Em muitos países ao redor do mundo (v.g.: Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Brasil), março é o mês histórico de celebração das mulheres, sendo que em 1977 a ONU oficializou a data 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Há, portanto, importantes movimentos simbólicos de reconhecimento da necessidade de se conferir uma especial proteção para as mulheres, dadas as condições de fragilidade a que historicamente esteve (como ainda está) submetida.
No Brasil, cumprindo o quanto determinado pelo artigo 226, §8º, da Constituição de 1988 [1], talvez a maior iniciativa nessa linha tenha sido a aprovação da Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo recebido diversos aperfeiçoamentos ao longo dos anos, como a mais recente aprovação pelo Congresso do PL 1604/2022, que dispõe sobre as medidas protetivas de urgência e estabelece que a causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação da Lei [2].
A despeito dos ingentes esforços, a realidade nacional demonstra o recrudescimento das práticas de violência ou violação dos direitos humanos das mulheres, que se manifestam das mais diversas formas: agressões sexuais, lesões corporais, feminicídios consumados e tentados, além de crimes contra a honra. Para sintetizar, a Lei (artigo 5º) diz que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
O Atlas da Violência Contra a Mulher divulgado em 2022 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) [3] revela de modo assustador que o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019. Só em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas, o que significa dizer que uma mulher foi morta a cada duas horas.
Os dados também mostram que ao passo que a violência urbana diminuiu ao longo dos últimos anos, a violência doméstica aumentou: de 2008 a 2018, a taxa de homicídios de mulheres na residência subiu 8,3%. Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras, sendo a cor, lamentavelmente, uma condição de alta vulnerabilidade.
Os dados intuem, ademais, que se a Lei Maria da Penha não tivesse sido implantada em 2006, a taxa de feminicídio no Brasil seria cerca de 10% à observada nos anos seguintes. Para finalizar, estima-se que ocorre no Brasil 822 mil casos de estupro por ano e desse total, mais de 80% de mulheres.
Essas preocupantes estatísticas revelam que o modelo meramente retributivo de justiça como um todo e de direito penal em especial não tem se mostrado suficiente para conter a criminalidade contra as mulheres. Por mais duros que sejam os tipos penais (v.g.: artigo 121, §2º, inc. VI c/c §7º-A, CP), o efeito de prevenção geral negativa deles oriundo sempre deixará a desejar nesse tipo de violência, que reafirma o machismo e o patriarcado enraizados na nossa sociedade.
A Lei nº 11.340/06 traz diversos mecanismos de proteção à mulher, que focam não apenas a repressão, mas também a prevenção, determinando a adoção de políticas públicas integradas com esse propósito. Com efeito, num cenário em que a retribuição pura e simples não se mostra suficiente, por que não buscar o fortalecimento do modelo restaurativo de justiça como mais um meio para assegurar a tão desejada proteção às mulheres?
Nessa linha, citam-se as seguintes medidas protetivas de urgência: 1) comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação e 2) acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio, ambas incluídas pela Lei nº 13.984/20 (artigo 22, incisos VI e VII, da Lei nº 11.340/06). Tais medidas mostram que o legislador atentou para a positivação do modelo restaurativo, visando a contenção do ciclo de agressões que por vezes descamba em feminicídios.
Assim, defendemos que os dois modelos não sejam colocados em polos antagônicos, mas que o restaurativo complemente o retributivo diante das suas insuficiências. A violência contra a mulher via de regra se expressa de maneira gradual: formas menos graves até se chegar à violência extrema.
Como bem afirmado por Howard Zehr, a teoria da justiça restaurativa “sustenta que o único elemento apto para realmente acertar as contas é a conjugação do reconhecimento dos danos sofridos pela vítima e suas necessidades com o esforço ativo para estimular o ofensor a assumir a responsabilidade, corrigir os males e tratar as causas daquele comportamento” [4].
A justiça restaurativa pode ser efetiva na prevenção da violência contra a mulher, reconstruindo, a tempo, as relações domésticas e familiares que em algum momento foram arranhadas, com isso possibilitando a cessação do pernicioso ciclo de violência, assim como também pode se afigurar adequada para “suavizar” os rigores da justiça retributiva, auxiliando no sentido de que a pena aplicada e executada alcance os efeitos de prevenção especial positiva (ressocialização).
Em suma, o ideal restaurativo de justiça, pouco importa se aplicado no campo cível ou criminal, não nega o aspecto retributivo, mas adverte, com base na realidade, que este é insuficiente para conter a violência sistêmica contra a mulher, além do que pode até ser desnecessário no contexto em que a problemática restou resolvida sem a imposição de dor ou sofrimento, vale dizer, pelo caminho da restauração.
[1] Verbis: §8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Emetério Silva de Oliveira Neto é advogado criminalista, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).