Fabiana Severi: Silêncios eloquentes e paridade de gênero

“Silêncio eloquente” é uma expressão utilizada nos estudos em hermenêutica jurídica para se referir a situações em que o Legislativo opta por excluir, intencionalmente, determinado fato da previsão legal. Ele seria diferente, por exemplo, da chamada lacuna da lei, caracterizada por uma omissão não intencional de um assunto na legislação. No silêncio eloquente, a situação fática era conhecida por parte do Legislativo e a opção foi por sua não previsão no texto normativo.

Esse conceito foi utilizado pelo Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil, em sua Nota Técnica nº 2, de 15 de setembro de 2023, apresentada em processo do  Conselho Nacional de Justiça, que propõe a criação de uma política de ação afirmativa em favor das juízas para acesso aos cargos de magistratura em segundo grau no âmbito dos tribunais brasileiros. A proposta tem relatoria da conselheira Salise Monteiro Sanchotene, supervisora do Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário do CNJ.

O argumento principal do Conselho de Presidentes é o de que a proposta, apesar de voltada a enfrentar um problema reconhecido pelo órgão, careceria de legalidade, primeiro porque essa mudança somente poderia ser realizada por meio de lei federal e não por Resolução do CNJ; segundo porque a Constituição definiu como critérios para progressão na carreira a antiguidade e o merecimento, sem fazer qualquer menção a indicações por gênero. Não se trataria de uma lacuna legislativa a ser suprida por norma do CNJ, mas sim de um “silêncio eloquente da Constituição”.

A tese defendida na Nota Técnica citada sugere, portanto, que os constituintes de 1988 teriam até conhecimento acerca das desigualdades aqui abordadas, mas optaram por não elevar o gênero como um dos critérios para progressão na carreira da magistratura, ao lado daqueles eminentemente objetivos, a antiguidade e o merecimento.

A solicitação da entidade foi retirar de pauta a proposta para que cada um dos tribunais se manifestasse a respeito do tema, pois tal conselho não havia sido chamado até então para participar da construção da iniciativa e porque não caberia medida única a todos os tribunais, dada a diversidade de realidades. Ele lembrou que, dentre 27 tribunais, há o TJ-PA (Tribunal de Justiça do Pará) com mais de 50% de mulheres na composição do seu desembargo.

Quando li pela primeira vez o documento do conselho, pensei logo em contribuir com o debate, analisando algumas das falácias jurídicas nele presentes. A principal delas seria a falácia da legalidade. De acordo com o jurista Luis Alberto Warat, o apelo à legalidade é um argumento que funciona como um rótulo para um tipo de sustentação que “debaixo da aparência de observar o princípio da legalidade, na realidade o transgride” [1]. A legalidade que se pretende observar advém de uma ideia de que apenas o Legislativo pode criar o direito, sendo ele “suficientemente unívoco, inalterável, justo e seguro”.

Imaginei que discutir esse aspecto seria interessante porque o uso desse tipo de falácia é frequente em discussões envolvendo demandas por direitos das mulheres e de outras minorias. É um tipo de argumento que reifica os sujeitos intérpretes do direito, pois eles estariam restritos aos termos de um texto unívoco, este sim, dotado de ânimo próprio, representado pela expressão a vontade do legislador. É uma falácia conveniente para quem quer se opor a determinado tipo de demanda igualitária, sem ter que enfrentar os argumentos principais que fundamentam o pleito ou demonstrar publicamente uma oposição à demanda. Nos termos do documento aqui analisado, apesar de digna a proposta, o seu principal problema é de ordem técnica. Touché!

Todavia, mudei de ideia, sobretudo, após ler os argumentos desenvolvidos pela conselheira Salise em seu voto, favorável à proposta. Ele é farto em evidências empíricas e em marcos normativos internos e internacionais, respondendo por si só a maioria dos apelos afoitos à letra da lei. No voto, a conselheira explica que não se trata de acrescentar um novo critério aos já estipulados pela Constituição. Trata-se, sim, de uma regra de correção de assimetrias resultantes da aplicação da antiguidade e do merecimento, tal como esses dois critérios têm sido entendidos pelos tribunais até hoje. 

Pensei, então, em assumir uma posição mais colaborativa nesse debate, e escrever um texto em que convido o eminente conselho de presidentes de Tribunais de Justiça a um exercício reflexivo e quase investigativo. O que proponho é uma lista de questões que podem guiar cada tribunal a realizar um breve diagnóstico ou autoavaliação sobre sua atuação institucional em temas afins ao que está em discussão na proposta de paridade de gênero nos tribunais. Algumas dessas questões seriam: 

a) Houve algum tipo de política institucional em seu tribunal voltada a eliminar práticas discriminatórias contra as mulheres perpetradas por integrantes de bancas de julgamento em concursos de ingresso à magistratura antes do tema ter sido regulamentado pelo CNJ?

b) Havia alguma ação institucional em seu tribunal voltada a aumentar o ingresso de pessoas negras nos concursos de ingresso na magistratura antes da regulamentação feita pelo CNJ sobre cotas raciais?

c) Após a regulamentação feita pelo CNJ, as bancas de concurso no seu tribunal têm cumprido disposições sobre cotas raciais nos concursos, evitando a adoção de critérios que configurariam cláusula de barreira?

d) A ausência ou o baixo percentual de mulheres subindo ao desembargo já havia sido objeto de preocupação institucional? Ou, o tribunal já promoveu algum tipo de estudo voltado a compreender as razões dessa realidade?

e) O uso de linguagem sexista e de estereótipos de gênero, classistas e raciais prejudiciais às mulheres por parte de integrantes da magistratura em suas decisões judiciais, foi um problema abordado por alguma política institucional de seu tribunal antes da aprovação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero editado pelo CNJ?

f) Seu tribunal tem implementado ações ou políticas voltadas a garantir a capacitação obrigatória e permanente do quadro da magistratura sobre gênero, relações étnico-raciais, direitos humanos e violência de gênero, tal como previsto na Lei Maria da Penha, promulgada em 2006?

g) Por falar nela, quais as ações de seu tribunal para melhor implementar legislações como a Lei Maria da Penha, ligada ao enfrentamento à violência de gênero? Há nele unidades judiciárias com competência ampla, consoante previsto na referida lei, em número compatível com a demanda existente e com estruturação adequada em termos de equipes multidisciplinares e número de servidores e servidoras?

É importante que as respostas não se refiram a ações pontuais ou iniciativas pessoais de uma ou outra pessoa à frente da presidência de cada tribunal. A busca, aqui, é por políticas ou ações institucionais.

Tenho uma hipótese, advinda de evidências já existentes na literatura, mas que pode ou não ser confirmada pela análise das respostas obtidas por esse questionário. A hipótese é a de que, ao longo dos últimos anos, o CNJ tem cumprido um papel bastante relevante na gestão de políticas voltadas à transversalização das questões de gênero e de raça no Judiciário brasileiro, visando preencher, assim, as lacunas  ou silêncios eloquentes  dos tribunais em tais agendas.

Fabiana Severi é professora do Programa de Mestrado e do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), livre docente em Direitos Humanos pela FDRP-USP, líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP, participante do Consórcio Lei Maria da Penha pelo fim da violência contra as mulheres baseada em gênero e coordenadora do Projeto Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectiva Feminista.

Consultor Júridico

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