Felipe Andrade: Jurisprudência do Tribunal Constitucional italiano

Com o Acórdão nº 110 de 2023 [1], o Tribunal Constitucional da Itália declarou a ilegitimidade constitucional do artigo 7º, nº 18, da Lei Regional de Molise nº 8/2022, por violação do artigo 3º da Constituição, devido à “ininteligibilidade do dispositivo impugnado, que utiliza expressões vagas suscetíveis às mais diversas interpretações”.

Trata-se de uma discussão sobre a qualidade da legislação (legística) [2] que no nível constitucional tem ocupado uma posição acessória, não tanto pela indiferença dos tribunais, mas pela impossibilidade de identificar um parâmetro, por assim dizer, ao qual ancorar a declaração de inconstitucionalidade de leis obscuras, ambíguas e pouco compreensíveis [3].

A inovadora decisão do Tribunal Constitucional italiano permitiu que se desse um passo importante, uma vez que expôs que um enunciado normativo radicalmente obscuro vincula apenas aparentemente a administração pública e o poder judicial, em violação do princípio da legalidade e da própria separação de poderes, além de criar inevitavelmente as condições para uma aplicação desigual da lei que constitui o cerne da garantia consagrada no artigo 3º da Constituição italiana [4].

Como breve relato do caso, o presidente do Conselho de Ministros italiano levantou as objeções à referida lei baseando-se na manifesta falta de inteligibilidade de dispositivos da lei, em conflito com o cânone da razoabilidade devido ao uso de “expressões vagas suscetíveis de várias interpretações”. Antes de levantar a questão, o presidente do Conselho de Ministros questionou a região de Molise, convidando-a a desvendar as redações ambíguas do regulamento, sem, no entanto, obter esclarecimentos satisfatórios sobre o que significava, por exemplo, “áreas de planejamento”, “faixas de proteção” e a que tipos de “intervenção” a lei regional se referia. Em vão a tentativa extrajudicial do recorrente que insistiu na tese de que a “absoluta incognoscibilidade do texto normativo”, por si só contraria o princípio da razoabilidade.

Em sua defesa, o governo regional assumiu que “a alegada dificuldade de leitura da norma […] não constituiria fundamento de ilegitimidade constitucional, mas sim pressuposto da atividade do intérprete na aplicação da lei”.

Em essência, os princípios constitucionais da reserva da lei, da determinabilidade normativa e não retroatividade das leis penais, nas quais se baseia qualquer modelo regulatório de direito penal, contribuem em conjunto para garantir a plena consciência da lei pelos cidadãos e permitir que eles entendam quais comportamentos são legais e quais são proibidos. Disto decorre a existência de uma obrigação real para o redator da lei, ratificada ao nível constitucional, para formular leis precisas e claras, contendo diretrizes reconhecíveis de comportamento, embora este princípio tenha permanecido limitado apenas à matéria penal. No caso em questão, o tribunal se mostrou sensível à questão da clareza da lei [5], sobretudo numa perspectiva de conteúdo e não apenas processual.

O acórdão além de inovador com relação à jurisprudência sobre a qualidade da legislação, é significativamente interessante ao identificar o artigo 3º da Constituição como um parâmetro para a avaliação da inteligibilidade da norma, partindo de um exame de razoabilidade de “disposições irremediavelmente obscuras e, portanto, prenunciadoras de intolerável incerteza em sua aplicação concreta”.

Consequentemente, a questão proposta é pertinente em termos de clareza regulatória devido a dificuldade de encontrar sentido, aliás tão “radicalmente obscuro” que viola expressamente o princípio da razoabilidade. E viola-o de forma tão evidente que o Tribunal consegue vincular este parâmetro não a uma disciplina de direito penal, como já ocorridas em outras decisões daquele Tribunal (sentença nº 185 de 1992) em que reconheceu, aliás, que há requisitos mínimos de inteligibilidade do preceito penal que representam, também, requisitos mínimos de racionalidade da ação legislativa, sem os quais a liberdade e a segurança dos cidadãos ficaria prejudicada.

Em suma, a Corte aceitou uma interpretação extensiva de uma orientação jurisprudencial estritamente ligada ao escrutínio de disposições penais caracterizadas por disposições vazias e por elevado nível de genericidade.

Não se pode dizer com certeza suficiente hoje se esse acórdão clarificará mais a futura legislação, aumentando a consciência entre os detentores do poder regulatório. Porém, a partir da primeira leitura das suas fundamentações, talvez se possa estabelecer uma ligação mais sólida entre a Constituição e a atividade normativa.

Permanecem algumas dúvidas à luz das práticas de melhor regulamentação e dos limites que os tribunais constitucionais possuem ao examinar a razoabilidade em todos os casos em que se colocará a fiscalização da constitucionalidade neste assunto. Quando é que a falta de clareza é tão radical e óbvia que afeta a constitucionalidade dos enunciados normativos? O quão pode ser ampliado o princípio da razoabilidade para analisar problemas de redação legislativa?

Estes problemas provavelmente levam a uma reflexão mais profunda sobre a disparidade de sistemas que não permitem o escrutínio completo e direto de uma “má prática” legislativa incapaz de descrever um quadro regulamentar claro. A necessidade de boa legislação é necessária em qualquer Estado de Direito, mas o fato é que dentro das Constituições falta uma disposição explícita neste sentido.     

E então tudo o que resta é depositar as esperanças restantes na sabedoria dos Tribunais Constitucionais em moverem-se com autoridade suficiente, pelo menos na “escuridão radical” da legislação, a fim de remediar, na medida do possível, as patologias do sistema mesmo na ausência de determinados parâmetros que permitam medir a clareza da lei.

 

Felipe Andrade é mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, investigador do Lisbon Public Law Research Centre e bolsista de Investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

Consultor Júridico

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