Os crimes cometidos no 8 de Janeiro são graves[1], e a tentativa de golpe e ataque as instituições precisam ser punidas. A organização criminosa que planejou, articulou e tentou o golpe para se apoderar do Estado não deve, em absoluto, estar no comando das investigações parlamentares sobre o tema.
A invasão às sedes do Executivo, Judiciário e Legislativo foi a culminação de anos de ataques sistemáticos à democracia brasileira, discursos inflamados contra os órgãos da República, e criminalização da política, tendo sido precedida de uma tentativa de atentado com bomba na área do Aeroporto de Brasília, paralisação de rodovias, e acompanhada da derrubada de torres de transmissão de energia.
A tentativa de golpe de Estado levada à cabo naquela fatídica data desafia o conceito de sociedade como um conjunto de pessoas que convive de forma organizada. A manifestação política em desagrado ao resultado das eleições por uma parte da sociedade é válida, e até esperada no contexto dialético da democracia. Não há, contudo, o direito à explosão dos consensos comuns, à depredação, à violência, ou à prática de atos orientados à deposição do governo eleito.
A massa de criminosos que realizou os atos antidemocráticos é parte de um fenômeno, bem identificado em 2018 por Rubens Casara, pelo qual o “indivíduo passa a desconsiderar as normas transcendentes, que permitiram à sociedade se apresentar como uma unidade, e busca encontrar uma norma que atenda a seus próprios interesses”.
“Em outras palavras, o sujeito da pós-democracia abandona o registro simbólico, desconsidera a lei, e passa a atuar de maneira paranoica a partir do seu próprio imaginário, da imagem que tem da lei necessária ao seu próprio interesse.”[2]. Rompem, portanto, com consensos sociais dos quais a democracia depende para sustentar seus princípios fundamentais.
A traumática tentativa de golpe pode ser apelidada de “o dia da infâmia”, como fazem Georges Abboud e Gilmar Mendes em texto no qual identificam que o movimento golpista advém, em grande parte, de um discurso extremado, recheado de fake news, que objetiva transformar a Suprema Corte em inimigo ficcional da sociedade brasileira[3].
Reagindo, no mesmo dia 8 de Janeiro, a Advocacia-Geral da União, diante da impactante gravidade do cenário, requereu ao Supremo Tribunal Federal a apuração e responsabilização civil e criminal dos responsáveis pelos atos ilícitos.
Frustrado o ataque às instituições democráticas, sucedeu-se a prisão em flagrante de mais de 2.000 pessoas e a decretação da prisão de diversos financiadores e autores intelectuais dos atos. Ato contínuo, a Corte Constitucional instaurou sete inquéritos para apurar as circunstâncias da tentativa de golpe: três específicos contra parlamentares que participaram dos atos, um contra financiadores, um contra autores intelectuais, um contra os executores materiais e outro contra as autoridades do Distrito Federal.
O centro destas investigações diz respeito à configuração de crimes contra as instituições democráticas, em conformidade com delitos introduzidos ao Código Penal pela Lei 14.197/2021. A lei relativa aos crimes contra o Estado democrático de Direito estabeleceu o artigo 359-L, correspondente ao comportamento de tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais; e o crime de golpe de Estado, que incide na tentativa de depor governo legitimamente constituído por meio de violência ou grave ameaça.
Um novo capítulo das apurações se iniciou com a instalação da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre a tentativa de golpe de 8 de Janeiro[4]. Fundamentada no artigo 58, da Constituição, a CPMI é uma comissão mista e temporária criada a requerimento de parcela dos membros de cada Casa do Congresso, destinada a investigar fato determinado por prazo certo, com poderes próprios das autoridades judiciais (com autoridade, portanto, até mesmo quebrar sigilos), cuja conclusão é encaminhada ao Ministério Público para que promova devidos procedimentos para responsabilidade civil ou criminal de infratores.
Criada para investigar os ataques à democracia e instalada no último dia 25 de maio, o objetivo essencial da comissão parlamentar é servir como mais um espaço para a investigação dos responsáveis por planejar, executar e financiar a invasão ao Congresso, STF e Palácio do Planalto e esclarecer as circunstâncias do atentado contra a democracia, que foi o auge do discurso de aversão ao Estado democrático de Direito, ode ao regime autoritário de 1964, desinformação e violência no cenário político.
É prudente, contudo, a preocupação de que a CPMI possa ser instrumentalizada pelos mesmos interesses e infâmias que conduziram aos atos antidemocráticos. Veja-se do requerimento e criação da comissão que sua criação é justificada na afirmação de que “não há dúvidas que houve depredação do patrimônio público, o que é inadmissível em um Estado democrático de Direito”, continua, porém, para descrever que “todos os envolvidos, sejam eles extremistas ou infiltrados, devem, rigorosamente, ser identificados e punidos na forma da lei”. E justifica, ainda, na alusão à suposta imposição pelo governo federal de sigilo da íntegra das imagens registradas pelo sistema de segurança do Palácio do Planalto [5].
Pois bem, tanto a narrativa de que haveria “infiltrados” nos atos antidemocráticos, quanto a menção a sigilo das imagens de vídeo são oriundas de desinformação — as famosas fake news — já desvendadas. As pretensas notícias de que pretenderam atribuir o vandalismo do 8 de Janeiro a grupos para além daqueles apoiadores de Jair Bolsonaro, que estavam acampados em frente a quarteis militares, aos montes, já foram desmentidas por órgãos de checagem: jornalista do CNN nunca disse que policial afirmou ter visto infiltrados do PT, o horário no relógio histórico não comprova infiltrados, nem o homem que arremessou o relógio no chão é militante do PT. Foi o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e não Lula que colocou sigilo em imagens do 8 de Janeiro e o presidente ainda teria sido informado que as imagens não existiam. E mais diversos “infiltrados” que foram falsamente identificados entre os participantes dos atos antidemocráticos simplesmente não estavam no local[6].
Diante do imbróglio entre a necessidade de investigação e a possibilidade de manipulação da CPMI, é de rigor voltar o olhar à importância de manter um consenso e coerência sobre a realidade e alertar que a perda desse consenso é técnica de propaganda totalitária que visa atingir as massas e gerar influxos autoritários, como vislumbrou Hanna Arendt em origens do totalitarismo. A eficácia dessa técnica ressoa com as massas modernas que “não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si”.
“O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte.”[7]. Isto é, se a narrativa é falsa ou é verdadeira pouco importa quando o que desponta não é a racionalidade, mas a afetividade para com o discurso autoritário e populista de extrema-direita[8].
É característica do autoritarismo contemporâneo que governos com tendências a promoverem atos típicos de estados de exceção alcancem o poder pelas vias democráticas, utilizando o poder político e as ferramentas da própria democracia para subvertê-la em direção à substituição do direito por vontade política.
A mesma lógica deve ser considerada na observação da CPMI 8 de Janeiro. É necessária cautela e atuação parlamentar coerente, que atenda a democracia constitucional e se afaste dos discursos de desinformação, para promover uma apuração alinhada a consensos firmados na realidade. Só assim a comissão parlamentar poderá se tornar uma aliada das investigações em curso na Polícia Federal, ao invés de servir a discursos que conduzem a projetos autoritários de poder.
É fatal, portanto, que a CPMI deve contribuir com a investigação dos crimes cometidos do 8 de Janeiro. Evidentemente não pode servir como forma de atrapalhar a própria investigação e responsabilização dos autores intelectuais, financiadores e participantes do ataque à democracia. É preciso estar atento para o caso de a comissão deixar de investigar com seriedade para assumir postura que crie tumultos e comprometa a apuração. Ao permitir que membros da CPMI insistam na promoção de discursos que pretendem minar as instituições, estaremos diante de uma comissão inconstitucional.
[2] CASARA, Rubens. Sociedade sem lei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 86.
[3] Publicado pelo conjur em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/gilmar-mendes-georges-abboud-81-dia-infamia
[4] https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2606
[5] https://www.congressonacional.leg.br/materias/pesquisa/-/materia/157131
[6] https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2023/06/01/cpi-dos-atos-antidemocraticos-o-que-ja-checamos.htm
[7] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 2012, p. 485
[8] Importa observar, como faz Luiz Guilherme Conci, que os populismos na América Latina surgem como uma adaptação de regimes de exceção, eis que “assumem a fundação de desempenhar um modelo autoritário de fazer política e de governar que, se por uma lado, aceita e concorre em eleições, por outro tem características próprias não tidas por democráticas” e, continua advertindo que os populistas “fomentam seu modo de ver a democracia constitucional como meramente instrumental aos seus objetivos e, em caso de confronto com seus desejos autoritários é a democracia constitucional que deve ser reduzida para abrir caminho, reafirmado a condição dos populismos como um primo disfuncional da democracia, ostentando a ênfase em um líder personalista e na busca do desmantelamento das regras democráticas para seu ganho político” (CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Democracia Constitucional e populismos na América Latina. São Paulo: Contracorrente, 2023, p.227 e 229).
Fernando Augusto Fernandes é advogado criminalista, cientista político e diretor do Instituto de Defesa da Democracia 8 de Janeiro.
Guilherme Marchioni é advogado criminalista, mestre em Direito pela PUC-SP e diretor do Instituto de Defesa da Democracia 8 de Janeiro.