Favacho e Salama: PL 2.925/23, efeito Americanas e arbitragem

As recentes notícias de fraude contábil e de gestão na varejista Americanas, com prejuízos notórios aos seus acionistas, têm gerado inúmeros debates entre especialistas do mercado financeiro e, inclusive, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Estes debates também ocorrem sob os auspícios do recente estudo realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em parceria com o Ministério da Fazenda e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), diagnosticando o modelo brasileiro, comparando-o com os modelos de outras jurisdições e indicando aprimoramentos possíveis [1].

É neste contexto que o Ministério da Fazenda apresentou o Projeto de Lei nº 2.925, que “contribui para elevar os padrões de governança corporativa do mercado de capitais brasileiro, por meio de alterações legislativas na Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e na Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das S.A.), visando expandir o sistema de tutela coletiva de direitos societários; ampliar a publicidade em processos arbitrais; reequilibrar incentivos econômicos e riscos para as partes em processos judiciais ou arbitrais e limitar a exoneração de responsabilidade de administradores e fiscais na aprovação de contas” [2].

O que se lê no referido PL pode ser resumido nas seguintes proposições: 1) Alargar as competências da CVM para incluir atos de fiscalização das companhias como, por exemplo, realizar inspeção, na sede social, no estabelecimento, no escritório, na filial ou na sucursal da empresa investigada, de estoques, de objetos, de papéis de qualquer natureza, de livros comerciais, de computadores e de arquivos eletrônicos, e extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou dados eletrônicos, podendo, inclusive, requerer ao Poder Judiciário mandado de busca e apreensão [3] ; 2) Responsabilizar civilmente os administradores de emissores de valores mobiliários, os ofertantes e os coordenadores de ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários, assim como os ofertantes e os intermediários de ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários pelos prejuízos sofridos por investidores em decorrência de ação ou omissão dos emissores em infração à legislação e à regulamentação do mercado de valores mobiliários [4]; 3) Legitimar os acionistas e investidores a propor ação civil coletiva de responsabilidade com readequação de riscos e benefícios para essas partes incluindo a alteração do prêmio concedido ao acionista que promove a ação em nome da companhia, de 5% para 20% do valor da indenização [5]; 4) Permitir que, mediante previsão pelos estatutos, os regulamentos, as escrituras e os instrumentos de emissão de valores mobiliários, o pedido coletivo de reparação de danos seja submetido a procedimento arbitral desde que seja assegurado que outros investidores possam intervir no procedimento arbitral como litisconsortes e que o procedimento seja público [6]; 5) Incluir novas exigências para autorizar transações que visem encerrar ações ou procedimentos arbitrais que busquem a reparação dos danos sofridos por investidores em decorrência de infrações à legislação ou regulamentação do mercado de valores mobiliários causados por abusos de controladores, administradores e intermediários em ofertas de títulos e valores mobiliários [7].

Neste breve artigo gostaríamos de nos centrar à proposta que o PL traz de procedimento arbitral coletivo considerando, obviamente, apenas o quanto está previsto no texto original submetido e sabendo que o PL, se aprovado, poderá ter uma redação totalmente diferente. Nosso escopo, portanto, é muito mais o de discutir as vantagens e desvantagens de um procedimento arbitral desse tipo, plurissubjetivo, como modelo e como possibilidade.

Pela proposta do PL 2925, a Lei 6.404/76 passará a ter as seguintes disposições referentes à arbitragem:

“Artigo 109 (…)

§3º. O estatuto pode estabelecer que as divergências que envolvam a companhia, seus acionistas e administradores sejam solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar [8].

§4º. Os procedimentos arbitrais relativos a companhias abertas serão públicos, nos limites estabelecidos na regulamentação a ser editada pela Comissão de Valores Mobiliários.

§5º. As instituições arbitrais darão publicidade a seus precedentes relativos a demandas que envolvam companhias abertas e os divulgarão em seus sítios eletrônicos, organizados por questão jurídica decidida.

§6º. Ato da Comissão de Valores Mobiliários poderá dispor sobre os requisitos adicionais às instituições arbitrais nas ações que envolvam companhias abertas, inclusive quanto à necessidade de explicitar, em seus regulamentos, o procedimento para a reunião dos processos arbitrais nas hipóteses de conexão e continência, na forma prevista no § 4º-E do artigo 159.

Artigo 136-A [9]A aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social, observado o quorum do art. 136, obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações, nos termos do artigo 45.

§1º. A convenção somente terá eficácia após o decurso do prazo de 30 dias, contado da publicação da ata da assembleia geral que a aprovou.

§2º. O direito de retirada previsto no caput não será aplicável:

I – caso a inclusão da convenção de arbitragem no estatuto social represente condição para que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação em segmento de listagem de bolsa de valores ou de mercado de balcão organizado que exija dispersão acionária mínima de 25% das ações de cada espécie ou classe;

II – caso a inclusão da convenção de arbitragem seja efetuada no estatuto social de companhia aberta cujas ações sejam dotadas de liquidez e dispersão no mercado, nos termos das alíneas ‘a’ e ‘b’ do inciso II do artigo 137 desta Lei”.

A arbitragem como meio de solução de conflitos relacionados às sociedades anônimas como se vê é um recurso recente, construído nas duas últimas décadas, mas que, indubitavelmente traz mais vantagens à sociedade e aos sócios se comparada ao processo judicial, ainda que nem tudo entre a arbitragem e o direito societário seja fácil [10].  

É inegável, nesse sentido, o crescente recurso à arbitragem nas disputas relacionadas a acordo de acionistas, e, nas operações de fusões e aquisições, especialmente nas questões relacionadas a ajuste de preço, cláusulas de earn-out, quebra de declarações e garantias, entre outras.

O aspecto mais tormentoso das arbitragens societárias, no entanto, sempre esteve associado às questões envolvendo direitos individuais homogêneos dos acionistas, especialmente os minoritários, tais como: invalidade de assembleias ou reuniões de sócios, acionistas, associados ou de seus respectivos órgãos administrativos, bem como invalidade de quaisquer deliberações tomadas em tais assembleias ou reuniões; dissolução total ou parcial, retirada ou exclusão de sócios, acionistas ou associados, apuração de haveres; responsabilidade do controlador, de administradores ou dos membros do conselho fiscal perante a pessoa jurídica, seus acionistas, sócios ou associados; e responsabilidade de acionistas, sócios ou associados, pelo exercício abusivo do direito de voto. Isto porque estas arbitragens precisam observar a configuração de procedimentos que alberguem múltiplas partes com eficiência e com garantia ao due process, sem ignorar que decisões proferidas nesses casos podem vincular outros que não as próprias partes (extensão dos efeitos da sentença e da coisa julgada a terceiros ou efeito erga omnes) [11].

No início de 2023, a Câmara de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canada, a CAM-CCBC, uma dentre as mais tradicionais câmaras de arbitragem do país, editou a Norma Complementar 02/2023, regulamentando as arbitragens referentes a interesses pluri-individuais uniformes no contexto societário, enfrentando o desafio de compatibilizar um mecanismo de resolução de disputas concebido originariamente para as disputas bilaterais, com as disputas coletivas societárias [12].  Nesse intento, disciplinou, nos artigos 4º e seguintes do mencionado regulamento, a notificação de todos os terceiros afetados para que participem da arbitragem, caso queiram, ficando todos os notificados submetidos aos efeitos das decisões arbitrais, independentemente da sua efetiva participação.

A submissão dos acionistas ao regulamento de arbitragem societária da CAM-CCBC, todavia, está obvia e diretamente vinculada à previsão expressa no estatuto social da companhia.

O PL 2.925, ainda que delegando à CVM a competência para criar requisitos específicos, disciplinou a arbitragem coletiva societária como um mecanismo valioso para proteção de acionistas minoritários, especialmente considerados os pontos previstos no próprio PL (no artigo 27-H que inclui na Lei 6.385/76) e determinando a publicidade do procedimento, deixando para a convenção de arbitragem a tarefa de eleger ou definir as regras do procedimento, inclusive para efeito de nomeação dos árbitros.

Pode parecer pouco, mas é um grande impulso para as arbitragens coletivas societárias que poderão substituir, ainda com vantagens, as ações judiciais.

O PL foi apresentado à Câmara dos Deputados em 2/6/2023 e deverá seguir agora para a análise das comissões permanentes sob o acompanhamento atento dos advogados societários e arbitralistas.

Frederico Favacho é sócio de agronegócios e especialista em contratos e arbitragem do Santos Neto Advogados.

Consultor Júridico

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