Felipe Brasil: Direito como integridade ou como indecisão?

Em Levando os Direitos a Sério (1974), Ronald Dworkin lança raízes de uma teoria do direito que ganha corpo em Uma Questão de Princípios (1985) e O Império do Direito (1986)onde o filósofo do direito ergue uma proposta interpretativa fundada no direito como integridade, propondo que a decisão judicial não pode se desagregar da história institucional de dada comunidade, criando metáforas como a do romance em cadeia e do juiz Hércules, para resgatar o direito do sistema positivista que o encarcerava.

Dworkin era norte-americano e alicerçou sua teoria tecendo críticas ao positivismo representado por Herbert Hart, catedrático na Universidade de Oxford e magistrado britânico.

Não obstante a origem do debate e a construção da teoria interpretativa de Dworkin se deem em sistemas jurídicos da common low, isso não impediu a disseminação de seu sofisticado empreendimento teórico e a sua incorporação pelos ordenamentos jurídicos contemporâneos.

E, cada vez mais, o diálogo entre tradições anglo-saxônicas e romano-germânicas contribuem para formação de um direito mais universal. Nesse particular, o Código de Processo Civil, ao esquematizar a doutrina dos precedentes judiciais, é paradigmático, principalmente ao impor, no artigo 926, que os Tribunais devem manter sua jurisprudência uniforme, estável, íntegra e coerente.

Mas não se fique com a equivocada impressão de que o Código de Processo Civil de 2015 inaugurou a adoção de ferramentas da common low no ordenamento jurídico brasileiro. Basta recordar que o judicial review foi previsto na Constituição brasileira de 1891, por influência de Rui Barbosa, por isso alcunhado de “Marshall brasileiro” [1].

Por outro lado, embora a adoção do controle difuso de constitucionalidade remonte ao século 19, a doutrina do stare decisis (basicamente, mantenha-se a decisão) em terras brasileiras remonta à década de 90 do último século, principalmente através dos seguintes atos normativos:

a) Emenda Constitucional nº 3/1993: acrescentou o §2º ao artigo 102 da Constituição de 1988, prevendo o efeito vinculante nas decisões proferidas pelo STF em sede de ações declaratórias de constitucionalidade no âmbito do controle concentrado;

b) Lei nº 9.868/99: prevê, no parágrafo único do artigo 28, que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgão do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

c) Lei nº 9.882/99: dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevendo eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão (artigo 10, §3º).

d) Emenda Constitucional n. 45/2004: introduz o artigo 103-A na CF/88, com a possibilidade do Supremo Tribunal Federal editar súmulas vinculantes, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Foi regulamentada pela Lei nº 11.417/2006.

e) Leis 11.418/2006 e 11.672/2008: introduzem, respectivamente, o sistema de repercussão geral para o recurso extraordinário e recurso especial repetitivo, no CPC/1973.

Assim, o CPC/2015 consolida uma tendência de internalização da doutrina de precedentes do common low ou anglicização do direito brasileiro, buscando uma normatização mais organizada da doutrina da stare decisis.

No entanto, o que se nota é uma imaturidade e certa confusão nesta construção tupiniquim: de um lado, temos a previsão de súmulas vinculantes, onde o que vincula é o enunciado normativo, e não a ratio decidendi (holding) do precedente, ao contrário da noção dos precedentes, na outra ponta, acompanhamos “precedentes” formados à la carte, para serem revistos ou modificados em curto espaço de tempo, rompendo com a lógica da uniformização, coerência e integridade.

Não que o precedente seja petrificado, longe disso. Existem técnicas específicas, como o distinguinshing, para afastar a aplicação do precedente ao caso concreto por ser distinto do leading case, ou o overruling, para superação do precedente pela própria Corte. Mas o afastamento ou a superação do precedente exigem um ônus argumentativo mais denso (nesse sentido, veja-se o artigo 489, §1º, inciso VI do CPC).

Neste caldeirão em ebulição, adicione-se a teoria da abstrativização do controle difuso, segundo a qual, as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso possuem os mesmos efeitos da decisão proferida em controle concentrado [2], e temos mais precedentes vinculantes do que aqueles previstos no artigo 927 do CPC.

Pois bem, superada essa tarefa hercúlea  para voltarmos à Dworkin  de definir o que  e o que não deveria ser, mas é  precedente judicial, retomamos a teoria da interpretação construtiva do autor norte-americano.

O jusfilósofo advoga que o juiz Hércules tem a responsabilidade decisória de resolver o conflito sem descurar da história institucional, com a qual tem um dever de integridade, afastando-se do pragmatismo, ao não descuidar o passado, mas sem adotar uma linha convencionalista, desprezando o futuro.

“(…) o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos  direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção  que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como (integridade) supõe que as pessoas tem direitos a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre o seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la.” [3]

Portanto, ao refutar a limitação pelo passado, própria do convencionalismo, bem como, a perigosa linha pragmática do realismo jurídico, segundo a qual a decisão judicial depende do que “o juiz comeu no café da manhã”, o autor elabora uma sofisticada teoria de interpretação construtiva, onde:

“(…) se deve atribuir ao passado um poder especial próprio no tribunal, contrariando o que diz o pragmatismo, isto é, que não se deve conferir tal poder. Explica porque os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada além de um interesse estratégico pelo restante.” [4]

Na linha desta perspectiva, é que Dworkin desenvolve a metáfora do romance em cadeia na busca da única resposta correta, aonde:

“(…) decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário. (…) Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora.” [5]

Deve o julgador, portanto, despir-se de inclinações morais subjetivas, que marcam uma postura voluntarista e solipsista, aceitando que desempenha uma função que lhe impõe um dever de lealdade com os valores comunitários construídos pela comunidade em que está inserido.

O direito como integridade, por outra via, não fossiliza a atividade criativa, mas somente baliza os rumos da atividade judicante, reclamando uma coerência aos capítulos anteriores deste intricado romance. Nas palavras de Dworkin:

“(…) quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral. Se não o fizer  se seu limiar de adequação derivar totalmente de suas concepções de justiça e a ela for ajustável, de tal modo que essas concepções ofereçam automaticamente uma interpretação aceitável , não poderá dizer de boa-fé que está interpretando a prática jurídica. Como o romancista em cadeia, cujos juízos sobre adequação se ajustavam automaticamente a suas opiniões literárias mais profundas, estará agindo de má-fé ou enganando a si próprio.” [6]

Evidente que a teoria jusfilosófica do autor não se esgota nestas breves citações, mas é possível, desde já, concluir que o autor, ao romper com um positivismo assentado em um sistema rígido de regras  mas que tinha nos hard cases seu calcanhar de Aquiles, já que permitia a discricionariedade do julgador, sem qualquer padrão de controle  reconhece o padrão normativo dos princípios jurídicos, reclamando-os para ao centro gravitacional do ordenamento jurídico, ao lado das regras jurídicas, e, sobre esta fundação revitalizada erguer a arquitetura da teoria da interpretação construtiva, que tem na integridade do direito (representada pelo romance em cadeia), as vigas que sustentam este empreendimento teórico.

Postas todas estas premissas, parece claro que a adoção de um sistema de precedentes judiciais, aos moldes da common law, reclama profunda reflexão sobre a teoria crítica de Dworkin, poupando, assim, séculos de involução e indefinição. Bem ou mal, temos o privilégio de poder adotar um norte epistemológico desvelado por todo o debate antipositivistas x positivistas que nos precedeu.

No Brasil, o acentuado voluntarismo da classe dos magistrados tem dificultado a implementação do sistema de precedentes de forma íntegra. Como ilustração, tomemos o caso da execução antecipada da pena privativa da liberdade no direito/processo penal: até 2009, o Supremo entendia constitucional a execução antecipada da pena; em 2009, com o julgamento do HC 84.078/MG, adotou a tese da inconstitucionalidade da antecipação da execução da pena.

Em 2016, no julgamento do HC 126.292/SP, retomou o antigo entendimento; finalmente, em 2019, com o julgamento das ADCs 43, 44 e 54, assentou constitucional a redação atual do artigo 283 do Código de Processo Penal, e, portanto, inconstitucional a execução antecipada da pena privativa de liberdade.

Essa oscilação na jurisprudência da Corte Suprema em intervalos curtos de tempo demonstra tudo que o sistema de precedentes repudia: a insegurança e a incoerência.

Sem adentrar na questão do mérito, mas fazendo uma abordagem sobre a estabilidade dos precedentes norte-americanos, em 2022 a Suprema Corte dos EUA, no caso Dobbs vs Jackson Women’s Health Organization revogou a decisão pró-aborto estabelecida no paradigmático Roe vs Wade, em 1973.

Em apertadíssima síntese, a Suprema Corte americana não proibiu o aborto, mas, ao revogar o precedente firmado no caso Roe vs Wade e outros, entendeu que a questão é de competência dos Estados, pela via legislativa, e não pelo Judiciário, permitindo, assim, que os Estados legislem amplamente sobre a proibição do aborto.

Independente do exame sobre a (in)correção da decisão proferida, o fato é que transcorreram cerca de cinqüenta anos, e várias resistências e retomadas do tema nos debates institucionais, para que o precedente fosse superado.

Como dito antes, o precedente formado não pode ser fossilizado, existindo técnicas  como o overruling  que permitem sua superação. Mas a superação do precedente exige uma alteração no contexto fático, na tessitura social, política ou econômica que justifique a alteração do entendimento.

Permitir que a modificação na composição do tribunal admita a reavaliação de precedentes rompe com toda lógica de segurança jurídica e integridade a que se propõe a doutrina do stare decisis.

Em conclusão, a introjeção de mecanismos típicos de tradições anglo-saxônicas é viável, salutar e, de certo modo, não é novidade, mas é necessária uma adequação, uma guinada da cultura voluntarista para uma concepção do direito como integridade, em homenagem à segurança jurídica. Na realidade brasileira, a prática pretoriana está mais para um livro de contos do que um romance em cadeia.

Consultor Júridico

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