Felipe Brasil: Desconsideração “parcial” da personalidade jurídica

A autonomia patrimonial é importante fator de estímulo para desenvolvimento das atividades econômicas, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos de risco. Não por outro motivo, o legislador ordinário, demonstrando preocupação, introduziu, com a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), o artigo 49-A do Código Civil, dispondo que o patrimônio da Pessoa Jurídica não se confunde com o do sócio ou administrador.

Não obstante, é possível que o patrimônio do sócio ou administrador seja atingido para responder pelos débitos sociais, quando demonstradas uma das situações subjetivas  abuso de personalidade jurídica  ou objetivas  confusão patrimonial  previstas no artigo 50 do Código Civil, que adotou a denominada teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), sempre se observando as formalidades procedimentais estabelecidas nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.

Na outra ponta do ordenamento jurídico, a Lei nº 8.009/90 confere a proteção contra a penhora do imóvel residencial do casal ou entidade familiar, ou, na esteira da Súmula nº 364 do STJ, de pessoas solteiras, separadas ou viúvas.

Diversas modalidades de desconsideração da personalidade jurídica já foram reconhecidas na doutrina e na jurisprudência: a direta é a tradicional, quando o véu da personalidade jurídica é afastado para atingir o patrimônio dos sócios; a indireta, quando se afasta a personalidade jurídica da empresa devedora para atingir o patrimônio de outra empresa que é controladora ou coligada; a inversa ocorre quando o sócio é devedor e busca ocultar patrimônio registrando-o em nome da Pessoa Jurídica (positivada no §3º do artigo 50 do CC); e, por fim, a expansiva, quando se busca a responsabilização do sócio oculto, que utiliza um “testa de ferro” nos atos constitutivos da sociedade empresária.

Além das mencionadas modalidades, em julgados recentes, o Superior Tribunal de Justiça vinha, em algumas situações, afastando a personalidade jurídica da sociedade empresária devedora não para responsabilizar os sócios, mas sim para protegê-los, daí o nome: desconsideração positiva da personalidade jurídica.

Tal tem ocorrido quando reconhecida a impenhorabilidade de imóvel ainda que registrado no nome da própria empresa devedora, mas onde residam o sócio e seus familiares, em situações onde a devedora executada é uma pequena empresa de conotação familiar. Nesse sentido, é possível encontrar diversos precedentes no âmbito do STF e do STJ, cito os seguintes:

REsp. 356.077/MG, julgado em 30.8.2002, REsp. 621.399/RS, Primeira Turma, relator ministro Luiz Fux, DJ 20/2/2006, REsp 470.893/RS, relator ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, DJ 2.8.2006REsp nº 1.024.394/RS, relator ministro HUMBERTO MARTINS, 2ª TURMA, julgado em 4/3/2008, DJe 14/3/2008, AgRg no AREsp 709.060/RS, relator ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 28.8.2015, REsp 1422466/DF, relator ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, DJe 23.5.2016.

A novidade é que em informativo divulgado nesta semana [1], foi divulgada decisão oriunda da 4ª Turma do STJ, no REsp nº 1.514.567/SP [2], de lavra da Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 14 de março de 2023, onde estabelece um mecanismo de compensação: se por um lado a jurisprudência da Corte protege o sócio que reside no imóvel de propriedade da sociedade empresária, relativizando a autonomia patrimonial, por outro lado passou a admitir que na desconsideração parcial da personalidade jurídica da devedora (positiva), que é sempre excepcional, poderão ser executados bens pessoais dos sócios até o limite do valor de mercado do bem subtraído à execução, independentemente do preenchimento de requisitos como má-fé e desvio de finalidade previstos no caput do artigo 50 do Código Civil.

Entendeu o tribunal que a confusão patrimonial entre a sociedade familiar e o sócio, que motivou a impenhorabilidade do imóvel, será igualmente o fundamento para a eventual excussão de bens particulares dos sócios.

Contudo, assentou que é imperioso o preenchimento dos seguintes requisitos: a) configuração da pessoa jurídica como pequena empresa familiar, confundindo-se o imóvel com o patrimônio da família; b) boa-fé do sócio residente, afastando-se a possibilidade de alegação de impenhorabilidade quando presentes elementos que demonstrem a intenção de esvaziamento patrimonial consistentes, por exemplo, na imobilização do capital da sociedade empresária com aquisição de imóveis residenciais para os sócios, esvaziando, assim, sua responsabilidade patrimonial.

Consultor Júridico

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