No último dia 24 de março, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) divulgou que o ministro Rogerio Schietti Cruz convocou uma audiência pública para o dia 17 de maio para discutir uma possível revisão do enunciado de Súmula nº 231 [1], segundo o qual “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.
Essa decisão foi tomada no bojo dos Recursos Especiais 2.057.181, 2.052.085 e 1.869.764, dos quais o ministro é relator, e questionam a validade do verbete sumular, alegando, em síntese, que a negativa de redução da pena para aquém do mínimo legal com base exclusivamente no entendimento jurisprudencial violaria o princípio da individualização da pena e porque essa orientação fora editada com base em precedentes anteriores à reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984.
Na sessão de julgamento do último dia 21 de março, a 6ª Turma do STJ decidiu por afetar os três feitos à 3ª Seção para debate acerca da manutenção do entendimento sumular.
É elogiável a decisão tomada pelo ministro Schietti e encampada pela 6ª Turma. A um, porque democratiza o Judiciário na medida em que autoriza a participação de organizações da sociedade no auxílio à tomada de decisões judiciais. A dois, porque os argumentos depreendidos nos recursos se mostram plausíveis e razoáveis, levando a debate, depois de tanto tempo, tema tão caro e que tanto influencia na situação daqueles que se veem acusados e condenados por processo crime.
Como cediço, o STJ tem como atribuição a uniformização da jurisprudência pátria em matéria de legislação federal, mas isso não significa o engessamento de tais entendimentos ao ponto de impedir a rediscussão de matérias já apreciadas pelo Tribunal Cidadão.
O Direito — especialmente o Penal, que representa a mão forte do Estado e interfere na liberdade do indivíduo —, enquanto uma ciência não-exata, suscetível às mudanças políticas, sociais e legais, não pode ser indiscutível unicamente porque em algum momento do passado já foi debatido e, naquele momento, se chegou a um determinado entendimento.
Refletindo esse engessamento jurisprudencial, o STJ formulou o enunciado de Súmula nº 83, segundo o qual “não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.
Em que pese esse enunciado ter sido editado, a princípio, para recursos especiais calcados na alínea “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição — dissídio jurisprudencial —, a jurisprudência do STJ passou a dar-lhe interpretação mais ampla, aplicando-o também para recursos fundamentados na alínea “a” do mesmo dispositivo constitucional [2] — violação ou negativa de vigência de lei federal.
Em outras palavras, caso o recorrente aponte violação à lei federal e, até mesmo, demonstre um dissídio jurisprudencial com outro tribunal, explorando uma tese que seja, teoricamente, contrário à entendimento do STJ — que nem precisa ser necessariamente sumulado, ressalte-se — o recurso especial interposto não deve ser conhecido.
E aqui cabem dois comentários: o primeiro deles é que, via de regra, entendimento jurisprudencial não tem caráter vinculante. Portanto, um pretenso consenso na jurisprudência do Tribunal Superior, por si só, não é suficiente para fundamentar uma decisão em um caso concreto.
Em segundo lugar, se a parte recorrente consegue demonstrar um dissídio jurisprudencial corretamente, cujo precedente apontado como paradigma, em tese, é contrário à orientação do STJ, é um indicativo de que a jurisprudência naquele assunto, no mínimo, não é tão uniforme como se imagina e compete à Corte Cidadã apreciar os argumentos invocados, que podem até mesmo alterar o entendimento anterior.
Pois bem. Com base no verbete nº 83 do STJ, diversos recursos especiais interpostos são inadmitidos ainda no tribunal de origem, o que faz com que i- ou aquela matéria não chegue a conhecimento do STJ; ii – ou obriga à parte interpor agravo, desviando o foco do debate principal, de modo que, em vez de enfrentar o objeto do recurso, a Corte Superior precise deliberar novamente quanto a sua admissibilidade.
Como se percebe, em ambas as situações há uma deficiência na prestação jurisdicional e óbices ao debate de matérias relevantes.
Para que haja a superação desse verbete sumular, o STJ admita o recurso especial e aprecie a matéria suscitada, aquela Corte exige que a parte recorrente “deve colacionar precedentes contemporâneos ou supervenientes aos indicados na decisão para comprovar que outro é o entendimento jurisprudencial do STJ” [3]. Contudo, se essa exigência for levada à literalidade, acabará por inviabilizar o recurso especial. Explico.
O enunciado de Súmula nº 83 veda recursos especiais quando a decisão recorrida está em sintonia com o entendimento do STJ. Se a decisão recorrida está efetivamente de acordo com o entendimento do STJ, não haverá “precedentes contemporâneos” do STJ que indique o contrário (excetuado o caso de equívoco factual por parte da decisão de inadmissão) e, dessa forma, o óbice sumular jamais será superado e aquela matéria não será debatida pelo tribunal superior, independentemente dos argumentos invocados pela parte em seu recurso especial.
A propósito, os três recursos especiais afetados à seção pela 6ª Turma, mencionados no início deste artigo, foram inadmitidos pelos tribunais de origem com base no verbete nº 83 da súmula do STJ e somente chegaram ao tribunal superior mediante a interposição de agravo. Em nenhum dos agravos houve a indicação de precedentes contemporâneos.
A esse despeito, foram convertidos em recurso especial pelo relator, que considerou a relevância dos argumentos apresentados, que apontam, sobretudo, mudanças legais supervenientes ao entendimento e que justificam a reanálise da matéria.
Os apontamentos acima, ilustrados pelos recursos especiais mencionados, demonstram que é imprescindível que a incidência do verbete nº 83 ocorra de maneira crítica e a partir de uma análise da dita “orientação” firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, frente às peculiaridades do caso concreto e argumentos trazidos pelas partes.
O professor Elpídio Donizetti é preciso ao discorrer sobre a necessidade de acesso ao STJ ainda que o acórdão recorrido esteja, em tese, de acordo com precedentes do tribunal superior:
“Deve-se ressaltar que, não obstante o acórdão recorrido estar em conformidade com os precedentes citados, fato que em tese ensejaria o não seguimento (no sentido de não remessa) do recurso aos tribunais superiores (STF ou STJ), pode a parte argumentar com a necessidade – decorrente de alteração da lei ou de outros aspectos jurídicos ou sociais, exemplificativamente – da subida do recurso. Assim, a despeito de a decisão recorrida estar em consonância com o entendimento do STF ou do STJ (exarado no regime de repercussão geral ou no regime de recursos repetitivos, respectivamente), pode haver plausível justificativa para a subida do recurso. Só assim será possível a superação de precedentes e consequente atualização do direito. Fora isso, será a completa platinização ou engessamento do direito [4].”
No mesmo sentido, ainda em 2011, o ministro Teori Zavaski, quando ainda integrava o Superior Tribunal de Justiça alertava para os perigos da imutabilidade dos entendimentos judiciais:
“Por outro lado, negando-se acesso ao STJ, em casos tais, o que se faz, na prática, é conferir aos precedentes julgados pelo regime do art. 543-C não apenas um efeito vinculante ultra partes, mas também um caráter de absoluta imutabilidade, eis que não subsistiria, no sistema processual, outro meio adequado para provocar eventual revisão do julgado. Essa deficiência não seria compatível com nosso sistema, nem com qualquer outro sistema de direito. Mesmo os sistemas que cultuam rigorosamente a força vinculante dos precedentes judiciais admitem iniciativas dos jurisdicionados tendentes a modificar a orientação anterior, especialmente em face de novos fundamentos jurídicos ou de novas circunstâncias de fato” [5].
Dessa forma, a alegação da existência de entendimento sedimentado não significa o engessamento da jurisprudência e não pode ser um óbice intransponível para o acesso ao STJ. Antes de sua função de uniformizar a jurisprudência, o Tribunal da Cidadania é um defensor das garantias individuais e isso passa pela revisão e flexibilização do verbete nº 83 do Superior Tribunal de Justiça.
Os presidentes e vice-presidentes dos tribunais, ao realizarem o juízo de admissibilidade de recursos especiais, quando verificada a incidência do enunciado de Súmula nº 83, devem levar em consideração os argumentos invocados pelas partes, bem como eventuais mudanças sociais, legais e jurisprudenciais que justifiquem a rediscussão da matéria objeto do recurso e, em sendo o caso, superar tal óbice.
Fabrício Morais da Costa é advogado criminalista, sócio do escritório Barbuda Brocchi e Napolitano Advogados e pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal.