto proferido em 03 de maio do corrente ano:
“Não se pode aceitar a instrumentalização do Estado, de suas instituições e de seus agentes para, de modo ilícito e imoral, obter benefícios de índole pessoais, sob pena de subversão dos postulados mais básicos do Estado de Direito.
(…)
Atribuir aos demais poderes competência para revisar ou desconstituir os atos decisórios dessa casa significa, ao meu juízo, tornar sem eficácia prática suas deliberações, em nítida subversão da ordem constitucional.” [3]
Nesta linha de intelecção, fora das hipóteses de patente inconstitucionalidade, a não obediência aos parâmetros legais na aplicação da sanção penal (tal qual ocorre com a observação da pena mínima), é adentrar num pantanoso terreno hermenêutico apto a abalar a separação harmônica das funções do Estado Brasileiro, tornando sem eficácia a função legislativa da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da CF/1988).
Elton Oliveira Amaral é promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso, pós-graduado stricto sensu em Direito Tributário pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).