Fabrício Lopes: Liberdade de expressão, emprego e o fio elétrico

Não é novidade que nosso tempo experimenta um possível apogeu do

exercício da liberdade de expressão, que garante não apenas a manifestação de ideias e pensamentos, mas igualmente a busca de informação e conhecimento. Não se trata da liberdade clássica, vivida na Idade Antiga, à qual Sócrates entendia como de interesse público e que se prestava a “realizar a felicidade de toda a cidade” [1]. A liberdade do século 21 é decorrente de conquistas iluministas que pretendiam garantir autonomia de ação ao ser humano. O termo liberdade advém do latim liber. Retrata o jovem que, alcançando sua maturidade sexual, torna-se “capaz de assumir [responsabilidades] … implica a ideia de uma responsabilidade diante de si mesmo e da comunidade: ser livre quer dizer neste caso estar disponível, mas estar disponível para cumprir certos deveres” [2].

Com frequência, deparo-me com notícias de decisões judiciais que condenam manifestações de empregados, consideradas abusivas, tanto no local do trabalho quanto nas redes sociais. Três decisões, em especial, destacam-se:

A primeira trata de uma reclamante que postou sua expectativa de vitória após ter comparecido à audiência de instrução com a seguinte exclamação: “eu e minhas amigas indo processar a empresa tóxica”; contudo, as amigas eram suas testemunhas. Ciente de tal excentricidade, o juízo de primeiro grau (TRT da 2º Região) desconsiderou as provas testemunhais e condenou as envolvidas em litigância de má-fé, além de multa de 2% sobre o valor da causa. Em recurso, a decisão foi mantida na íntegra pela 8ª Turma [3]. Parece que a empresa, retratada como “tóxica”, perdeu o seu adjetivo para a liberdade, agora “tóxica”, que desafia a lisura da justiça e a seriedade do rigor processual.

A segunda dispõe acerca da manutenção da despedida motivada de um

empregado que postou comentários discriminatórios e violentos contra

homossexuais numa postagem jornalística, a saber: “matá-los, arrancar suas cabeças e deixar jorrar sangue”. Sendo identificado em seu perfil como funcionário de determinada empresa, foi nela denunciado anonimamente por um de seus consumidores. Ao considerar que o empregado praticou conduta contrária ao seu Código de Ética, de seu expresso conhecimento, despediu-o com justa causa, alegando que o fato causou exposição negativa à sua marca.

O pedido de reversão foi negado pelo juízo de primeiro grau do TRT da 2ª Região, entendimento mantido em grau de recurso [4]. Nesse segundo caso, a postagem não teve relação direta com o ambiente de trabalho. Entretanto, a partir do momento em que o trabalhador se identifica como funcionário de determinada empresa, deve observar suas ações. Analogicamente, isso seria equivalente à prática reprovável de determinado empregado que porta uniforme funcional, ainda que fora do estabelecimento laboral?

O terceiro caso, julgado pelo TRT da 3ª Região, apresenta um caso que pode ser mais comum do que se imagina. Uma enfermeira tratou com rispidez uma paciente puérpera, além de ofender seus recém-nascidos com expressão de cunho racista, comparando-os a macaquinhos. O juízo de primeiro grau manteve a justa causa, mesmo entendimento da nona turma deste tribunal do trabalho [5].

Tais posturas revelam como a materialização do poder diretivo do empregador, que age de acordo com seus regulamentos e promove, na sua capacidade de atuação e responsabilidade, reparação a um dano causado a alguém, ainda que indiretamente. Reduz-se o protecionismo simplista ao empregado quando o empregador, agindo com ética e em observância aos preceitos legais, pune e combate o desrespeito aos Direitos Humanos.

Esses casos conduzem a uma reflexão sobre como parte da sociedade tem se comportado nos últimos anos, em especial com os desdobramentos de uma pandemia sem precedentes no nosso modelo de sociedade e da surpreendente presença da tecnologia na rotina das pessoas. Percebo que a compreensão do que é liberdade de expressão está, inequivocamente, melindrada, sobretudo no ambiente de trabalho e sobre o trabalho e suas formalidades.

A cultural digital tornou-se parte da vida de todos, para o bem e para o mal. Desde o início do século, a obtenção de informações tem sido cada vez mais facilitada, permitindo não apenas que o conhecimento se multiplique, mas também a vontade impulsiva de compartilhá-lo — isso tem causado múltiplas e complexas situações de conflito entre ideias e opiniões divergentes.

No ambiente laboral, fatalmente modificado por softwares, pela comunicação virtual e pelo teletrabalho, a relação entre empregado e empregador também foi parcialmente alterada. Parece, em alguns casos, que a presença de um superior hierárquico nem sempre ocorre de forma constante, permitindo ao subordinado atuar com mais autonomia.

Contudo, esse não é o caso de grande parte das empresas, que necessitam de trabalho e interação presencial. É justamente no trabalho “tradicional” que os conflitos tendem a ocorrer de modo mais significativo e é nele que esta reflexão repousa.

Muitos psicólogos têm alertado sobre uma crescente crise de saúde mental que afeta parte dos usuários de redes sociais, condicionando-os a viver sob estresse, impulsividade, ansiedade e medo de ficarem de fora das tendências e atualizações midiáticas, o que se conhece por fear of missing out. Aparentemente, essa mudança de comportamento causa desordens em diversos contextos vividos pela pessoa, seja nos laços familiares, com amigos ou no trabalho. A vontade de se posicionar, compartilhar ideias e opiniões, de ser aceito ou, até mesmo, buscar fama tem a ver com isso.

E mais, a euforia política dos últimos anos, propagada pela polarização

ideológica, transformou uma geração que não se deixava envolver facilmente com assuntos relacionados partidarismo, história e economia — o que significa, inegavelmente, um marco promissor para a evolução da cidadania brasileira.

No entanto, essa ebulição social, também percebida na cultura popular, na religião, no esporte, no ritmo musical etc., revela uma absurda desarmonia entre o que é lícito e o que não convém. Muitas outras situações fortalecem o discurso que defende a liberdade de expressão e o confronto de ideias, sem, contudo, observar seus limites — por vezes intrincados por interpretações judiciais díspares entre liberalidade ingênua e rigor excessivo e desproporcional.

Tais limites, incompreendidos por alguns, são, na verdade, os instrumentos que permitem que a liberdade seja garantida e que todos possam desfrutá-la. Trata- se do fio elétrico, bem-dito por Cecília Meireles, em seu conto Liberdade.

Nele, a liberdade é retratada por um garoto que, ao soltar um papagaio,

experimenta o desconhecido dos ares longínquos percorridos por seu

brinquedo. No entanto, Cecília aponta que o menino, “para empinar um

papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida”.

Eis que surgem os limites! São, na verdade, por razão da subjetividade de algumas normas, pautados casuisticamente. Eles aparecem tanto em decisões judiciais quanto em regulamentos internos, mas também vão se construindo à medida que a liberdade é exercida. Tal liberdade, duramente erguida pelos revolucionários iluministas, encontra-se levianamente corrompida pela inobservância do bom senso.

Talvez o bom senso seja o fio elétrico que interrompe o balançar segurode um papagaio e que ceifa a alegria de um menino que pensava controlar suas ações. O fio elétrico, ademais, é o mesmo que conduz energia para iluminar o que está obscuro — e disso também podemos aprender. Noutra perspectiva, é relevante considerar que nem todo limite é saudável, pois ele tem o papel esclarecer, iluminar e não apenas recrudescer regras e imposições arbitrárias.

Limites infundados, que impedem o exercício da liberdade de expressão, são uma ameaça à proteção dos Direitos Humanos. Ou seja, eles são

indispensáveis, desde que não relativizados e determinados de forma aleatória e seletiva por quem os elabora. Os Poderes Legislativo e Judiciário devem ter atuação imparcial, justa e sem paixões pessoais, a fim de estabelecerem limites concretos, proporcionais e individualizados.

Não agir significa causar dano à sociedade e promover o caos social.

Dessa forma, o papel do Estado, e dos empregadores, é adequar suas medidas, punir os excessos e iluminar aqueles que não sabem os limites de sua liberdade, a fim de que todos possam, em igualdade e com a devida proteção, serem, de fato, livres.

O bom senso deve ser o limite!

 

[1] PLATÃO – A República, trad. port. Enrico Corvisieri. São Paulo, Nova Cultural, 1997, p. 230.

[2] MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, 6.ª ed., São Paulo, Loyola, 2000, p. 1734.

[3] Provas testemunhais são anuladas pela Justiça do Trabalho após vídeo no Tik Tok. Disponível em: https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/provas-testemunhais-sao-

anuladas-pela-justica-do-trabalho-apos-video-no-tik-tok
. Acesso em março de 2023

[4] Comentário homofóbico e violento em notícia da internet configura justa causa para empregado. Disponível em: https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/comentario-

homofobico-e-violento-em-noticia-da-internet-configura-justa-causa-para-empregado
. Acesso em março de 2023.

[5] Mantida justa causa de técnica de enfermagem que fez comentário de cunho racista sobre recém-nascido. Disponível em https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-

trt/comunicacao/noticias-juridicas/mantida-justa-causa-de-tecnica-de-enfermagem-que-fez-comentario-de-cunho-racista-sobre-recem-nascido
. Acesso em março de 2023

Fabrício Lopes Paula é advogado, doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Évora, Portugal, mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho e especialista em Direito do Trabalho.

Consultor Júridico

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